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Estamos todos no mesmo barco

Veja, Entrevista, p. 13-15
Autor: DIAS, Bráulio Ferreira de Souza
30 de Jan de 2013

Estamos todos no mesmo barco
O biólogo brasileiro que dirige um dos principais órgãos da ONU diz que cada um dos habitantes do planeta tem sua parcela de responsabilidade na preservação ambiental

Entrevista: Braulio Dias

Fernanda Allegretti

O biólogo Braulio Dias, de 59 anos, é secretário executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), órgão da ONU responsável por fazer com que os países avancem na implementação de políticas de conservação ambiental. A cada dois anos a CDB reúne perto de 200 países na Conferência das Partes (COP), que se destina a estabelecer metas ambientais internacionais. Dias é um raro ambientalista que não se rende ao catastrofismo. Para ele, os problemas climáticos e de biodiversidade têm soluções conhecidas. "O que falta é ganharmos escala", diz. Nascido nos Estados Unidos e criado em Piracicaba, no interior paulista, Dias foi diretor de pesquisas do Ibama e, posteriormente, o responsável por estruturar o setor de biodiversidade e florestas no Ministério do Meio Ambiente.

Os ambientalistas dizem que a perda de biodiversidade atual é a maior de toda a história da humanidade. Por outro lado, nunca a ciência catalogou tantas novas espécies. A preocupação dos ambientalistas é exagerada?

Ainda sabemos muito pouco da biodiversidade. Estima-se que apenas 10% das espécies que existem no território brasileiro sejam conhecidas. Ao mesmo tempo, estudos feitos por diferentes instituições comprovam que nunca se perdeu tanta biodiversidade no mundo como nos últimos cinquenta anos, em razão do crescimento populacional e da demanda por alimentação, transporte e energia. Um exemplo é o fenômeno conhecido como colapso das pescarias. A redução drástica de algumas espécies de peixes tem obrigado pescadores a ir cada vez mais longe da costa e mais fundo nos mares em busca de espécies que não eram exploradas. Com normas rigorosas e fiscalização eficaz, países como Nova Zelândia e Islândia conseguiram reverter esse processo. Nos Estados Unidos, em algumas áreas da costa leste, também houve avanço.

Um estudo recente concluiu que proteger a biodiversidade do planeta custaria 81 bilhões de dólares por ano, mas o compromisso dos países com a ONU é destinar a esse fim, até 2015, apenas 10 bilhões. Não é pouco dinheiro?

A estimativa de 81 bilhões de dólares é, em parte, um marketing do desespero. Não temos contas muito precisas de quanto vai custar a recuperação da biodiversidade no mundo todo. No Brasil, alguns cálculos estimam que bastaria dobrar os investimentos para garantir a conservação. Outras nações certamente precisarão de um investimento maior. O dinheiro tem de vir de fontes diversas, e não apenas dos países ricos. As várias instâncias governamentais precisam participar, bem como as empresas e as organizações da sociedade civil.

Pequim precisou cancelar voos, suspender aulas externas e o funcionamento de fábricas devido à poluição atmosférica. Quais as consequências disso no futuro?

O crescimento acelerado da China, nas últimas décadas, se deu com um preço alto para o ambiente. Toda a região a oeste de Pequim está em processo de desertificação por causa do desmatamento. No ano da Olimpíada, o governo precisou transferir indústrias da cidade para o interior do país, numa tentativa de reduzir a poluição do ar. A China já entendeu que o desenvolvimento a qualquer custo cobra seu preço. Mas essa percepção chegou tarde, e o que ela faz é transferir o problema para outros países da Ásia e da África. É o que acontece com a madeira, que os chineses compram de outros países sem se importar com certificações de origem. Atualmente, não é mais permitido explorar madeira de florestas na China, e a taxa chinesa de reflorestamento é dez vezes a do Brasil.

Cientistas ingleses estão tentando reproduzir o processo de fotossíntese em laboratório com o objetivo de usar o hidrogênio para gerar combustível renovável e eletricidade verde. A solução para os problemas ambientais depende da tecnologia?

