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Empresa cidadã extrai e repara

O Globo, Razão Social, p. 14-16,18-9
Autor: ACSELRAD, Henri; MIRANDA, Carlos Alberto Bezerra de
07 de Nov de 2005

Empresa cidadã extrai e repara

Aplaca com os dizeres "Não há vagas" teve que ser deixada na porta do escritório de construção do Complexo Madeira, de Furnas Centrais Elétricas, em Porto Velho, para evitar as filas imensas que se formavam ali todos os dias de manhãzinha. Eram pessoas desempregadas, desesperadas à procura de qualquer coisa para fazer e de qualquer salário.
Cento e quarenta e cinco delas já foram beneficiadas diretamente, com uma cadeira para se sentar no escritório; um carro para dirigir, enxada para capinar. Outras 1.800 ganharam uma colocação no mercado de trabalho fazendo algum serviço indireto para a montagem da infra-estrutura para estudos, pesquisas e transferência de comunidades. Na construção do Complexo Hidrelétrico Rio Madeira, que pode começar somente daqui a quatro ou cinco anos, este número vai aumentar para 40 mil empregos no pico da obra. O Complexo vai gerar 6.400 megawatts. Todo o sistema Furnas gera 9.467 megawatts.
Por estes e outros motivos, o prefeito Roberto Sobrinho, de Porto Velho, está feliz com a chegada de Furnas à sua cidade. Mas o histórico do lugar o deixa apreensivo, de pé atrás:
- Isso aqui é um garimpão. Todo mundo chega, extrai nossas riquezas e depois vai embora deixando um rastro de problemas sociais. Foi assim no ciclo do ouro, de madeira, de casseterita... Isso nós não vamos deixar que aconteça novamente - alerta.
Para se armar contra este tipo de atitude, Sobrinho se aproveita da nova "onda" de responsabilidade social corporativa que vem se impregnando nas empresas e faz exigências, cria negociações.
- Não podemos deixar, por exemplo, que as pessoas sejam deslocadas do lugar onde sempre viveram. Já que vão alagar a área, então é só puxar mais para trás e construir ali mesmo as casas. Quero evitar que os moradores se sintam alijados, deslocados, e acabem se marginalizando na cidade - diz ele.
São 19 comunidades ribeirinhas, cerca de 3 mil pessoas que serão transferidas para a construção das duas barragens - Santo Antônio e Jirau - a primeira a 40km e a segunda a 140km do centro de Porto Velho. Furnas sabe que é um trabalho difícil, e para isso montou já um escritório na cidade e convidou para trabalhar com eles uma assistente social que conhece as comunidades. Sandra Regina Nunes dos Santos foi nomeada assessora técnica da área de responsabilidade social do Complexo Madeira. É ela quem vai para o campo, junto com o chefe do escritório Afonso de Andrade Neto para dar a notícia às pessoas:
- Estamos falando de comunidades historicamente abandonadas. Sem renda fixa, sem documentos que comprovem serem donos destas terras, sem desenvolvimento. Prioritariamente resolvemos fazer um trabalho com as mulheres. Há muitas delas que pescam todos os dias, de sol a sol, e não se julgam profissionais. Quando você pergunta o que fazem, elas dizem que ajudam seus maridos - diz Sandra.
Sempre perto de locais onde há barragens, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), braço do Movimento dos Sem Teto (MST), ainda está timidamente se colocando. Em Santo Antonio, que será totalmente alagado, Fabiane Damasceno representa o movimento quando seu marido não está.

