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Entre os selvagens

Veja, Antropologia, p. 76-77
06 de Mar de 2013

Entre os selvagens
O mais famoso antropólogo vivo, Napoleon Chagnon, relata em livro sua vida entre duas tribos perigosas: a dos ianomâmis e a de seus colegas cientistas

Felipe Vilicic

Napoleon Chagnon entrou pela primeira vez em uma aldeia ianomâmi em 28 de novembro de 1964. Tinha 26 anos e esperava ser recebido por um "nobre selvagem", visão da vida primitiva aprendida em sete anos de estudos na Universidade de Michigan. Não havia vestígio de vivência gentil e pacífica na aldeia Bisaasiteri, localizada na selva amazônica venezuelana, próximo á fronteira com o Brasil. Os homens estavam em pé de guerra, furiosos com o rapto de sete mulheres na noite anterior. Para espanto do recém-chegado, um fio de muco verde escorria do nariz dos índios até o peito, resultado da inalação de uma droga alucinógena chamada ebene. Cinco das mulheres foram recuperadas naquela mesma manhã, numa batalha sangrenta com os homens da aldeia próxima. O choque de realidade daquele primeiro encontro, que Chagnon narra com perceptível prazer nas primeiras páginas de suas memórias, Noble Savages: My Life among Two Dangerous Tribes - The Yanomamö and the Anthropologists (Nobres Selvagens: Minha Vida entre Duas Tribos Perigosas - Yanomamö e os Antropólogos ), lançadas há duas semanas nos Estados Unidos, representou uma lição que iria orientar seu trabalho: ele se tornou cético a respeito do que os antropólogos costumam ensinar sobre o mundo.
Aos 74 anos e aposentado desde 1999, Chagnon é o mais famoso antropólogo vivo. Ele é também o mais controverso deles. A fama decorre da consistência, seriedade e repercussão de seu trabalho. Seu primeiro livro. Yanomamö, de 1968, vendeu perto de 1 milhão de exemplares e é leitura obrigatória em universidades americanas. As controvérsias se devem a duas de suas ideias. A primeira: Chagnon afirma que os ianomâmis valorizam a violência e a guerra. Nos primeiros dezessete meses que passou entre os indígenas, ele estimou que 40% dos ianomâmis já tinham matado outro índio. As disputas mais frequentes - e essa é a segunda tese, de Chagnon - eram por mulheres. O antropólogo declara que a violência era uma forma de os homens garantirem a transmissão de seus genes. Um assassino, sujeito admirado pela tribo, tem mais filhos que os homens sem sangue nas mãos.
A primeira tese irritou muitos antropólogos por destroçar a teoria do "bom selvagem", que Chagnon ironicamente adota como título de seu livro. Em voga desde o Iluminismo, no século XVIII, o conceito supõe que o homem solto na natureza é pacífico, altruísta e igualitário. A segunda afirmação contraria outra ideia cara aos intelectuais, a de que a violência humana decorre da distribuição desigual de riquezas. Os ianomâmis viviam na idade da pedra, sem mudar seu modo de vida há milhares de anos.
No mundo idealizado por antropólogos de gabinete e militantes da causa indígena, essa gente de vida igualitária deveria viver pacificamente. Já Chagnon demonstrou que acontece exatamente o oposto. Os contrariados viraram seus canhões contra o mensageiro.
É por isso que Chagnon dá ao relato de suas quase quatro décadas de trabalho na floresta o subtítulo de "Minha vida entre duas tribos perigosas: de ianomâmis e a de antropólogos". Conviver com esses últimos, em especial, foi um tormento maior que os perigos encarados na Amazônia, que incluem ataques de onça e de cobra ameaçadores. Sem esquecer os índios que o encontraram dormindo e decidiram cortar sua cabeça a machadadas. Só desistiram porque o antropólogo não desgrudava da espingarda. A descrição que Chagnon fez da cultura ianomâmi, divulgada em livros, artigos, revistas e filmes, era inaceitável para muitos antropólogos, especialmente aqueles que se recusam a admitir que a violência faz parte da natureza humana.
A acusação mais drástica apareceu no livro Darkness in El Dorado (Escuridão em Eldorado), do jornalista americano Patrick Tierney, publicado em 2000. Ele acusou Chagnon de ter infectado propositalmente os ianomâmis com sarampo, matando centenas. Eram alegações forjadas, hoje desacreditadas. Investigações feitas por autoridades americanas mostraram que Chagnon, na verdade, ajudou a vacinar os índios contra uma epidemia de sarampo que já estava em curso, levada para a reserva pela filha de um missionário. "É comum discordar de teorias. Mas demonizar um colega por relatos honestos que faz de seu trabalho em campo é antiético e maldoso", disse a VEJA o etnólogo americano Daniel Everett, que viveu entre indígenas amazônicos. "A inveja deve ter algum papel nas campanhas que denigrem minha imagem, mas penso que em geral é um caso de antropólogos que veem a antropologia mais como forma de fazer política do que como uma atividade acadêmica", explicou Chagnon a VEJA, na semana passada. Nas universidades, é possível identificar as tribos acadêmicas pela grafia adotada nesse assunto: Yanomamö é a usada por Chagnon e seus partidários. Yanomami ou Yanomama é a preferida por seus inimigos. Tribos perigosas.

Veja, 06/03/2013, Antropologia, p. 76-77

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