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Autor: Terri do Valle Aquino
28 de Fev de 2015
Fizemos uma entrevista com Francisco Jaminawa, intérprete dos Sapanahua do Xinane, que mantiveram, em fins de junho de 2014, os primeiros contatos amistosos com os Ashaninka da aldeia Simpatia. Realizada na Assessoria Especial dos Povos Indígenas do Governo do Estado, em 19 de janeiro de 2015, a entrevista contou com a participação do sertanista Meirelles, do antropólogo Marcelo Piedrafita, da professora Maria Inês de Almeida e deste txai. Também estiveram presentes alguns ilustres representantes do povo Huni Kuin do Jordão, como o pajé Ixã (Virgolino Pinheiro Sales) e seu filho Mayá, além de dois jovens estudantes Kaxinawá de Rio Branco, o meu afilhado que também é Mayá e o Francisco de Assis Iban, que nos visitavam naquela ocasião. O Francisco retornou recentemente de uma longa viagem de mais de dois meses pela base Xinane, no alto rio Envira.
Txai: Então, txai Francisco, muito prazer em conhecê-lo! O Meirelles já tinha me falado do seu trabalho como intérprete na base da Funai. Para início dessa conversa, diga o seu nome completo, a sua idade e o lugar onde você mora atualmente.
Francisco Jaminawa: Eu sou Francisco Martins Jaminawa, tenho 36 anos e estou vivendo há sete anos em Rio Branco, onde moro agora na "Cidade do Povo" e trabalho marretando alguma mercadoriazinha.
Txai: O que os Sapanahua estão falando sobre esses seis primeiros meses de contatos com o mundo dos brancos?
Francisco: Até junho do ano passado, eles eram isolados, mas continuam um pouco isolados ainda. Eles estão falando o que? Eles querem ajuda pra saúde. Precisam de remédios pra gripe e outras doenças. Querem aprender tudo, desde pilotar barco a motor até falar no rádio da base com os parentes. Eles também estão pedindo muitas coisas. Agora, eles estão meio espalhados. Muitos já voltaram pra aldeia deles nas cabeceiras do igarapé Xinane, porque lá na base da Funai não tem ainda macaxeira nem banana pra comer. Outros desceram pra perto da boca do igarapé Machacuca, onde estão colocando roçado e fazendo uma casa num salão alto. Eles estão pedindo pra equipe de saúde da Sesai ir até a maloca deles.
Meirelles: Eles são quantos, atualmente?
Francisco: Eles falaram que ainda tem uma família grande na cabeceira do Xinane, que ainda não saiu. Na base até agora só vieram 28 parentes. Mas só 22 deles receberam as primeiras doses de vacinas. Por ora, apenas poucas famílias continuam morando na base.
Meirelles: E o resto do povo deles, Francisco?
Francisco: Eles disseram que o povo deles não tem mais quase ninguém, porque os traficantes e madeireiros já mataram muito deles, quando eles viviam no lado do Peru. Por isso, eles são poucos agora.
Meirelles: Esses parentes de recente contato são os sobreviventes das correrias realizadas por traficantes internacionais e madeireiros peruanos. Por isso, eles se mudaram para as cabeceiras do Xinane, na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Suas malocas, tapiris e roçados foram localizados pela primeira vez, em 2008, nos sobrevoos feitos pela Frente Envira.
Txai: Quantos eles são mesmo, txai?
Francisco: São no máximo umas 50 pessoas. Só tem uma aldeia deles lá nas cabeceias do Xinane. Como já falei, ainda tem uma família grande que ainda não saiu e está lá pra dentro. Até agora ninguém ainda não viu eles. São chamados de Kuranahua. Até agora ninguém saiu, porque foram baleados por traficantes e madeireiros. Eles ainda estão muito cismados e com medo de sair.
Txai: Quer dizer, então, que não havia roçado lá na base Xinane? O que eles andaram comendo por lá nesses primeiros seis meses de contato?
