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Empresário quer expulsar índios da ocupação Parque das Tribos para construir um Minha Casa, Minha Vida que não existe

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br
Autor: Elaíze Farias e Andrezza Trajano
09 de Jul de 2016

Na década de 1980, quando começou a migração de indígenas das aldeias do interior do Amazonas para Manaus em busca de estudo, tratamento de saúde e trabalho, o casal de índios João Diniz Albuquerque, do povo Baré, e Raimunda da Cruz Ribeiro, da etnia Kokama, partiu da região do Médio Rio Solimões, próximo ao município de Tefé, no oeste do estado.

Sem local para morar na cidade grande, o casal e os filhos se deslocaram primeiro para o entorno da rodovia BR-174, que liga o Amazonas a Roraima. Depois, a família ocupou uma faixa de terra à margem do rio Tarumã-Açu, na zona oeste de Manaus. Esta terra se consolidou como a comunidade Cristo Rei.

Seu Diniz morreu em 2004 com 55 anos de idade. A partir de 2012 a família começou a ocupar o antigo roçado da comunidade Cristo Rei. Nesta área, em 2014, foi fundada a comunidade Parque das Tribos, onde vivem em torno de 132 famílias (cerca de 660 pessoas) de 30 etnias. Entre as etnias estão Apurinã, Baré, Mura, Kokama, Karapano, Tikuna, Miranha, Wanano, Sateré-Mawé, Tukano e Tupinambá - sendo este último grupo vindo de uma aldeia na Bahia.

Dona Raimunda, hoje com 75 anos, disse em entrevista à Amazônia Real que vivenciou toda a história da origem das comunidades Cristo Rei e Parque das Tribos.

"Um senhor, já falecido e que também tinha terreno na região do Tarumã, falou para o meu esposo que essa área [do Cristo Rei/Parque das Tribos] não tinha dono, porque o dono havia falecido há 25 anos e que tudo estava abandonado. E como meu marido gostava de trabalhar com agricultura, ele [o senhor] falou para meu marido: 'vá e roce, faça sua casa e vá morar ali, zele por aquilo que vai ser seu'", conta dona Raimunda Kokama.

O terreno de 1,4 milhão de metros quadrados onde fica a comunidade Parque das Tribos é alvo de uma disputa judicial e da especulação imobiliária. No último dia 4 de julho, o desembargador Carlos Moreira Alves, do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, em Brasília, indeferiu um pedido da Procuradoria Federal, representando a Fundação Nacional do Índio (Funai), para suspender a decisão de reintegração de posse das terras ocupadas pelos índios determinada pela juíza Marília Gurgel, da 3ª Vara da Justiça Federal, em 2015.

A reintegração de posse atende ação judicial do empresário Hélio Carlos D´Carli, que pertence a uma família tradicional de políticos e comerciantes de Manaus. Ele diz que é o proprietário do imóvel onde os índios fundaram a Parque das Tribos. Na ação, o empresário alega que as terras "invadidas pelos índios em junho de 2014 serão vendidas para a Caixa Econômica Federal e destinadas ao programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal."

A Amazônia Real procurou a Caixa Econômica Federal e, para surpresa, o banco negou que esteja atualmente em processo de aquisição do imóvel do empresário Hélio D´Carli. "A Caixa esclarece que a contratação não foi efetivada, dentre outros motivos, em função de o terreno estar situado em área não destinada à Habitação de Interesse Social (AEIS), conforme Plano Diretor da Prefeitura de Manaus. A Caixa ressalta que não existem outras áreas em análise na localidade [ou seja no terreno de D´Carli]", respondeu a assessoria de imprensa da Caixa.

No recurso indeferido pelo desembargador Carlos Moreira Alves, a Funai contestou a legitimidade do imóvel de Hélio Carlos D´Carli e pediu a revogação da reintegração de posse. Na decisão, o magistrado disse que "indefiro o pleito [a suspensão da reintegração] por não identificar elementos que afastem o caráter de invasão de terra alheia evidenciado na demanda (...). Não há espaço para os questionamentos sobre a legitimidade do título de propriedade do imóvel, que evidentemente não servirão para descaracterizar o esbulho possessório [crime de usurpação]. "

A juíza Marília Gurgel decidiu pela reintegração de posse do Parque das Tribos em 12 de novembro de 2015, atendendo a uma ação de Hélio Carlos D´Carli na qual ele afirma que venderá o terreno para a Caixa. Na decisão, ela diz que a ocupação desordenada dos indígenas "com construção de benfeitorias ilícitas causou danos como desmatamento de área sem qualquer autorização/licenciamento ambiental e observância à legislação ambiental para tanto, devem ser adotadas, COM PRIORIDADE (sic), medidas para a reintegração de posse".

