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Flip 2014: Davi Kopenawa coloca em debate a cosmologia ameríndia e o imperativo ambientalista

O Globo- http://oglobo.globo.com
Autor: Arnaldo Bloch
19 de Jul de 2014

Muito já se disse e escreveu sobre Davi Kopenawa, representante par excellence do povo ianomâmi - detentor da maior reserva demarcada do Brasil - e das demais etnias indígenas, em todos os foros e cúpulas internacionais. Cultuado por príncipes ingleses, reis de Espanha e monarcas noruegueses; voz soberana no seio das Nações Unidas, ele é peça fundamental da engrenagem que transforma em realpolitik a convergência natural da cosmologia ameríndia com o imperativo ambientalista, moeda já corrente nas trocas globais. Na alta literatura etnológica, Davi Kopenawa já tem publicado um dos mais extensos monólogos da história das letras: mediada pelo antropólogo francês Bruce Albert - que dedicou boa parte de sua carreira aos estudos ianomâmis - a vida deste pajé e chefe tribal é narrada em "La chute du ciel" ("A queda do céu"), traduzida do idioma yanomae para a sintaxe e a cadência dos seus algozes, os brancos. Ou "napë pë", que, no milenar idioma, é o oposto de yanomami ("gente").

Para se conhecer, contudo, a profusão identitária de Davi, nem as 800 páginas da obra publicada pelas edições Plon de Paris em 2010 (e que será lançada no Brasil até o fim do ano pela Companhia das Letras) serão suficientes, mesmo complementadas com uma mesa na tenda de autores da Flip deste ano, com a fotógrafa Claudia Andujar. Nenhuma abordagem será suficiente, aliás, para se resvalar no caleidoscópico "eu" de um ianomâmi. Uma contribuição a tal vislumbre, contudo, está neste testemunho de convivência com o personagem, em março, nos domínios da maloca onde se fixam as suas raízes, a distante aldeia Watoriki, na divisa entre Amazonas e Roraima.

Em março passado, durante reportagem sobre os ianomâmis, em expedição organizada por Sebastião Salgado, Davi Kopenawa surgiu sorrateiro, short e peito aberto, o tronco bojudo e um sorriso de guerreiro escaldado, no posto da Funai, a três quilômetros da aldeia. Antes da caminhada à maloca, lamentou que tivesse que partir dali a poucos dias para uma escala em Boa Vista que o levaria a São Francisco, Califórnia, para um discurso no âmbito da ONU.

- O governo tem tudo, dinheiro, política. Eu sou pequenininho no meu país. Por isso tenho que viajar, lá fora eu sou grande.

Viajar naqueles dias não era aconselhável: iniciava-se uma festa fúnebre de suma importância na aldeia da qual é chefe supremo, ainda que contestado pelas novas gerações. Ao mesmo tempo, estava empenhado em pressionar a equipe do Posto da Funai - do qual também é chefe desde a fundação da aldeia, há 25 anos - a conseguir mais medicamentos para um surto de pneumonia que ameaçava matar idosos e crianças.

- Faz tempo que abandonei mulher, filhos e meus velhos pajés por causa dessas viagens.

Como se não bastasse, instalara-se uma crise com seu sogro, o mais idoso e respeitado pajé da região, Lourival, um dos que até hoje caminham nus e com a glande amarrada por cipó: foragido na selva, o filho caçula de Lourival era acusado de assassinar, a facadas, o cão de caça de Davi, ato de caráter político com o objetivo de desafiar a liderança do chefe cansado de guerra.

Em meio ao turbilhão, Davi, contudo, ao contrário de aparentar alarme, parece imerso num tédio profundo e calmo, daqueles que a maturidade propicia. É com a fala mansa que se queixa de tudo. De ter que trocar a contemplação por jornadas a outros lados do mundo, denunciando a violação da terra-floresta (Uri-hi) desde o contato, há um século, pelo exército, pelas missões, pelo garimpo, pela porteira da mineração. A saga é dramática. Envolve 13 tribos que vieram de terras altas em busca de refúgio, e a reiteração de antigas narrativas, nas quais os "brancos", inumanos, são criados pelos demiurgos (omama) que fizeram a luz, da espuma amorfa da própria obra, e a terrível fumaça canibal (xawara) que emana de seus corpos e de suas máquinas.

