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Disputa por terra: asilo de Porto Alegre e família quilombola protagonizam impasse

G1 https://g1.globo.com/
Autor: Joyce Heurich, Janaína Lopes e Carolina Cattaneo
16 de Nov de 2018

O Asilo Padre Cacique e o Quilombo Gonçalves de Lemos protagonizam um impasse que já dura 10 anos envolvendo a disputa por um terreno em Porto Alegre. Na última semana, a primeira tentativa de reintegração de posse, com o objetivo de retirar as mais de 30 pessoas que vivem no local atualmente, trouxe o caso à tona.

O pedido de desocupação do pedaço de terra, localizado nos fundos do número 1.250 da Avenida Padre Cacique, local próximo ao prédio onde funciona o asilo, foi levado à Justiça em 2009 por parte da Sociedade Humanitária Padre Cacique, alegando ser dona da propriedade. Constam como réus no processo Délzia Gonçalves de Lemos, já falecida, e outros oito familiares dela.

Desde a década de 1960 até sua morte, Délzia viveu em uma casa construída no terreno em questão ao lado do marido Jorge Alberto Rocha Lemos, que também já morreu. Durante o mesmo período, o casal trabalhou na instituição, que hoje atende mais de 100 idosos, fazendo serviços gerais. Com o passar dos anos, a família foi aumentando. Atualmente, a segunda, a terceira e a quarta geração da Gonçalves de Lemos vivem no espaço, onde foram erguidas quatro moradias.

O advogado que representa o asilo, Artur Garrastazu, alega que, quando Jorge começou a trabalhar na instituição, a casa foi oferecida ao funcionário para que a ocupasse enquanto durasse o vínculo empregatício. Segundo o advogado, a residência já estava construída desde que a Sociedade Humanitária Padre Cacique adquiriu o terreno "há muitos anos".

Já o advogado Onir Araújo, que representa a família, defende que não havia nada no terreno na época em que Jorge começou a trabalhar no asilo. "Esse terreno nunca foi do asilo, era 'terra de ninguém', e quem deu alguma função social a esse terreno foi o casal Jorge e Délzia", argumenta Onir.

O advogado conta que Délzia era neta de escravos e, antes de se mudar para a capital, vivia em Encruzilhada do Sul, no Vale do Rio Pardo. Segundo ele, Délzia e o marido, que também era de fora de Porto Alegre, fixaram moradia, inicialmente, no bairro Lomba do Pinheiro. Foi então que os dois começaram a trabalhar no asilo e, para chegar ao local, passavam por um matagal que ficava nos fundos na instituição. De acordo com a defesa, o próprio Jorge foi quem comprou os materiais de construção à época e construiu a casa para morar com a esposa no terreno que era inutilizado.

Após a morte de Jorge, em 2008, a instituição pediu para a família deixar o terreno. Conforme o advogado do asilo, Délzia, viúva na época, negou-se a sair. Foi então que a Sociedade Humanitária Padre Cacique entrou com uma ação de usucapião e conseguiu comprovar a posse da propriedade. Depois, ajuizou uma ação pedindo a reintegração de posse.

A causa foi ganha pelo asilo na Justiça, os recursos dos réus não foram aceitos. A certidão de trânsito em julgado, quando não há mais recursos possíveis, foi emitida no dia 9 de agosto de 2018 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Após anos de tramitação, o juiz determinou, por fim, a desocupação do local. De acordo com o presidente do asilo, Edson Brozoza, já há um projeto para a construção de um centro de convivência no espaço, que seria uma creche para idosos carentes com estimativa de atender mais 150 pessoas.

A tentativa de reintegração de posse

Um tumulto ocorreu na manhã da última quarta-feira (7) no terreno da Avenida Padre Cacique. A Brigada Militar foi cumprir o mandado judicial de reintegração de posse, mas as famílias que estavam no local se negaram a ir embora e contaram com o apoio de movimentos sociais. Os moradores reclamaram que apenas a Brigada Militar participou, sem que o Ministério Público Federal ou o Conselho Tutelar fossem acionados, já que há crianças vivendo ali.

Sandro Gonçalves de Lemos, líder do Quilombo Lemos, disse que foi pego de surpresa. Ele conta que já havia até caminhão de mudança e um trator no local. "Eu pedi meia hora, disse: 'eu tenho pessoas dormindo, tenho mulheres dormindo, tem casas que estão fechadas porque as pessoas estão trabalhando e eu tenho que chamar as pessoas para virem pegar seus pertences'", lembra.

De acordo com a defensora pública do estado Isabel Wexel, que foi chamada ao local pelos moradores, o oficial de Justiça não cumpriu o protocolo determinado para reintegrações e, por isso, ela pediu o cancelamento da desocupação do local. A advogada explica que, em julho de 2017, o Ministério Público e a Defensoria Pública montaram um requerimento que deve ser cumprido nas reintegrações.

O documento recomenda a realização de uma reunião preparatória para a remoção, com a participação dos moradores, do juiz que determinou a reintegração de posse da área, do oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Conselho Tutelar. O encontro deveria tratar do destino das famílias a serem removidas.

Também pede que as pessoas que precisarão deixar o local sejam comunicadas previamente sobre o dia e a hora em que a ordem será cumprida, evitando que seja feito à noite.

Por isso, por volta do meio-dia, a reintegração foi suspensa, com a promessa de que o imóvel seria desocupado pacificamente no prazo máximo de três dias. Uma reunião foi realizada no dia seguinte, quinta-feira (8), envolvendo as partes. Ficou combinado que a reintegração não seria realizada até o fim daquela semana.