A decisão de reintegração de posse trouxe um clima de tensão e insegurança às famílias do Parque das Tribos. A reportagem da Amazônia Real visitou a comunidade. Os indígenas vivem em condições sociais precárias, sem acesso a direitos básicos (como água e energia) e tiram seu sustento quase que exclusivamente de programas sociais.

Dona Raimunda Kokoma está muito preocupada com a possível reintegração de posse a favor do empresário Hélio D´Carli. Ela cobra da Funai a regularização da terra. "Estou preocupada tanto com os meus parentes de sangue quanto com os outros. Preocupo-me com quem não tem uma moradia digna, o seu pedaço de chão", disse.

No dia 18 de abril de 2016, a juíza Marília Gurgel já havia suspendido a reintegração de posse da comunidade Parque das Tribos, o que trouxe uma certa tranquilidade. Ela concedeu um prazo de 30 dias para que o Ministério Público Federal apresentasse uma solução para a questão, "sob pena de prosseguimento das medidas de reintegração". O prazo expirou e a magistrada ainda não divulgou uma nova decisão, o que deixa os indígenas apreensivos.

O procurador federal Bruno Arruda, da Advocacia Geral da União (AGU), que acompanha o processo judicial do Parque das Tribos representando a Funai, disse que cabe recurso ainda contra a reintegração de posse no TRF1, já que a decisão do desembargador Carlos Moreira Alves foi monocrática. "A Advocacia Geral da União pode entrar com um recurso para apressar a decisão na turma do TRF1. Mas, isso só pode ser feito pela Procuradora Regional Federal. Quando entramos com o pedido de suspensão [da reintegração] era na expectativa do desembargador acatar o efeito. Por uma decisão dele próprio, relator", explicou o procurador.

A faixa de terra da comunidade Parque das Tribos fica nos limites de uma grande área, a Cidade das Luzes, que já foi ocupada por famílias não-indígenas e indígenas e que passou por uma grande reintegração de posse em dezembro de 2015, por determinação da Vara Especializada em Meio Ambiente e Questão Agrária da Justiça do Amazonas. Daí a tensão na região. Em outra ação, a Polícia Civil realizou na Cidade das Luzes a operação "Blackout", e prendeu sete índios. Em outra ocupação, a Paxiubau, o índio Anderson Rodrigues de Souza, 30 anos, da etnia Mura, foi morto por um tiro disparado por um policial.

Título é do início do século 20

A Secretaria de Política Fundiária (SPF) do governo do Amazonas diz que as terras do Parque das Tribos "foram destacadas do patrimônio público estadual e titulada em favor de Francisco Gonçalves de Amorim, em 01/12/1903". "Como é uma área particular, está fora da competência da SPF. Cabe aos cartórios de registros de imóveis acompanhar o seu desmembramento."

A SPF diz que não sabe informar se Francisco Gonçalves de Amorim adquiriu as terras do governo do Amazonas ou de um outro vendedor.

A superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) também foi procurada pela Amazônia Real para esclarecer a cadeia dominial do imóvel, mas não respondeu aos questionamentos enviados.

A reportagem procurou o empresário Hélio Carlos D´Carli para falar se comprou o terreno do espólio de Francisco Gonçalves de Amorim, mas ele não atendeu à solicitação de entrevista. O seu filho, Hélio D`Carli Filho, atendeu uma das ligações e pediu que as perguntas fossem enviadas por e-mail, mas não respondeu até o momento. O advogado da família, João Carlos Bezerra da Silva, não foi localizado para falar sobre a ação judicial.

Advogada denuncia ação policial

A advogada Danielle Delgado Gonçalves, que é responsável pela defesa dos moradores da comunidade Parque das Tribos e é presidente da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil no Amazonas, afirma que além da instabilidade causada pela disputa judicial, supostas ações policiais têm assustado os moradores da comunidade.

"O que tem havido constantemente são ações ilegais por parte de um grupo da Polícia Militar, sob a alegação de cumprimento de ordem judicial que, neste momento, não existe", afirmou ela.

Sobre essas ações, a advogada afirma que tem registrado oficialmente junto aos órgãos competentes, como Ministério Público e Corregedoria da Polícia Militar, para que os possíveis responsáveis sejam penalizados. Ela também tem preparado ações reparatórias contra o estado do Amazonas.

