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Destruição e morte: o enredo não muda

Jornal Pessoal
Autor: Lúcio Flávio Pinto
18 de Jun de 2004

A missionária americana Dorothy Stang é uma radical: já dedicou quase metade dos seus 73 anos de vida a defender a parte fraca na história da Transamazônica, em cujas margens se instalou há mais de 30 anos. Nem sempre lhe interessa saber quem está com a razão nos conflitos que pipocam no eixo da polêmica "estrada da integração nacional": irmã Dorothy fica sempre do lado dos posseiros, colonos, pequenos agricultores. Como a estrutura institucional e os meios mais poderosos estão do outro lado da briga, a freira, na sua opção total (ou "preferencial", como recomenda a teologia da libertação), contribui para diminuir um pouco o desequilíbrio de poder. Não é um jogo oportunista ou uma decisão utilitarista. Desde que chegou à Amazônia, a freira não saiu mais da região da Transamazônica, depois de ter passado pela Belém-Brasília, e não arredou um milímetro a sua trajetória de vida. Ora agiu certo, ora errado. Nuns confrontos ganhou, em outros perdeu. Mas permaneceu fiel ao seu compromisso. Conquistou a admiração de quem respeita a fidelidade a princípios, mesmo quando deles diverge. Tornou-se uma referência na história da colonização amazônica.

Já cruzei com irmã Dorothy em algumas das frentes pioneiras. De vez em quando a revejo em algum acontecimento relacionado às lutas sociais, principalmente quando realizado em Belém. O peso dos anos está marcado no seu rosto, mas a energia é a mesma, inclusive no apertar de mãos e no abraço. Depois de um longo intervalo, vimo-nos de novo durante um debate sobre a hidrelétrica de Belo Monte, no auditório da Assembléia Legislativa. Revejo o brilho do seu olhar e o otimismo da sua expressão enquanto leio na imprensa que ela é acusada de ter insuflado lavradores a atacar funcionários de uma fazenda com a qual litigam, em Anapu, matando um deles e ferindo gravemente outro.

Minha memória volta a 1976, quando outros religiosos, entre os quais o bispo de Conceição do Araguaia, dom Estevão Avelar, foram etiquetados com a mesma acusação. Em repetição quase integral, um deles, o padre Florentino Maboni, era apontado como o mandante de um ataque de posseiros a uma tropa da Polícia Militar. A prova era um bilhete do bispo que o padre levara aos moradores de Perdidos.

O texto, na linguagem messiânica da teologia, podia ser lido de várias maneiras, mas não como prova de insuflação ao crime, como fizeram os denunciadores dos religiosos. Eles acabaram sendo absolvidos pela justiça, mas antes percorreram seu caminho de Damasco. Os órgãos de segurança foram surpreendidos por uma descoberta: o padre havia sido capelão militar no Rio Grande do Sul, de onde havia sido transferido para o Pará.

Essa é a mesma a trilha que agora se abre para irmã Dorothy? Certamente ela não será levada a interrogatórios massacrantes, sem respaldo legal, a que foram sujeitados os religiosos no episódio de 1976, em pleno regime de exceção. Agora estamos numa democracia, com respeito às garantias individuais. Mas essas prerrogativas costumam se tornar figuras de retórica quando os agentes do poder público endossam atitudes de constrangimento e de inversão do princípio legal, de que a boa fé se presume, enquanto a má-fé precisa ser provada.

É má-fé apontar irmã Dorothy como mandante de assassinato. Significa contrariar o que é público e notório: a devoção da religiosa a uma causa. Essa causa pode ser contestada e combatida por quem não a aceita. Mas deve ser contraditada nos termos da lei. E ao agente da lei não cabe antecipar presunções e contrariar os fatos, pisando na lei que lhe autoriza o exercício do poder.

Se há crimes na história, eles devem ser apurados com rigor, independentemente de se saber a quem cabe a responsabilidade pelos delitos. Mas uma história não existe no ar. Nesse caso de Anapu, que já contabiliza cinco mortes em quatro meses, uma causa negligenciada dos fatos, que lhes dá a dimensão maior, esquecida no tratamento policial ou jornalístico, é a continuação dos desmatamentos, da expansão irracional e destruidora da frente econômica sobre novas áreas de floresta na Amazônia, aumentando o inventário das perdas e danos sem que os males já praticados tenham sido sequer atenuados. E sem que a moral da história haja passado por uma revisão, para que não mais, como das outras vezes, os fracos percam e os fortes sempre ganhem, tornando um martírio a opção de vida de personagens, como a irmã Dorothy Stang

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