Lições de democracia

Henri Acselrad
Professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq

Em meados da década de 1980, as empresas do setor elétrico brasileiro começaram a perguntar-se sobre como deveriam ajustar seus procedimentos ao processo de democratização então em curso no país. Confrontados aos danos que, durante a ditadura militar, foram causados ao meio ambiente e às populações atingidas pelos grandes projetos hidrelétricos, muitos profissionais começaram a buscar caminhos para criar uma cultura democrática no interior deste setor. Recorreram para tanto a cientistas sociais e a consultores. Mas o aprendizado mais substancial então desencadeado veio do contato com as próprias populações atingidas. O conteúdo democrático da experiência que começava a ser elaborada pelos grupos atingidos advinha, basicamente, da capacidade de eles verem seu próprio sofrimento - perdas culturais, patrimoniais, ecológicas, de sociabilidade e saúde - não como resultado natural e inevitável dos "imperativos do progresso", mas como efeito de escolhas políticas de cujo debate não haviam participado. Tal descoberta deu-se através de uma reflexão autônoma e por dinâmicas de auto-organização - algo que a gestão empresarial contemporânea chamaria de "inteligência coletiva" dotada de "elevada motivação empreendedora" - aplicada, neste caso, à defesa de direitos de grupos sociais destituídos e ao envolvimento de coletividades no debate político sobre os rumos da nação. Se considerarmos a democracia como algo mais do que o sentido hoje vulgarizado de um simples regime político-eleitoral - que, como bem sabemos, está sempre a requerer aperfeiçoamento através de formas renovadas de controle social - mas, sim, como um processo social que legitima o debate sobre o que é legítimo e o que é ilegítimo, perceberemos que os movimentos de atingidos por barragens alinham-se entre os atores sociais estratégicos da construção democrática em nosso país. E o que eles apreenderam, e têm procurado nos ensinar, é que é legítimo não se submeter às imposições dos detentores, notadamente internacionais, do poder de investir - imposições estas que via de regra ameaçam esgotar nossa base de recursos e desestabilizar espaços de vida de populações de baixa renda. E isto eles, os atingidos, o fazem transformando-se de forma inovadora: de simples vítimas de projetos autoritários tornam-se sujeitos da discussão ampliada das políticas energéticas, que, pretende-se, sejam melhor discutidas, de modo a não concentrar, como tem sido praxe mesmo vinte anos após o fim da ditadura, seus custos sociais e ambientais sobre as populações mais despossuídas.

O desafio dos empreendedores

Carlos Alberto Bezerra de Miranda
Diretor Superintendente da Baesa

Gerar energia mitigando as interferências na vida das famílias atingidas pela construção de usinas hidrelétricas é hoje uma das principais preocupações dos empreendedores. Como os locais das usinas estão normalmente em áreas distantes dos centros urbanos, as empresas encontram um duplo desafio: realizar as ações necessárias para a recolocação dessas famílias, preservando ao máximo seu ambiente social, sua cultura e sua história, e atender às necessidades de infra-estrutura dos municípios e comunidades, tanto de origem quanto de destino das famílias. Esse é um dos pontos nos quais os empreendedores de usinas hidrelétricas realizam um amplo trabalho de responsabilidade social.
É dinâmico o processo de remanejamento das famílias, simultaneamente à readequação da infraestrutura dos municípios e às ações sócio-ambientais. Muitas são as transformações ocorridas ao longo de sua implantação. No aproveitamento hidrelétrico Barra Grande (na divisa dos Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul) estas transformações foram amplificadas pelo período compreendido entre a elaboração do cadastro inicial das famílias atingidas, realizado no ano de 1997, e o início da obra, no ano de 2001.
A Baesa, concessionária responsável pelo empreendimento, atualizou o cadastro das 842 famílias inicialmente mapeadas, permitindo que todas as famílias que se sentissem atingidas pelo empreendimento pudessem ter a sua situação verificada. Como resultado desses "estudos de casos", 2.070 famílias foram analisadas e, destas, 1.330 tiveram direito a benefícios. Todas essas famílias diretamente atingidas já contam, ou estão às vésperas de contar, com propriedade rural apta ao plantio agrícola, moradia com energia elétrica e saneamento básico, assistência técnica às atividades produtivas, assistência ao convívio social, programas de saúde, segurança e educação, inclusive ambiental. São desenvolvidos diversos programas assistenciais, culturais e artísticos visando a capacitar não só a população diretamente atingida, mas também as comunidades da região de abrangência, promovendo o empreendedor, em muitos casos, ações de desenvolvimento regional típicas de Estado. O verdadeiro desafio hoje não é construir hidrelétricas. Isso a Engenharia brasileira já demonstrou competência suficiente. Difícil é compatibilizar, no país do fome zero, o atendimento a legítimas demandas sociais, não necessariamente vinculadas ao empreendimento, a atuação de lideranças dos atingidos, e outras tantas ambientalistas, com os requisitos de prazo e viabilidade econômica do empreendimento, num cenário de constantes mudanças.