Na manhã de 03 de março deste ano, o cacique Messias Kokama denunciou à agência Amazônia Real que policiais militares expulsaram ao menos 80 famílias indígenas de uma área também de interesse do empresário Hélio D´Carli, que é denominada Parque das Tribos 2. Essa área faz limite com as terras da área já reintegrada chamada de Cidade das Luzes, que é uma Área de Proteção Permanente (APP) da Prefeitura de Manaus.

Segundo o cacique Messias Kokama, os policiais não apresentaram notificação judicial de reintegração de posse. "Com tratores, os policiais destruíram os barracos das famílias", disse.

Outra ação suspeita da PM, segundo o cacique Messias Kokama, aconteceu no dia 1o de março, quando policiais teriam ameaçado os indígenas do Parque das Tribos 2. "Alguns barracos foram incendiados." O Parque das Tribos 2 é uma área adjacente ao Parque das Tribos.

A Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa do Comando das Rondas Ostensivas Cândido Mariano (Rocam), da Polícia Militar do Amazonas. O comando confirmou que "houve, no dia 03 de março deste ano, uma continuidade de reintegração de posse no terreno da Cidade das Luzes, no bairro Tarumã, na zona oeste da capital", e negou que a ação tenha acontecido no Parque das Tribos 2, como afirmam os indígenas.

Segundo o Rocam, a área da Cidade das Luzes foi desocupada por determinação judicial, em 2015. "É [a Cidade] alvo de uma operação policial contínua e não pode ser invadida, porém, entre 10 ou 15 famílias já estavam instaladas, portanto, dado mais uma vez cumprimento na retirada dos invasores, que saíram de maneira pacífica e sem oferecer resistência", diz a nota da PM.

O comando da Rocam diz que o major Paulo Emílio, responsável pela ação na Cidade das Luzes, negou "agressão ou expulsão de indígenas residentes na comunidade Parque das Tribos 2."

"O limite foi respeitado, em razão da área em que estão localizados ser federal e por não possuir competência para realizar quaisquer atos como mencionado na denúncia, portanto, são inverídicos", diz a nota, esclarecendo que "quaisquer denúncias sejam formalmente registradas e todas serão apuradas pelo setor competente", afirmou.

Em entrevista à reportagem, o juiz Adalberto Carim, titular da Vara Especializada em Meio Ambiente e Questão Agrária, disse que desconhecia a ação da Polícia Militar em 3 de março deste ano nos limites entre as ocupações Parque das Tribos e Cidade das Luzes.

"Daqui não saiu nenhuma decisão judicial categórica nesse sentido. Teria que dizer que se tratava de uma ordem judicial que teria que ser feita no Parque das Tribos. Mas não existe nenhuma determinação minha nesse sentido. A minha determinação se ateve à Cidade das Luzes dentro das coordenadas geográficas que estavam traçadas no procedimento", afirmou Carim.

Indagado se a ação do dia 03 de março poderia ter sido uma continuidade da operação ocorrida em dezembro na Cidade das Luzes, como afirma a Rocam, o magistrado também negou. "A PM, provavelmente, deve ter uma manifestação ou uma solicitação para que atue em determinada operação, mas isso não saiu daqui", afirmou o juiz Adalberto Carim.

O que dizem os órgãos públicos?

O procurador federal Bruno Arruda atua no caso do Parque das Tribos representando a Funai. Ele diz que há "gravíssimos indícios de irregularidades no título de domínio que fundamentam o ajuizamento da ação possessória", do terreno do qual o empresário Hélio D´Carli diz que é proprietário.

Membro da Seção de Matéria Agrária, Ambiental e Indígena da AGU, Arruda tem sustentado no processo, desde que pôde se pronunciar após a anulação da primeira decisão de reintegração, que existem vícios na matrícula que os autores apresentam como sendo do imóvel.

"A Funai afirma que é necessário que eles [autores da ação] apresentassem a cadeia dominial completa da matrícula [documento que atesta o título de propriedade], desde a origem do destaque do patrimônio público. A matrícula dos autores descumpre obrigação da Lei de Registros Públicos de indicar o número do registro anterior, violando o princípio da continuidade do registro, além de trazer informações contraditórias quanto à origem da própria matrícula", disse o procurador à Amazônia Real.