Em parte sim, mas não dá para fazer qualquer coisa com a natureza imaginando que a tecnologia tem solução para tudo. É preciso considerar que algumas inovações não são viáveis economicamente, pois são muito caras, e que todas elas precisam ser estudadas em profundidade para que, de fato, sejam eficazes. Várias empresas de petróleo, incluindo a Petrobras, já têm pesquisas que mostram ser possível reinserir no solo o gás carbônico liberado durante a extração. Isso é maravilhoso, mas, se não for empregado adequadamente, em regiões de forte atividade sísmica, o gás pode ser liberado novamente durante um terremoto.

Muitos chefs famosos oferecem em seus restaurantes pratos com ingredientes pouco comuns, como berbigão, priprioca e licuri, a pretexto de chamar atenção para a biodiversidade. Isso contribui para a preservação?

Essa é uma tendência importante tanto do ponto de vista do marketing quanto do econômico. O mundo inteiro caminha para uma uniformidade em termos de alimentação, com alta dependência de poucos produtos, como trigo e batata. Portanto, acho salutar essa valorização da culinária da biodiversidade e das culinárias regionais. Do lado econômico, vai gerar fontes de renda para pequenos produtores.

De modo geral, as pessoas acreditam que a biodiversidade não faz parte do seu dia a dia e consideram o assunto um tanto enfadonho. Como despertar o interesse pelo tema?

No Brasil, mais de 80% da população mora em cidades. Situação parecida ocorre em outros países. Longe da natureza, as pessoas têm mais dificuldade em perceber como a diversidade biológica tem impacto em sua vida e está ligada a grandes temas, como alimentação e energia. Para mudar essa mentalidade, é preciso educação e políticas públicas acessíveis aos cidadãos. O tema da biodiversidade é complexo e, portanto, é fácil resvalar em um discurso hermético, que afasta as pessoas. O mesmo vale para os discursos apocalípticos. A biodiversidade não pode estar só na agenda dos setores ambientais. Não pode ser vista só como um bichinho bonitinho, um urso panda, um mico-leão. Essa visão é reducionista e precisa ser ampliada. A maioria das pessoas reconhece que perder biodiversidade não é desejável, mas elas ainda tendem a achar que é um problema secundário, que só países ricos podem se concentrar na questão e os países pobres devem gerar emprego, renda e resolver a violência. Elas não se sentem, como consumidoras, parte desse problema. Mas são.

Com todos os países empenhados na busca por soluções para a crise econômica, há espaço para discussões relacionadas à biodiversidade?

Sim, há. Na última Conferência das Partes, o encontro bianual promovido pela ONU, que aconteceu na Índia, em outubro, decidiu-se que os países ricos vão dobrar a ajuda monetária que destinam aos países pobres e em desenvolvimento. Em 2010, na COP 10, quando já estávamos atravessando a crise econômica, os países participantes concordaram com a criação de vinte metas globais relacionadas à biodiversidade e que devem ser cumpridas até 2020. Eis uma demonstração do compromisso das nações, apesar da crise financeira.

Mas, se nenhum dos países cumpre as metas, qual é a relevância dessas conferências?

Sem encontros como a COP ou a Rio+20, não teríamos intercâmbio de experiências nem uma agenda internacional para pôr a biodiversidade em pauta. Ficaríamos à mercê das políticas de cada país. Há uma crescente mobilização para preservar o ambiente, mas as ações ainda não foram suficientes para reverter ou mesmo estacionar o problema, e as causas que levam à perda de biodiversidade continuam fortes.

Como mudar esse cenário?

É necessário atuar em várias frentes. Precisamos estabelecer políticas públicas que operem fortemente na direção de um planejamento e um desenvolvimento sustentáveis. Temos de mobilizar as lideranças que existem nos governos em vários países para atingir metas comuns desejadas e eleger políticos que reconheçam o peso desse assunto. Precisamos do engajamento dos governos estaduais e municipais, assim como do setor privado. Por último, precisamos trabalhar com comunidades locais de vários tipos, como as indígenas e as de extrativismo.

