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Fim da escravidão está longe

CB, Tema do Dia, p. 18
29 de Jan de 2004

Fim da escravidão está longe
Ministério do Trabalho estima que existem 15 mil pessoas em regime de escravidão no Brasil, mas o número pode ser bem maior. Dobrou a quantidade de flagrantes em um ano. Mato Grosso, Pará e Bahia concentram 70% das denúncias

Erika Klingl
Da equipe do Correio

Existem números diferentes sobre o trabalho escravo no Brasil. A estimativa mais conservadora, feita pelo governo federal, já é assustadora. Entre janeiro e a primeira semana de dezembro do ano passado, foram libertadas 4.932 pessoas que trabalhavam em regime forçado no país, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho, no Ministério do Trabalho. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam para um número bem maior: 7.560 trabalhadores escravos foram localizados em 2003.

Mesmo diferentes, as estatísticas mostram uma tendência de aumento no número de flagrantes. Em 2002, foram 5.559 libertados, de acordo com a Pastoral da Terra e 2.300, segundo o governo. Nos dois casos, praticamente dobrou o número de trabalhadores encontrados em condições de escravidão. ''Não dá para saber se aumentaram os casos de trabalho forçado ou se simplesmente as buscas estão mais eficazes'', explica o padre Ricardo Rezende, do Rio de Janeiro, que há 25 anos acompanha a libertação de trabalhadores no Brasil e é da organização não-governamental Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

É certo que estão em andamento hoje nas procuradorias regionais do trabalho 461 processos administrativos para apuração de denúncias de trabalho escravo. O estado campeão é o Mato Grosso, com 173 ações, seguido pelo Pará, com 140, e Bahia com 32. De acordo com o Ministério do Trabalho, esses estados concentram 70% dos flagrantes de trabalhadores forçados.

O Ministério do Trabalho atribui o aumento do número de libertados a uma maior eficiência na fiscalização. Em março de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Em novembro, o resultado do trabalho foi divulgado: uma lista com 52 nomes de pessoas físicas e jurídicas condenadas por empregar mão-de-obra para trabalho forçado.

O trabalho escravo é caracterizado pela falta de carteira de trabalho, aliciamento de peões em outros estados, o não-pagamento de salário e a servidão por dívidas, além do impedimento do direito de ir e vir - mesmo sem empregar necessariamente o uso de violência.
Estatísticas subestimadas

O Brasil é um dos poucos os países do mundo a admitir ter trabalho escravo, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Por isso, a entidade liberou US$ 1,7 milhão para ajudar no combate ao crime. Apesar do avanço, o Brasil não sabe exatamente o tamanho do problema.

O Ministério do Trabalho acredita que existam cerca de 15 mil pessoas nessa situação. A CPT conta com uns 25 mil. A OIT calcula algo em torno de 40 mil trabalhadores. ''Não dá para saber, mas até a Secretaria de Inspeção do Trabalho sabe que os números não são tão baixos'', argumenta a coordenadora nacional do Projeto de Combate ao Trabalho Forçado da OIT, Patrícia Audi.

Nos últimos oito anos, cerca de 30 mil pessoas foram libertadas. O que chama atenção das autoridades é que desse grupo, 12 mil pessoas voltaram para as fazendas.

Memória
Vergonha nacional

Apesar de ter sido oficialmente abolida em 1888, a escravidão ainda é uma mazela brasileira, escondida em locais onde a legislação e o Estado são ignorados. Antes, negros - arrancados de sua terra natal, a África, e trazidos para o Brasil - eram submetidos a trabalhos forçados em latifúndios que cultivavam produtos agrícolas destinados à exportação ou mesmo para o mercado interno. Hoje, mais de 100 anos depois, trabalhadores de todas as raças continuam sendo escravizados na área rural do país.

Espalhados em todo o Brasil, os negros só conheceram a liberdade com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel. Uma liberdade que em nada revelava o verdadeiro significado do termo, que - segundo o dicionário Aurélio - representa ''a supressão ou ausência de toda a opressão''.

Nos anos 70, uma escravidão moderna passou a despertar a atenção no país. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, denúncias despontavam acusando o trabalho forçado de seringueiros na floresta amazônica. Estima-se que cerca de 100 mil trabalhadores tenham sido escravizados na Região Norte, por ano, entre 1970 e 1980.

Em 1984, um caso escandaloso ganhou proporções internacionais. Uma denúncia de que entre 600 a 800 trabalhadores estavam sendo mantidos como escravos em uma fazenda da Volkswagen, no Vale do Rio Cristalino, no sul do Pará, despertou o interesse da imprensa nacional e internacional. No entanto, nada foi comprovado.

Ação governamental
Apesar das denúncias crescentes, as ações públicas contra o trabalho escravo só começaram a ser implementadas em 1995, durante o primeiro governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquele ano, foram criados o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) e a Secretaria de Fiscalização do Ministério do Trabalho (Sefit).

Entre 1995 e 1998, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel da Sefit investigou 461 fazendas no Pará, no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul e confirmou as denúncias de escravidão em 65 delas. Nesse período, foram presos 11 administradores de propriedades rurais e libertados 608 trabalhadores.

No entanto, esse esforço inicial foi incapaz de libertar cerca de 25 mil trabalhadores que ainda hoje permanecem em regime de escravidão, segundo índices de organismos internacionais, divulgados no ano passado.

O combate ao trabalho forçado foi incluído entre as prioridades do governo Lula, que criou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Em 2003, os grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego libertaram quase cinco mil trabalhadores, a maioria deles no Pará. Em 2002, 2.416 trabalhadores foram libertados em todo o Brasil.

Contudo, a impunidade em relação ao trabalho forçado ainda é gritante, embora a situação venha mudando gradativamente. No ano passado, a Justiça encaminhou 36 pedidos de prisão temporária contra fazendeiros - 27 deles foram cumpridos. No Rio de Janeiro, a Justiça acolheu pela primeira vez uma denúncia do Ministério Público Federal contra o dono de duas agroindústrias e um grupo de funcionários seus que escravizavam cerca de 160 cortadores de cana-de-açúcar. Se os acusados forem condenados à prisão, o caso pode abrir um precedente para outras punições.

CB, 29/01/2004, Tema do Dia, p. 18

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