Por ora, o processo de reintegração está suspenso, mas as famílias têm medo de que possa voltar a ser cumprido a qualquer momento. "O risco é 24h por dia de acontecer tudo de novo", diz Sandro, que relata que a comunidade não tem para onde ir.

A família Gonçalves de Lemos

Sandro, filho de Délzia e de Jorge, acompanhou todo o crescimento da família Gonçalves de Lemos. "Nasci aqui no quilombo", conta ele, que possui quatro irmãos. O terreno que hoje abriga 33 pessoas, filhos, netos e bisnetos do casal, já chegou a receber mais de 60 sucessores. Só que o espaço ficou pequeno para a comunidade, que não parava de crescer. Alguns acabaram deixando o local ao longo dos anos.

A comunidade é remanescente do Quilombo de Maçambique, que fica no 3o distrito de Canguçu, no limite com Encruzilha do Sul. "Minha bisavó é de lá, minha avó, eu tenho primos lá", relata Sandro. Aos 43 anos, ele lembra bem das histórias contadas pela mãe. "A minha mãe relatava também que onde ela nasceu ainda tinha alguma resistência racial, a segregação estava bem forte ainda", lembra.

Em 1951, Délzia veio para a capital acompanhada da mãe. Quatro anos depois, casou-se com Jorge. Segundo Sandro, os três foram os primeiros moradores do terreno na Zona Sul de Porto Alegre, em 1964. Naquele tempo, a cidade ainda não contava com o aterro definitivo da Orla do Guaíba, não existia a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), nem o Estádio Beira-Rio. Ele diz que o pai trabalhou 44 anos no Asilo Padre Cacique, e mãe, 35.

A consciência sobre suas origens sempre foi uma preocupação da família. "Minha vó, minha mãe, meus tios sempre passaram isso, que a gente era remanescente de quilombo, mesmo se perdendo o contato, porque minha mãe veio para cá e, naquele tempo, a comunicação era difícil", conta.

A avó de Sandro, Anna Júlia Ribeiro Gonçalves, viveu de 1900 até 1984. Embora tenha nascido após a abolição da escravatura no Brasil, o neto relata que ela passou por situações de opressão, ainda que esses episódios já não fossem mais considerados trabalho escravo.

Moradores do Quilombo Lemos, em Porto Alegre - Foto: Otávio Daros/G1"Não tem nada diferente, eu acho que, hoje, nós negros, falando especificamente dos negros, a gente é um pouco mais unido, tem mais esclarecimento. Minha mãe nasceu e trabalhou sempre na casa dos brancos e sempre foi oprimida, sempre vendo os brancos sentados à mesa e ela não. E hoje ainda está latente, é por isso que no quilombo a gente trabalha com essa ideia de que todos somos iguais", defende Sandro.

Durante o dia, Sandro costuma estar em casa. À noite, trabalha em um bar fazendo "de tudo um pouco". Ele frisa que o espaço é cultural e aberto a todos e que conta com atividades como capoeira, maracatú, além de evento voltados a mulheres e crianças.

"O quilombo não é um espaço só de negros. Quem conhece a história, infelizmente poucas pessoas conhecem a história, acha que o quilombo é um amontoado de negros. O Quilombo dos Palmares abrigou também brancos pobres que não tinham para onde ir", conclui, referindo-se a um dos quilombos mais importantes da história, do período colonial brasileiro.

O que é e como registrar um território quilombola
O Quilombo Lemos aguarda a demarcação da área, após abrir um processo de regularização fundiária no último dia 8 de novembro, um dia após a tentativa de reintegração, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Segundo informações repassadas pelo instituto, o pedido está no trâmite das etapas necessárias para a concretização da demarcação (confira abaixo).

O quilombo já tem um documento importante para ganhar o título da terra: a Certidão de Autodefinição emitida pela Fundação Cultural Palmares, necessária para o trâmite no Incra. De acordo com a fundação, a comunidade é remanescente dos quilombos.

Para que a certidão seja emitida, uma série de aspectos são analisados pela fundação, levando em conta as exigências do art. 2o do decreto 4.887, que define: "Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida". Conforme a fundação, o grupo atende os critérios previstos em lei.
Etapas para a demarcação de terra quilombola pelo Incra

Abertura do processo na autarquia
Elaboração de série de estudos e levantamentos (laudo sócio-histórico-antropológico, cadastro de famílias, levantamentos fundiários, cartográficos, entre outros), que resultam no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território em questão. Este RTID é publicado no Diário Oficial, e abre-se um prazo a interessados de contestação ao relatório
Publicação de uma Portaria de Reconhecimento, formalizando a identificação final do território, após análise das contestações do RTID
Publicação de decreto pela presidência da República, autorizando a desapropriação da terra
Ajuizamento de ações necessárias, pelo Incra. Com as áreas em seu nome, o Instituto transfere a titularidade para a comunidade. O título da área é emitido em nome da associação comunitária, é um título coletivo, pró-indiviso, imprescritível - não pode ser vendido ou penhorado. O Título de Domínio garante a posse definitiva da área
Ainda de acordo com o Incra, 105 processos estão abertos para regularização de territórios no Rio Grande do Sul. Destes, 23 já tiveram o RTID publicado, 13 já tiveram a portaria de reconhecimento publicadas, e quatro comunidades estão tituladas, em fase final do processo. São elas: Chácara das Rosas, em Canoas, Família Silva, em Porto Alegre, Casca, em Mostardas e Rincão dos Marimianos (Restinga Seca).

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/11/16/disputa-po…

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