Francisco: Olha, macaxeira, banana, milho e outros legumes ainda estão faltando lá na base. Mas os roçados já foram colocados e estão plantados e limpos. Estão crescendo agora. Esses roçados foram colocados pelo seu Meirelles, o Lula Jaminawa, o Jabuti, o Zé Maria, o seu João Caçador, o Chicão e até mesmo pelos parentes do Xinane. Alguns foram até na aldeia deles para trazer sementes de milho massa, de pimenta e manivas de um tipo diferente de macaxeira. No início, logo que chegaram lá na base, eles comiam cocão e algum cacho de banana verde que encontravam nas capoeiras velhas dos roçados. Eles não comem veado, macaco preto, capelão, macaco prego. Eles comem porquinho, tatu e jabuti. Eles comem todos os bichos de pena, como nambu azul, nambu galinha, nambu relógio, e ainda cujubim e mutum. Mas jabuti e carne de caça não faltam por lá. O que está faltando é a mistura. Mas ninguém é onça pra comer só carne, não é?Eles dizem que lá na maloca deles tem muita macaxeira, banana, batata, cará, inhame e milho pra comer. Por isso, estão pedindo que a equipe de saúde da Sesai vá de helicóptero até a maloca deles, para vacinar e levar remédio de gripe pra eles. Porque lá tem o que comer. Eles agora querem se organizar lá na aldeia deles mesmo.
Meirelles: Depois que os parentes foram levados lá pro Xinane, eles ainda continuam visitando a aldeia Simpatia? Em novembro do ano passado, quando subi o rio Envira, encontrei vários deles visitando os Ashaninka.
Francisco: Vão lá pra conhecer melhor os Ashaninka e comer os legumes dos roçados deles. Há pouco tempo tiramos alguns deles da aldeia Simpatia e levamos pra base, mas eles foram logo embora pra aldeia deles. Falaram que iam voltar depois de duas luas, mas quando passou apenas uma lua, eles voltaram de novo. Eles são assim. Não adianta marcar tempo certo com eles ainda.
Meirelles: Esses parentes de recente contato são mesmos Jaminawa?
Francisco: Eles são Sapanahua. A língua deles é praticamente a mesma da nossa. É como se fosse o português de Portugal e o português do Brasil. Às vezes, eles falam uma palavra e nós falamos outra, mas a gente se entende muito bem. Não foi assim tão fácil dizer o nome do povo deles, porque eles tinham medo que matassem eles, por algum tipo de vingança. Eu disse assim pra eles: "O que é isso, parente? Ninguém aqui quer ofender nem matar vocês, não! A gente aqui quer proteger vocês dos madeireiros e traficantes e dos parentes brabos que são inimigos de vocês. Podem ficar tranquilos, que aqui não tem ninguém que quer fazer mal a vocês. Quando vocês estão doentes de gripe, a equipe de saúde da Sesai dá remédio pra vocês". Explico que os remédios são bons pra curar doenças de branco. E que não atrapalha as pajelanças deles, não! Por isso, eles não ficam cismados lá na base; por causa dos intérpretes, que explicam direitinho pra eles. Só depois de muita conversa que eles disseram que são Sapanahua. Também falaram que só saqueavam as aldeias e as casas dos moradores brancos, porque andavam atrás de ferramentas para colocar os roçados deles, atrás de panelas pras mulheres deles e roupas também. Quando madeireiros e traficantes começaram a matar eles do lado do Peru, eles correram pro lado de cá do Acre, como fizeram há uns dez anos atrás. Eles, inclusive, já falam algumas palavras na língua dos peruanos. Disseram que saíram num acampamento de madeireiros, falando "Xara! Xara! Ninguém quer matar vocês!", mas os peruanos, que não entendiam a língua deles, não quiseram nem saber, mandaram chumbo e bala neles. Aí vieram morar pro lado de cá, nas cabeceiras do Xinane. Quando apareceram na aldeia Simpatia, eles viram que os Ashaninka não queriam matar eles, porque não estavam armados. Aí o professor Fernando Kampa levou dois cachos de banana pra eles e deu macaxeira pra eles. Eles viram que os Ashaninka não eram valentes. Agora não querem mais andar na terra dos peruanos.
Txai: Além do Envira, eles também andavam nos rios Douro e alto Tarauacá?
Francisco: Sim, eles disseram que andavam no alto rio Tarauacá, no Jordão e no Douro também. Um deles ainda me mostrou uma farda dos servidores da Frente Envira que eles roubaram lá na base do Douro. Falaram que, no verão, andavam por todo canto, de um lado e de outro dessa fronteira do Acre com o Peru.
Txai: Você ainda acha importante a presença de intérpretes na base Xinane?
Francisco: Sem interprete fica muito difícil. O interprete ainda é muito importante para os parentes Sapanahua lá na base. Eles ficam muito cismados, quando não entendem o que estão falando ou o que está acontecendo. Perguntam logo para o intérprete: "O que ele está dizendo?". Eles ainda estão um pouco assustados. Às vezes, eles pensam que você está sovinando as coisas pra eles, que está falando mal deles. Falei pra eles que remédio é bom pra curar gripe e outras doenças, que tomar vacina é bom pra eles. Disse pra eles que no meio dos brancos tem muitas doenças, que por causa dessas doenças, como a hepatite, muitos parentes Jaminawa estão morrendo.