Por este motivo, conforme Bruno Arruda, a Funai pediu que o Tribunal Regional Federa da 1ª Região (TRF) intimasse a Secretaria de Política Fundiária do Amazonas para se manifestar sobre a incidência de outras matrículas sobre a mesma área. O pedido faz parte do agravo de instrumento que foi indeferido pelo desembargador Carlos Moreira Alves no último dia 4.

O procurador destacou que a sobreposição de matrículas já havia sido levantada no processo pelo Ministério Público Federal, e a própria Funai demonstrou que os autores da ação não exerciam a posse do imóvel porque a área estava abandonada desde que foi adquirida por eles, em 1997. No entanto, essas alegações não foram contempladas nas decisões da Justiça Federal do Amazonas que determinaram a reintegração de posse.

"Tanto estava abandonada que foi ocupada por centenas de pessoas. Os autores fundamentam a posse no título de propriedade que apresentaram e na alegação de que estariam negociando a venda do imóvel para a Caixa Econômica Federal, para o programa Minha Casa, Minha Vida. Mas a Funai demonstrou que isso não era possível porque, na matrícula do imóvel, apresentada pelos autores, consta um gravame real em favor de terceiros. Em suma, o imóvel estaria hipotecado em favor de outra pessoa. Como é que a Caixa Econômica iria comprar um imóvel assim? ", questiona Arruda.

O procurador explicou que, apesar de todas essas argumentações, o juiz da 3ª Vara Federal rejeitou as alegações da Funai, e afastou a discussão dos vícios no título de propriedade com base na distinção entre posse e propriedade. "O juiz afirmou que não poderia discutir questões relativas ao domínio em uma ação possessória e entendeu que a negociação com a Caixa Econômica Federal seria uma prova da posse do autor [da ação]."

Para a Funai e para a Procuradoria Federal, não há urgência para o despejo das famílias indígenas, quando se considera que a área estava abandonada há quase 20 anos.

"A Funai também destaca a temeridade de se despejar essas famílias com base em uma decisão precária e quanto a uma área que muito provavelmente é fruto de uma aquisição irregular pelos autores. Há risco de conflito, de violação de direitos humanos e, inclusive, de morte de pessoas, haja vista o que ocorreu na Cidade das Luzes [ocupação próxima ao Parque das Tribos que passou por reintegração]. O despejo deve ser a última medida a ser tomada", defende ele.

"Se os autores não se incomodaram em deixar o imóvel abandonado desde 1997, não existe razão para tanta pressa agora."

A Amazônia Real tentou falar com o coordenador da Funai em Manaus, Edivaldo Oliveira, para que pudesse responder sobre a atuação do órgão no caso, mas ele não foi encontrado e nem retornou os contatos.

Defensoria questionou titularidade

A Defensoria Pública da União (DPU) também atua na defesa das famílias indígenas na ação de reintegração de posse e, assim como a Procuradoria Federal, questiona a legitimidade do título do imóvel.

O defensor público Pedro Rennó Marinho disse à Amazônia Real que há um esforço para evitar que as famílias indígenas sejam retiradas da área.

"A DPU atua extrajudicialmente nas tratativas dos órgãos envolvidos na reunião de maio para buscar uma solução consensual que permita a manutenção da população no local, ou, em último caso, o seu digno encaminhamento para outro espaço, em que possa ter garantida toda a proteção constitucional a que tem direito", afirmou.

Marinho disse que a liminar de reintegração de posse está suspensa diante do reforço da tese de ilegitimidade do autor pela manifestação do estado do Amazonas.

"Buscaremos a confirmação dessa ilegitimidade, e negociar com o estado a possibilidade de manutenção dos moradores no local", afirmou o defensor público.

O Ministério Público Federal também diz buscar entendimento neste sentido, segundo informou à agência Amazônia Real. Em nota, disse que defende judicialmente a não reintegração de posse ou, pelo menos, a realocação das famílias para área adequada, bem como o cumprimento do Manual da Ouvidoria Agrária Nacional, em relação à ocupação Parque das Tribos.

No dia quatro de maio deste ano, o MPF reuniu-se com vários órgãos do estado e da União para tratar do assunto. Procurado para informar sobre as questões tratadas, o MPF respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que na reunião foram definidos alguns encaminhamentos, entre eles, informações sobre a situação fundiária da área ocupada pela comunidade, projetos habitacionais do município em andamento e o público atendido. Ainda foi informado sobre as famílias cadastradas, lista dos beneficiários cadastrados pela Superintendência de Habitação do Amazonas (Suhab) e projetos habitacionais para a cidade de Manaus e entorno, possíveis áreas para realocação das famílias na região da BR-319 e informações gerais sobre as ocupações urbanas na capital amazonense.