Dono de hábitos monásticos quando se trata de comer mutum, macaco e outras caças, Davi é tomado por imenso apetite pelos bolos de chocolate preparados pelas enfermeiras do posto, e capaz de bater vários pratos de macarrão trazidos pelos estrangeiros. Na tradição, tal apetite é simbólico do desprezo pelos excessos dos brancos, teatralizado no desperdício que não demonstram ao comer do próprio cultivo. Entre uma garfada e outra, observa os homens que se pintam para uma cerimônia.

- Homem só sabe fazer bagunça. Só sabe rir. É tudo maluco. Quando for a vez das mulheres vocês vão ver. Elas são organizadas.

De forma automática, ele devora a cozinha forasteira, suspira e deixa remontar a espuma do tédio.

- Se quisesse, eu já estava muito rico, em outro lugar. Fui eu, fomos nós, que plantamos essa mandioca, tiramos dos igarapés o peixe. Somos selvagens. Todo mundo é. O planeta é selvagem. Então, é melhor preservar, deixar o ouro debaixo da terra. O ouro não é de comer. Deixa lá.

O tédio de ser fiel sem soar ameaçador ou incompreensível, ao explicar que índios não existem, são invenção dos invasores, o que existe é ianomâmi, gente, e os outros, e é esta alteridade que massacra o ser. O tédio de olhar para a nova geração e ver os meninos voltando da cidade com o cabelo cortado à Neymar, e as moças, mais tradicionais em suas tangas e seios e nádegas à mostra, deixarem cabelos crescerem.

- Eles vão para Boa Vista de barco e voltam assim, monstros, como se não fossem eles.

O tédio com o governo. Governo plantou árvore? Plantou pedra? Plantou dessa água para tomar? Plantou gente? O que é a União?

- Pois nasci nas montanhas. Na cabeceira do Tototobi. Para nós não tem fronteira. Somos nômades. Vínhamos mudando. Descemos rios. No meu tempo não tinha branco. Eu era pequeno.

Davi pequeno viu o que ninguém viu, e deixá-lo falar é entrar em contato com um contínuo desgarrado do tempo, no qual os espíritos regem a vida e os sonhos regem os dias.

'Para que escrever e ler se o mundo é maior?'

De concreto? Os fatos mediados por Bruce Albert dão conta da aliança estratégica que uniu Lourival a Davi num passado que se estima em 40 anos atrás (pois idade ao certo não há, nem nomes, que os ianomâmi não os têm, daí os emprestarem aos brancos). Perdeu pai e mãe de doenças trazidas por missionários salesianos. Restou-lhe o português, para ler a Bíblia, livro do qual ele ri, como ri de todos os livros.

- Para que escrever e ler se o mundo é maior, se a gente vê os espíritos das árvores, dos animais, e da gente, e contamos tudo em diálogos?

Diálogos na forma de repentes que fazem os linguistas pirarem tamanha a sofisticação sintática, sem que isso precise se transmutar em arte, em vaidade. Por outro lado, foi de ler a Bíblia que resultou o jovem Davi ser intérprete da Funai, instalar-se num posto dedicado a atrair populações dispersas. Na serra estava Lourival, atrás de remédios, comida e ferramentas. E viu naquele menino lá embaixo, e nos sonhos que tinha Davi, vocação de pajé.

E ofereceu-lhe a filha em casamento. E uniram-se, através do modelo de autoridade no qual o sogro e o genro são o suporte. E depuseram, sem sangue, o branco que comandava o posto. E fizeram uma aldeia em forma de arena, aberta ao centro, à sombra de uma serra onde moram espíritos do vento, cercada de mata, onde hoje vivem, caçam, pescam, aspiram o pó sagrado e se enxergam no espelho do mundo.

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