Txai. Os Sapanahua já estão usando roupas?
Francisco. Sim, eles já estão usando roupas. Lá no Xinane todo o tempo usa camisa de manga comprida. Lá no Envira, no inverno, pium e carapanã é praga!
Marcelo: Eles estão satisfeitos com as relações que estabeleceram agora com o pessoal da Frente Envira e com a equipe de saúde da Sesai? Tem comida suficiente lá na base Xinane? Já se estabeleceu uma relação de confiança entre eles e os funcionários da Funai e da Sesai?
Francisco: Acho que sim! Mas eles estão precisando de muitas coisas por lá. Eles dizem que se recebessem ferramentas, como terçados e machados, panelas e roupas para cada família deles, eles nunca mais iam saquear as aldeias Ashaninka e Madijá, nem as casas dos moradores brancos. Se você for até a base Xinane levando muita roupa e não der nenhuma pra eles, aí eles roubam, roubam mesmo.
Marcelo: Eles botaram roçados lá na base Xinane?
Francisco: Na maloca deles, eu não sei, não. Porque ainda não andei por lá. Mas ali na base, ajudamos a colocar um roçado junto com eles, do outro lado do rio. Brocamos, derrubamos e plantamos outro roçado para a base Xinane. E ele está todo limpo e crescendo por lá. Agora alguns parentes Sapanahua estão colocando outro roçado numa terra alta de perto da boca do igarapé Machacuca.
Marcelo: Eles já fizeram alguma casa por lá?
Francisco: Fizeram! Purú veio, Xinã Txaká veio. Eles estão fazendo uma casa e colocado um roçado lá na boca do igarapé Machacuca, que fica abaixo da base, num salão alto. Mas a maior parte dos parentes Sapanahua voltou pra aldeia deles.
Marcelo: Qual a conversa deles com os Ashaninka da aldeia Simpatia?
Francisco: Ah! Eles ainda não se entendem. Nem o Ashaninka entende a língua deles [que é um idioma da família Pano], e nem eles falam a língua dos Ashaninka [que é do tronco linguístico Aruaque]. Eles só se comunicam por gestos. Mas eles estão gostando dos Ashaninka. Eles dizem que os Ashaninka são "patarun", pessoas boas que dão as coisas pra eles. Patarun é um chefe bom, generoso, que não sovina as coisas. Se você não der presentes pra eles, você não é patarun, não. Patarun é aquele caçador, o seu João, que é mateiro da base. Este, sim, é uma pessoa boa, que não sovina nada pra eles.
Marcelo: Eles caçam a curso ou caçam em tocaias?
Francisco: É andando na mata que eles caçam. Não é de tocaia nas comidas e nos barreiros, não! Andando pela mata que eles matam as caças e pegam muito jabuti.
Maria Inês: Você acha que eles vão continuar morando na aldeia deles e só virão na base da Funai pra passear e pra tratamento de doenças?
Francisco: Acho que eles não querem morar na base, mas ali por perto. Se tiver intérprete Jaminawa, eles vêm visitar a base. Se não tiver intérprete, eles vão se embora, porque ninguém entende eles, nem eles entendem ninguém.
Txai: Quanto ganha um intérprete Jaminawa na Base Xinane?
Francisco: Olha Txai Terri, a nossa diária é bem pouquinho. A Funai está pagando a diária de R$ 53,10. Até pra dar remédio pra eles, precisa de intérprete. Nós estamos fazendo um favor pra Funai e pra Sesai. E ainda tratam a gente desse jeito, pagando uma diária pequena pra nós. Os mateiros brancos estão recebendo uma diária de R$ 80,00. Então, por que pagam para o intérprete uma diária só de R$ 53,10? E a gente não fica só conversando com eles, não. A gente também ajuda os parentes Sapanahua a fazer casa e a colocar roçado. Até limpar o lixo do terreiro da base, a gente limpa. Eu fiz um vídeo no meu celular pra mostrar isso. O Lula Jaminawa, outro intérprete, também ajudou eles fazer uma casa lá na base. Também quero ver o que a Funai vai fazer com o João. Os parentes Sapanahua gostam muito dele, que é considerado um patarun. Ele e o Chicão são pessoas boas, trabalhadoras.
Txai: Os seus parentes Sapanahua vão amansar mesmo, ou vão continuar brabos?
Francisco: Acho que, sem intérprete, os parentes Sapanahua vão continuar meio brabos, porque eles não entendem o idioma português nem as línguas dos Ashaninka e Madijá. Se tiver intérprete, eles vão entendendo melhor como é que a coisa funciona no meio de nós. Não é fácil dizer pra eles como funciona esse mundo do dinheiro. Eles ainda não entendem isso! São inocentes!
