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De Raoni a Evo Morales

OESP Grandes Reportagens Amazônia, nov-dez 2007, p. 88-89
31 de Dez de 2007

De Raoni a Evo Morales
Os novos líderes são ambiciosos e articulados

Carlos Marchi

Alto Rio Negro (AM) - Houve um tempo em que as lideranças indígenas eram caciques emplumados que atraíam atenção pela extravagância e tinham enorme dificuldade em se fazer entender pelos brancos. Não há mais espaço para eles. Hoje, os principais líderes indígenas da Amazônia - em especial na calha do Rio Negro - são representantes políticos das etnias. Não são caciques ou pajés; todos estudaram em escolas dos brancos e a maioria tem nível superior. Da cultura indígena, eles trazem a forma direta e sincera de se expressar. São articulados e sabem que seu papel é fazer a ligação entre o mundo dos brancos e as aldeias.

Antigos líderes, como Mário Juruna e Raoni, que se garantiam pelo carisma, hoje são tidos como folclóricos. Mesmo as lideranças indígenas dos anos 80 e 90, como Ailton Krenak e Marcos Terena, que fundaram a União das Nações Indígenas (UNI), acabaram aderindo ao novo formato das organizações, um modelo que se assemelha a federações sindicais. "A fase dos líderes carismáticos acabou", diz Geraldo Andrello, coordenador do Instituto Sócio-Ambiental (ISA) em São Gabriel da Cachoeira.

Eles são Bonifácio Baniwa, Ismael Tariano, Orlando Baré, Élio Piratapuia, Euclides Macuxi, Jersen Baniwa, Álvaro Tukano e Jecinaldo Sateré. A organização que montaram é uma fieira de entidades indígenas, capitaneadas pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pela exemplar Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Abaixo delas vem a miríade de entidades que representam etnias, aldeias de um determinado rio. No centro de sua luta está a autonomia das terras indígenas (TIs).

"Eles se autonomizaram", diz a médica e antropóloga Luíza Garnello, pesquisadora da Fiocruz e professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). "Há uma proliferação incontrolável de organizações", constata Andrello. Esse universo associativo copiado dos sistemas de representação social dos brancos, que não tem nada a ver com a organização social indígena, é estimulado e sustentado por ONGs de diversos tipos e finalidades e recebe apoio de universidades.

A organização em entidades padronizou, centralizou e fortaleceu o formato de reivindicações encaminhadas ao mundo branco e, em especial, ao governo. Bonifácio Baniwa, hoje presidente da Fundação dos Povos Indígenas do Amazonas, acha que as novas organizações funcionam, mas alerta que a cultura indígena resistiu à pressão das missões católicas - que proibiam falar a língua, cultuar os deuses e lembrar os valores indígenas - porque soube preservar a sua organização social original.

O mundo indígena da Amazônia tem duas vertentes: uma, natural, voltada para dentro de sua cultura, as aldeias, a vida indígena, os valores indígenas; outra, pragmática, voltada para fora, para o mundo branco, o governo, a mídia, a sociedade. Cada uma deve funcionar com as regras da cultura à qual é dirigida, ensina Élio Piratapuia, ex-diretor da Foirn, formado em Ciências Sociais, que fez mestrado na PUC-SP. "Não dá para trabalhar sem conhecer o mundo não-indígena", afirma.

Essas lideranças foram forjadas num sistema que hoje a maior parte dos índios repudia, reconhecem Bonifácio e Élio: o ensino rigoroso das missões salesianas que se instalaram em 1920 no Alto Rio Negro. "Os novos líderes são herdeiros da cultura católica e romperam com ela", diz Marilene Corrêa, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA).

No início dos anos 90, quando surgiram os primeiros efeitos da Constituição de 1988, as lideranças indígenas romperam com os salesianos, afastaram-se do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e dos antropólogos ligados à UNI, e começaram a construir a aliança com as ONGs. Vários dos novos líderes ficaram meses na Europa, para serem apresentados ao processo de captação de recursos. Domingos Tukano, atual coordenador da Foirn, conta que conheceu o boliviano Evo Morales num congresso na Áustria.

A partir de então, com a ajuda das ONGs, as novas lideranças podem estar numa aldeia do Rio Içana num dia e desembarcar em um aeroporto europeu dois dias depois - não falta dinheiro nem articulação para criar uma agenda politicamente oportuna. O poder é o limite. Domingos explica as razões dessa nova estratégia: "Nós vivemos num Brasil que não está preparado para conversar conosco, não sabe conviver conosco." É preciso, então, ensinar ao País como entender o processo indígena.

Para isso, os indígenas buscam ganhar representação política. Em 2008, o tariano Pedro Garcia será candidato a prefeito de São Gabriel da Cachoeira, com Braz Baré como vice, para tentar vingar a derrota por 200 votos em 2004. Messias Sateré será candidato em Barreirinha; Benjamim Baniwa, em Barcelos; Fidélis Baniwa, que ficou famoso por atuar na série Mad Maria, em Santa Isabel do Rio Negro. Haverá candidatos em vários outros locais, quase todos pelo PT e PC do B.

O sonho maior, de ter parlamentares no Congresso e nas assembléias estaduais, continua sendo acalentado. Numa discussão na Foirn, no início de setembro, Maximiliano Tukano, uma liderança intermediária, criticou o governo por impedir o garimpo dos indígenas e exclamou: "Enquanto a gente não tiver deputado no Congresso a gente não vai conseguir."

Até aqui, a caminhada política dos indígenas na Amazônia tem sido contida pela esperteza dos brancos. A maioria do eleitorado é indígena, mas os brancos lançam dezenas de candidatos indígenas a vereador e pulverizam as votações. Cansados de ser iludidos, os líderes agora começam a sonhar com a criação de um partido indígena e pleitear uma representação parlamentar indígena exclusiva no Congresso e nas assembléias dos Estados onde a população indígena é expressiva, num modelo importado de Equador, Bolívia, Colômbia e Guatemala.

Quando o poder político for alcançado, virá junto a autonomia das TIs, imaginam. Eles querem que o Brasil seja reconhecido como um país plurinacional, como Canadá e EUA - o que pode produzir um choque frontal com os militares. "Lá os indígenas têm hidrelétricas e comercializam energia. Por que não podemos fazer o mesmo?", indaga Jorge Terena, assessor da ONG americana The Nature Conservancy. Nem todos, no entanto, querem uma autonomia tão ampla. Bonifácio acha que a autonomia deve ser parcial. Quanto ao partido indígena, diz que não é fácil criá-lo. Só em São Gabriel da Cachoeira existem 22 povos indígenas e 22 organizações sociais: "Meu povo prefere fazer aliança com um branco que com um tucano."

OESP Grandes Reportagens Amazônia, nov-dez 2007, p. 67-68

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