Conforme o MPF, as informações coletadas serão juntadas, posteriormente, à ação de reintegração de posse, dentro do prazo estipulado na decisão judicial.

"O MPF/AM destaca que o caso não envolve restritamente os direitos indígenas, mas sim o direito à moradia, que é mais abrangente e deve ser garantido pelo poder público a todos os cidadãos, indistintamente, mediante políticas públicas", afirma a nota.

Um dos trabalhos será o de georreferenciar a área fundiária para certificar o perímetro e os limites da área pleiteada por Hélio Carlos D´Carli e o espaço que os indígenas reivindicam. Um dos objetivos também é confirmar se há sobreposição de títulos, já que os índios afirmam que o local onde está o Parque das Tribos é público.

"Vivemos em harmonia", diz Lutana

Na comunidade Parque das Tribos a líder é Lucenilda Ribeiro Albuquerque, 44 anos, conhecida como Lutana Kokama. Ela é filha do casal João Diniz Albuquerque e Raimunda da Cruz Ribeiro, os fundadores da comunidade Cristo Reis.

Lutana diz que as famílias foram assentadas no Parque das Tribos em lotes, de maneira organizada. Os indígenas dispõem de um mapa da área que identifica número e rua das casas, moradores e etnias.

"Precisamos urgentemente de um documento, de uma garantia de que podemos permanecer na terra. Não invadimos, avisamos as autoridades que íamos entrar de maneira legal", diz

Conforme Lutana, a população vive em harmonia. "A gente tem uma lei, regra, de que não pode haver bebida alcoólica na comunidade nem 'taberna' para vendê-la. Não temos moradores com envolvimento no tráfico de drogas, nem brigas. Vivemos em harmonia, não há conflitos."

O cacique da etnia Kokama no Parque das Tribos é Messias Martins Moreira, primo de Lutana. Ele diz que as famílias fazem roça, pescaria, colhem frutos e material para fazer artesanato no lugar.

Segundo ele, toda a área pleiteada pela comunidade foi georreferenciada pela Funai. Por isso, as famílias ocupam o local de maneira organizada. "Não se trata de uma invasão, mas, sim, de um projeto de moradia indígena. Esse é o grupo de maior população indígena. Quero regularizar a área e assentar 1.500 famílias. Vamos buscar parcerias para a construção de moradias populares", disse o cacique Messias Kokama.

Ao mesmo tempo em que lutam pela regularização da comunidade Parque das Tribos, os indígenas enfrentam inúmeras dificuldades para viver em um lugar que não dispõe de serviços públicos. Não há energia elétrica e saneamento ambiental com rede de água tratada e esgoto.

A escola indígena que existe na comunidade é fruto do esforço do grupo, que improvisou o espaço com cobertura de palha e bancos de madeira. Professores indígenas são responsáveis pelo espaço, que conta com 90 alunos, com idade entre quatro e 40 anos.

A professora Ana Cláudia Martins Tomás, 37 anos, que é índia da etnia Baré, é casada com o outro cacique da comunidade, da etnia Karapana, Joilson da Silva Paulino, 39 anos. Ela afirma que as famílias dependem, quase que em sua totalidade, do Bolsa Família.

Desde 2014, quando a comunidade foi criada oficialmente, em 18 de abril, segundo Ana Cláudia, os moradores buscam o reconhecimento da Funai, da Defensoria Pública da União e da Advocacia Geral da União das terra do Parque das Tribos. "Mas, de lá para cá, ela diz que nada foi feito. Nem para regularizar a propriedade, dando segurança jurídica aos indígenas, nem para melhorar a qualidade de vida, com a oferta de serviços públicos", diz.

Joilson Paulino acredita que poder público não atende a essas necessidades [de infraestrutura básica], pois sempre alega que "se tratam de "invasores".

"Mas na verdade, eu, como liderança indígena, vejo que as terras de todo o Brasil, na Amazônia principalmente, foram invadidas por empresários e portugueses. Dizem que estamos numa terra que tem dono. Mas já vivíamos aqui antes mesmo de grandes empresários terem posses dessas terras. O que me entristece é ver que hoje eles fazem tanta lei, decreto, portaria, resolução, sendo tudo voltado para os benefícios deles, nenhuma ação para classes sociais de minorias étnicas, nenhum planejamento, nenhuma ideia é colocada diante do poder público para suprir essas necessidades", diz.

