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De clichês e florestas em pé

Valor Econômico, Brasil, p. A2
Autor: CHIARETTI, Daniela
05 de Ago de 2016

De clichês e florestas em pé
É grande o interesse na regulamentação das cotas ambientais

Daniela Chiaretti

"Vendo área para Reserva Legal dentro do bioma Mata Atlântica, às margens do rio Paraná, divisa com Mato Grosso do Sul". "Tenho quantos alqueires precisar de Reserva Legal no Estado de Goiás - regulamentada". "Comercializo área de compensação ambiental no bioma Cerrado". Milhares de classificados como esses aparecem em uma busca rápida na internet. Existem ofertas para a Amazônia, a Caatinga, o Pampa, florestas a granel em biomas a gosto do freguês.
A efervescência indica o interesse que pode existir na regulamentação de um instrumento econômico novo para valorizar as florestas brasileiras, as Cotas de Reserva Ambiental, conhecidas pela sigla CRA. Mas esses são tempos pendulares no Brasil. É como diz o clichê, uma no cravo e outra na ferradura. Quando se fala em preservação, o país tem exemplos sofisticados, inéditos e inovadores para exibir, ao lado de iniciativas de dar medo.
Primeiro, o vexame. Valorizar a floresta em pé virou uma expressão tão chata de se ouvir quanto essas palavras que caem no agrado e no vazio de sentido a um só tempo - do gênero "quebra de paradigma" ou "pensar fora da caixa" e "alinhar o discurso" - e tinham que ter um período de resguardo do vernáculo. Não há um único deputado ruralista jurássico que não saia por aí dizendo que é preciso "manter a floresta em pé" enquanto aprova o uso agressivo e vergonhoso do "correntão". Para quem não sabe o que é, imagine uma cena de horror: uma corrente grande unindo dois tratores em paralelo e que vai derrubando, em poucos minutos, o que estiver pela frente - bambuzais, tamanduás, árvores gigantes, árvores nanicas, espécies em extinção, capoeira, capivaras, antas, cobras, flores, borboletas - tudo junto, ao mesmo tempo, agora. A técnica, banida há 20 anos por ser considerada crime, acaba de ser aprovada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso. Uma decisão linda de se ver, de grande inovação científico- tecnológica.
Desalinhando completamente o discurso, o espectro da expressão "valorizar a floresta em pé" tem um sentido desafiador em outro decreto, do Distrito Federal, do final de julho. A norma dispõe sobre a aplicação de multas em função de alguma infração ambiental. Ali pelas tantas diz que o infrator pode converter a multa em um serviço de preservação do ambiente. Ou seja: pode custear algum projeto ambiental da sociedade civil, ajudar a manter uma unidade de conservação ou - e aí vem a novidade - comprar uma Cota de Reserva Ambiental (CRA), no Distrito Federal. "Em vez de pagar um boleto e sanar a multa, o infrator pode dar dinheiro a um produtor rural que preservou floresta. É mais simpático e valoriza quem conservou", explica o advogado Raul Silva Telles do Valle, chefe da assessoria jurídico- legislativa do governo do Distrito Federal e quem pensou fora da caixa. Autor da ideia, ele espera que a iniciativa inspire outras unidades da Federação a fazer o mesmo.
O problema, por ora, é que as CRAs só existem no novo Código Florestal. As cotas são o pivô de um decreto em gestação no governo há algum tempo. Sua regulamentação é ansiosamente aguardada por movimentos modernos de conservação e por agricultores que preservaram florestas além do que era exigido por lei e podem ser remunerados por isso. Também esperam as regras das cotas os produtores que desmataram mais do que deviam, estão no vermelho ambiental e querem sanar sua dívida florestal. "Nosso trabalho tem sido na linha de pressionar para que a CRA saia logo", diz Gustavo Diniz Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira. "A regra tem que ser editada. Assim se dará um instrumento para aqueles que querem fazer o certo. Isso começará uma dinâmica positiva para o agro e para o ambiente."
O Serviço Florestal Brasileiro (SFB), autarquia do Ministério do Meio Ambiente (MMA), conduz este processo no governo. O decreto vem maturando e sendo costurado por técnicos do Meio Ambiente, da Fazenda e da Agricultura, discutido com ONGs e com bancos. "Não tem nada igual no mundo. É um desenho complexo de remuneração de um ativo florestal", diz o agrônomo Raimundo Deusdará Filho, diretor-geral do SFB. Trata-se de um título que poderá remunerar quem tem excedente florestal e ser adquirido por quem deve floresta.
Há regras já explicitadas no Código Florestal. Cada hectare é uma cota. As CRAs só podem ser comercializadas dentro do mesmo bioma. Quem desmatou na Amazônia mais do que o permitido por lei não pode compensar no Cerrado, quem tem excedente de Mata Atlântica vende para quem está em falta por ali mesmo. É selva com selva. Os excedentes florestais terão que ser registrados em cartório, vistoriados pelas agências ambientais estaduais e comprovados por imagem de satélite, não é a festa do cáqui. A ideia é que o MMA habilite certificadoras como a Caixa Econômica ou a Bovespa, por exemplo, que abriguem as transações privadas. Há que existir um sistema único de emissão e controle das cotas. "É como um tipo de papel-moeda, tem que ter um órgão único que controle e garanta esses títulos", adianta Deusdará. "Se um excedente florestal pegar fogo, o sistema terá que avisar que aquelas CRAs têm que sair do mercado", continua.
O inventário de quem tem ativos e passivos ambientais no Brasil é o já famoso Cadastro Ambiental Rural, o CAR, que todos os proprietários rurais têm que fazer. Os números do SFB, que coordena o processo, indicam que mais de 380 milhões de hectares já estão na base. Isso significa 4 milhões de propriedades e posses rurais. É algo enorme, que agora tem que passar por filtros de análise dos dados.
O SFB tem módulos automatizados que mostrarão quem declarou imóveis dentro de unidades de conservação ou terras indígenas e aí por diante. Ficará claro quem tem saldo e quem está irregular.
Enquanto tudo isso vem sendo criado, o pêndulo oscila para o outro lado. O prazo final para inscrição no CAR era 5 de maio, mas deputados conseguiram fazer com que fosse adiado para dezembro de 2017, com possibilidade de prorrogação por mais um ano.
Apesar de o CAR ter conseguido grandes e inusitados avanços, como mapear pela primeira vez no país 1,2 milhão de nascentes de rios, há quem continue apostando no retrocesso.

Daniela Chiaretti é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna de Claudia Safatle.
E-mail: daniela.chiaretti@valor.com.br

Valor Econômico, 05/08/2016, Brasil, p. A2

http://www.valor.com.br/brasil/4659919/de-cliches-e-florestas-em-pe

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