EMPRESA PRETENDE INVESTIR R$5 MILHÕES EM 24 PROGRAMAS COMPENSATÓRIOS NA REGIÃO
A FÁBRICA DE farinha da comunidade de Betel está entre os 24 programas compensatórios que Furnas está praticando na região
E Fabiane tem um discurso duro:
--- Por que aqui? Indenização nenhuma vai pagar a nossa vida aqui. A gente não morre de fome, arranja outros meios de sobrevivência quando o rio secar e deixar de dar peixe. O progresso vem para os grandes, nunca para os pequenos. A energia não é para nós, é para exportar. Vai gerar emprego só para alguns porque os daqui vão ser orelha seca (quem é mandado) eternamente. --- diz ela, que tem 34 anos.
Não é bem assim, explica o engenheiro Afonso. Num processo de transparência realmente novo, a empresa desde já faz seus cálculos e estima os números. O Complexo de Madeira representa um esforço no sentido de integrar a Amazônia ao restante do Brasil. Seus benefícios, segundo dados divulgados pela empresa, extrapolam as fronteiras nacionais alcançando toda a América do Sul. Poderia gerar ainda mais, assegura Afonso, se não tivesse tomado tantos cuidados para mitigar o impacto ambiental. Tanta preocupação com o entorno sócioambiental é nova para Norma Vilela superintendente de meio ambiente da empresa:
--- A responsabilidade social agregou valor. O trabalho que está sendo feito com a comunidade é novo para mim. Além disso, envolvemos a expertise local, quem de fato entende e conhece a região, para fazer um retrato sócioambiental antes de começarmos o trabalho. E estamos trabalhando com total transparência, fazendo palestras e mais palestras para as pessoas saberem o que está acontecendo de fato.
Nem todos se sentem beneficiados pelas informações. Ivonete Maria da Silva, por exemplo, que há 24 anos mora em Santo Antonio e trabalha como pescadora, é uma delas:
- Eu não estou entendendo muito bem. Furnas ainda não disse onde é que isso vai afetar a minha vida. Nem quanto vamos receber. O que nós queremos é não ir para longe daqui e ficar sempre junto - diz.
Numa política explícita de boa vizinhança, Furnas está criando para as mulheres a chance de aprenderem a fazer jóias e bijuterias com sementes, matéria-prima local. Para servir como oficina, a empresa está reformando uma casa desabitada na própria comunidade. A empresa vai comprar ferramentas e capacitá-las. Segundo Afonso, é para antecipar um problema que possa vir a acontecer quando elas não conseguirem mais sobreviver só da pesca.
No mês passado foi inaugurada ainda uma fábrica de farinha para ajudar a comunidade Betel, ali perto, a comercializar um produto que sempre foi feito artesanalmente, com desperdício de tempo e de resultados. A empresa comprou máquinas para espremer a mandioca, colher o jambu, ensacar. Juna Santana de Souza, de 43 anos, está à frente do projeto na comunidade de Betel:
- Foi assim: eu idealizei e a empresa escolheu minha idéia no meio de outras 60 - diz.
A maior preocupação de Sandra, a assessora de responsabilidade social, é que a empresa não fique sendo a grande heroína nem a grande vilã.
- Temos a preocupação de não preencher o papel do Estado e de deixar bem claro que Furnas não está aqui para ser salvador da pátria - diz Sandra dos Santos.
Para o engenheiro Afonso, os ares de responsabilidade social também se fazem notar. Segundo ele, antes era só fazer os cálculos e entregar a obra:
- Agora não: o escritório foi inaugurado em março de 2004 e em novembro chegou aqui o pessoal de responsabilidade social.
Entre as ações compensatórias estão 24 programas ambientais e serão gastos R$5 milhões.