Procurada para falar sobre as ações públicas no Parque das Tribos, a Prefeitura de Manaus disse que "a área em que se encontram os indígenas é particular e encontra-se sub-judice, não sendo, portanto, possível realizar quaisquer intervenções de urbanização no local".

Política de habitação para indígenas

O filósofo Glademir Sales dos Santos, 50 anos, faz parte de um grupo de pesquisadores preocupados com as questões amazônicas e sua produção de conhecimento que envolve comunidade e povos tradicionais. Ele conhece de perto a realidade dos indígenas que vivem no Parque das Tribos.

Santos é mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia e doutorando nesta mesma área pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Ele integra o grupo de pesquisa Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e faz parte do diretório que está atualizando o mapa situacional das organizações indígenas e suas comunidades. O último foi feito em 2008.

O pesquisador diz que tem procurado sistematizar o processo de organização da comunidade Parque das Tribos, "refletindo com as lideranças seus próprios saberes produzidos no interior da sua organização, que podem ser considerados propostas que ajudam na sua relação com o estado, em que implicam luta e diálogo com os seus setores".

"Ao mesmo tempo me propus, com base na relação de pesquisa estabelecida consentida pelas lideranças, trazer essa forma organizativa ao âmbito acadêmico na forma de um capítulo de tese, um recorte ilustrativo, uma reflexão acadêmica intitulada 'processo de reconhecimento dos indígenas na cidade', que envolve uma discussão teórico-prática sobre a relação estado e etnicidade, a partir da força do étnico, que está vigente nestas formas organizativas e pluriétnicas. Este recorte será devolvido para a própria organização para seus fins práticos e de reflexão das suas práticas", explica.

Durante suas pesquisas, Santos detectou que a comunidade Parque das Tribos é resultado de trajetória de famílias indígenas, entre elas, a dos pais de Lutana, considerada uma liderança no grupo.

"Esta [Lutana] e sua mãe [Raimunda da Cruz Ribeiro] passam a delimitar terras de uso comum, dos recursos naturais, ao se estabelecerem na área, atualmente chamada de comunidade Cristo Rei", conta o filósofo.

O pesquisador diz a comunidade Parque das Tribos é uma extensão das casas dos primeiros núcleos familiares da comunidade Cristo Rei, sendo administradas, sobretudo, por famílias pluriétnicas, como podem constatar na história de Raimunda e Diniz, pais de Lutana.

O pai João Diniz Albuquerque e a sua mãe Raimunda da Cruz Ribeiro prescrevem uma estratégia de casamento de duas etnias: Baré e Kokama como "exterioridade mútua dos elementos que compõem uma realidade", afirma.

Conforme Santos, dona Raimunda aproveitou, com facilidade, os recursos naturais, investindo no plantio; uns cultivados, outros já encontrados na mata. "Ela [dona Raimunda, ao falar com o filósofo] lembrou-se da cana, abacaxi, maracujá, açaí, cará roxo e cará branco, concluindo dizendo que havia uma casa de farinha e, onde fica a casa do Messias Kokama [sobrinho dela], tinha um 'carazal' que cultivavam", disse.

Ainda durante a pesquisa do filósofo Glademir Santos, as lideranças kokama explicaram que na área que corresponde à ocupação Cidade das Luzes, que faz limite com a Parque das Tribos, o Seu Diniz e os poucos vizinhos caçavam e coletavam frutas. Nessa área havia cipó, palha, uixi, bacaba e patauá.

Para o pesquisador, o Parque das Tribos mostra "uma forma organizativa interna que se apresenta como interpelação diante da ausência de política fundiária específica que compreende condições básicas para criarem autonomia financeira e melhores condições de vida".

Representa, ainda, "que a cidade também pode ter espaços em que os afetos, a solidariedade e os vínculos culturais podem viabilizar propostas de política de habitação diferente para os indígenas, marcado pelos valores dos saberes tradicionais e expressões culturais elaborado no interior da pluralidade étnica".

Conforme o pesquisador, resolver a questão que envolve a posse da terra é a medida mais urgente no Parque das Tribos. "Eles [moradores] temem uma reintegração de posse, que, por si só, já é a consumação da violência praticada pelos atos do estado."

Numa outra ponta, Glademir Santos diz que o preconceito assusta os moradores da comunidade. "Eles sofrem mais com a discriminação, cujos fatos se tornam frequentes, praticados por estudantes não-indígenas que moram no entorno. Há depoimentos que falam disso nas paradas e nos ônibus", relata.

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