Se a sociedade conseguir enxergar o que a biodiversidade representa em termos econômicos, o tema ganhará mais relevância, não?

Essa visão militarista faz sentido, mas não pode ser a única. É verdade que temos de apresentar melhores dados econômicos associados à preservação do ambiente. Governos e empresas poderão tomar decisões com base nesses números. Afinal, é a linguagem que eles entendem. Por outro lado, há valores intrínsecos ligados à biodiversidade que não têm a ver com dinheiro. Ela tem impacto na nossa qualidade de vida, tem significado cultural e muitas vezes até religioso.

Não seria desejável investir mais em pesquisas oceanográficas?

É verdade, os oceanos recebem bem menos atenção do que os ecossistemas terrestres. Mas há uma razão para isso: não existe um sistema de governança, acordado internacionalmente, para conservação e exploração da biodiversidade em alto-mar. Isso é objeto de intenso debate diplomático, e já existe um processo na ONU para tratar dessa questão. Agora, com os problemas climáticos, o tema começa a ganhar mais atenção. Em algumas ilhas a elevação do nível dos oceanos já se faz sentir.

É possível gerar receita a partir da conservação dos ecossistemas?

Sim, mas precisamos de estudos para saber de que maneira isso pode ser feito. A biodiversidade é básica para o desenvolvimento da agricultura e da medicina. Países que chamamos de multidiversos, como Brasil, Madagascar e Indonésia, têm um grande potencial para lucrar com a biodiversidade no futuro. Há outro ponto relacionado às grandes mudanças climáticas pelas quais o planeta passará nas próximas décadas. Estudos da Embrapa mostram que a maior parte das culturas no Brasil sofrerá impacto do aquecimento global. As safras de café devem se reduzir drasticamente. Áreas que hoje servem à pecuária serão esterilizadas pela desertificação. Os países que preservarem sua diversidade biológica e seus recursos terão mais chance de superar esses problemas.

Por temer a biopirataria, o Brasil cria muita burocracia e faz restrições às pesquisas que limitam o avanço do conhecimento da biodiversidade. O órgão que o senhor preside na ONU trata dessa questão com o governo brasileiro?

O governo já admite a necessidade de mudar a legislação. Na gestão do presidente Lula houve várias tentativas de revisão das regras. A grande dificuldade é criar um modelo normativo que seja consenso entre os setores afetados, como o acadêmico, o agrícola e o industrial. O governo tem de conseguir chegar a um meio-termo. O Brasil está sentado em cima de uma mina de ouro, e, portanto, é do interesse do país viabilizar o uso desse potencial. Uma legislação nacional não resolve sozinha o problema da biopirataria. Uma vez que o produto sai do país, escapa ao alcance da lei. Teremos uma grande chance de resolver essa questão com o Protocolo de Nagoya, que deve entrar em vigor em dois anos. Ele garantirá a proteção internacional do patrimônio biológico de qualquer país, que só poderá ser explorado por estrangeiros mediante autorização e pagamento de royalties.

Haverá espaço no futuro para empresas que não levem em conta o impacto ambiental de seus negócios?

Acredito que não. Será cada vez mais difícil para esse tipo de companhia obter licenças para expandir suas atividades. Terá também dificuldade para levantar empréstimos bancários. De sua parte, os consumidores estão cada vez mais conscientes e se mobilizam nas redes sociais contra empresas que ignoram as boas práticas de sustentabilidade.

Em que estágio está o Brasil no contexto da biodiversidade?

O Brasil é responsável por 74% do aumento na área global protegida desde 2003 e até criou um mecanismo financeiro que se tornou referência para outros países, o ICMS ecológico. O imposto repassa recursos financeiros aos municípios com áreas protegidas e já é adotado em metade dos estados brasileiros. Temos também uma comunidade acadêmica ativa e reconhecida na área ambiental. Seis por cento de todo o investimento em pesquisa no mundo, na área de biodiversidade, é feito no Brasil. Isso é muito bom.

Veja, 30/01/2013, Entrevista, p. 13-15

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