CAPA: ENGENHEIRO FOI ENCARREGADO DE DIALOGAR COM RIBEIRINHOS E AUTORIDADES GOVERNAMENTAIS

Ouvir e negociar muito : tarefas do barrageiro
Seja mineiro. Ouça muito, fale pouco e não meta a mão em cumbuca.
Foi esta a recomendação que o presidente de Furnas, José Pedro Rodrigues de Oliveira, fez ao engenheiro Afonso de Andrade Neto quando o mandou a Porto Velho para abrir e chefiar o escritório de Furnas. Como bom mineiro, Afonso seguiu à risca. A agenda dele está sempre lotada e o que mais faz é ouvir pedidos. Sempre arranja um tempo para se reunir com as comunidades que serão alagadas com a construção das barragens. Prefere conversar com as pescadoras de Joana D`Arc ou Santo Antonio, mas nunca se nega a ouvir também o governador, o prefeito.
Eu ligo para eles e sou atendido na hora. Faço algum evento aqui no escritório e não falta ninguém --- diz.
Faz parte da tarefa de abrir os caminhos. Mas ele também foi o primeiro a dar a má notícia para os futuros alagados.
--- Não vou dizer que foi fácil. Mas, ao mesmo tempo, penso que estou fazendo um trabalho pelo Brasil. Para ajudar a promover um desenvolvimento sustentável. O que adianta ter um rio tão bonito se ele não traz riqueza para ninguém? Se as comunidades ribeirinhas continuam exercendo atividades extrativistas, daqui a pouco tempo não terá mais nem rio nem riqueza.
Aos olhos de muitos Afonso tornou-se o vilão, o barrageiro.
--- Um dia uma criança me apontou com medo e disse: não é ele o barrageiro, mãe?
Não deixa de lembrar o personagem vivido por Juca de Oliveira na minissérie "Mad Maria", que a Globo transmitiu em janeiro. O ator fazia o papel do engenheiro Collier, homem que ajudou a construir a ferrovia Madeira-Mamoré, exatamente na área onde Furnas pretende construir uma das barragens para a hidrelétrica. Entre os dois, a semelhança está na paixão pelo trabalho e na consciência do lugar onde a obra está sendo executada. Desde que chegou ali, há dois anos, Afonso já aprendeu muito sobre o Madeira e conhece bem a região. Sabe que é preciso cuidado com o peuí, um tipo de mosquito pequeno que morde mais nos cotovelos, tem a agenda das chuvas de cor, adora parar para observar a Faveira Ferro, árvore da região, e morre de pena quando vê as dragas de garimpo no rio:
---- É extrativismo puro!. Eles jogam mercúrio, removem o leito do rio irresponsavelmente. É diferente de quem pratica o garimpo artesanal.
Outro predador identificado por Afonso é o tarrafeiro. Num passeio rápido e curto pelo rio, Afonso lista as situações de risco:
--- Tá vendo aquele grupo ali? Está com rede, é um crime, pega tudo o que vê, peixe pequeno não consegue se soltar. Aquilo ali escondido é uma draga. Sozinha se chama foca, mais de uma é fofoca --- conta, familiarizado até com as expressões locais.
Mas Afonso também é técnico. E nem se dá conta da crueza das palavras que usa para explicar o trabalho que terá para "estrangular o rio". Ao mesmo tempo se enternece com a beleza do Madeira que, em setembro, quando foi feita esta reportagem, apresentava o nível mais baixo dos últimos 30 anos.
---- Mas isto vai acabar quando começar a obra - fala alguém.
O engenheiro Afonso ouve, pensa, e devolve, apaixonado:
--- Uma represa também é bonita e trará conforto para muita gente. O rio não vai acabar, só vamos mudar seu rumo.

CAPA: POR DESINFORMAÇÃO OU INDIGÊNCIA, RIBEIRINHOS USAM O RIO SEM PREOCUPAÇÃO ECOLÓGICA

Extrativismo: a saga do Rio Madeira
Diretor Superintendente da Baesa
Vida de dragueiro é uma vida miserável. Trabalha dia e noite durante dois, três meses, até o patrão ficar satisfeito com o que foi arrancado do rio. Nunca sai do barco, dorme em barraca de lona. Na calada da noite, tudo quieto em volta, ouve-se o barulho do motor da draga revirando o fundo, jogando veneno no Madeira. Quem é da terra sabe que este tipo de atividade não é bom para o rio. Mas ninguém ousa ir contra os patrões.
Vida de tarrafeiro também não é mole. Vai cedo para o rio, fica com os pés na água, joga aquela rede imensa, sai catando tudo o que vê. Peixe grande, peixe pequeno, ovas. Ás vezes até madeira (o nome do rio vem do fato de ele carregar muita madeira das árvores de suas margens na época de cheia, com a força das águas). O tarrafeiro tira dali seu sustento, muitas vezes entrega por tostões ao atravessador. Sabe que não está fazendo bem para o rio. E se um dia acabar?
É esta política puramente extrativista dos ribeirinhos, em parte provocada pela total indigência de muitos, em parte pela desinformação de outros, que impressiona o engenheiro Afonso e lhe dá a força que precisa para encará-los de cabeça erguida. Afinal, garante: sua empresa está ali para extrair, sim, mas também para repor.
-- A pesca artesanal, o garimpo artesanal, estes não agridem o rio. Mas a draga e a tarrafa podem acabar com ele.
Jorge Luis da Silva, de 14 anos, pelo menos por enquanto está na lista de quem trata o rio com carinho. Ele mora numa das ilhotas do Madeira, estuda na comunidade e nos fins de semana pega a batéia, o carpete e vai garimpar com o pai e o irmão. Segundo ele, dali saem uns dois gramas de ouro por fim de semana:
--- Dá para não ir sem dinheiro para a escola.
Esta sim é uma troca bonita, justa. E o Rio Madeira agradece.
Amelia Gonzalez viajou a Porto Velho a convite de Furnas
Diretor Superintendente da Baesa

O Globo, 07/11/2005, Razão Social, p. 14-16, 18-19

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