Txai: O que os parentes Sapanahua já falaram sobre esse "mundo do dinheiro", como você diz?
Francisco: Perguntam tudo, Txai! Eles falaram que querem conhecer as aldeias Jaminawa, porque nós falamos a mesma língua. Querem visitar outras aldeias Ashaninka. Já me pediram pra levar eles pra minha aldeia, quando eu for embora. Querem conhecer a cidade de Feijó e a capital Rio Branco. Aí a gente explica pra eles que na cidade tem muitas doenças, que lá é muito perigoso pra vida e a saúde deles. Aí a gente explica que eles ainda não estão preparados pra andar assim tão longe do canto deles. Assim eles entendem porque ainda não podem visitar outros lugares. Eles têm vontade de aprender tudo. Já estão aprendendo a pilotar barco a motor. Estão aprendendo a usar o rádio da base Xinane pra conversar com outros parentes. Já conversei muito com esses parentes Sapanahua. Sei que eles são tudo gente boa. E não estou só ensinado, não! Também estou aprendendo muito com eles sobre a nossa cultura antiga, tradicional. Sempre acompanho os trabalhos de cura dos pajés, quando cantam sobre a pessoa doente. Quase todos os adultos são pajés completos. Gravei no celular a cantoria deles.
Txai: Os Sapanahua também tomam ayahuasca?
Francisco: Tomam, sim! Lá na base, vi quando eles tomaram ayahuasca pra curar um doente. Eles não tomam cipó pra brincadeira, não. Tomam pra fazer uma cantoria e uma cura. Parece que a ayahuasca deles é muito forte, porque misturam as cascas batidas do cipó com as folhas da chacrona. E deixa ferver muito tempo no fogo. Eles fazem essa bebida do mesmo jeito que nós Jaminawa preparamos.
Ixã Kaxinawá: Como é que chama o cipó na língua deles?
Francisco: Chama de rabi. Agora nós, Jaminawa, chamamos de shori. Os parentes Sapanahua já me convidaram pra tomar rabi com eles, mas eu não quis não, porque fiquei preocupado de mirar muitas coisas. Disse pra eles que eu não estava mais acostumado a tomar rabi. Fiquei cismado que eles pudessem jogar a pressão do cipó em cima de mim. Rabi não é brincadeira, não! É sério!
Txai: E a cantoria deles?
Francisco: A cantoria de rabi é bem bonita. É de raiz mesmo!
Meirelles: Você entende a língua que eles estão cantando pra curar os parentes deles? Parece diferente da língua falada por eles, não é?
Francisco: É diferente sim! Eu não entendo a língua cantada deles, não! Só pajé formado entende o que eles estão cantando. Eles cantam em cima do doente. Mas não entendo o que o canto deles está dizendo. Quem entende são os pajés. Parece que eles cantam em outra língua. Só os mais velhos entendem. Eu, que não sou pajé, não entendo o que estão cantando.
Txai: O que os indigenistas da Funai deveriam fazer pra melhorar suas relações com os parentes Sapanahua?
Francisco: Tem que fazer um projeto dentro da Funai pra que eles possam receber o que eles estão pedindo. Tem que ouvir o que eles estão dizendo, o que tão falando.
Txai: E os parentes Sapanahua tão pedindo tão pouco, né?
Francisco: Eles estão pedindo terçado 128 com cabo de arame, que é o melhor que tem. Também estão pedindo machado desses bons, que não quebram. Querem panelas de alumínio para as mulheres cozinhar, porque gostam de comer cozido e com caldo. Querem redes, cobertas, e mosquiteiros. Estão precisando de roupa, porque lá na base tem muito pium e não dá pra andar nu por lá. Também não dá pra dormir direito sem mosquiteiro, porque lá tem muito meruim e carapanã.
Txai: Pessoalmente, sou favorável que o Governo do Estado atenda às reivindicações dos parentes Sapanahua. Só assim eles vão deixar de saquear as aldeias e as casas dos moradores brancos do entorno. O Governo, que já vem apoiando as comunidades Ashaninka e Madijá do Envira, poderia ajudar também esses índios recém-contatados do Xinane. Eles, igualmente, estão sendo impactado pela pavimentação da BR-364, no trecho Feijó-Sena Madureira. O próprio contato deles com os Ashaninka da aldeia Simpatia já é uma consequência disso. Acho que o nosso governador Tião Viana poderia incluir os Sapanahua nos programas governamentais destinados aos povos indígenas no Estado.
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