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Daniel Sarmento: Terras indígenas, marco temporal e crise climática

O Globo - https://oglobo.globo.com/
Autor: SARMENTO, Daniel
31 de Mai de 2024

Daniel Sarmento: Terras indígenas, marco temporal e crise climática
É preciso garantir um regime jurídico adequado aos territórios indígenas. Não dá para 'negociar' direitos, cedendo a impulsos suicidas dos grandes interesses econômicos

Daniel Sarmento

31/05/2024

"A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. [...] Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós." (Davi Kopenawa) [1]

Negacionismo climático, terras indígenas e instituições

Se algum desinformado ainda tivesse dúvida sobre a gravidade da crise climática e dos seus efeitos dramáticos sobre a sociedade, essa deve ter se dissipado depois da tragédia sem precedentes que se abateu sobre o Estado do Rio Grande do Sul nas últimas semanas. O drama gaúcho evidenciou que a crise do clima, causada pela ação humana, não é apenas um problema do futuro, que vai afetar a vida das próximas gerações. A emergência climática já causa efeitos terríveis no presente, ceifando muitas vidas, destruindo o meio ambiente, arrasando propriedades, deslocando pessoas e abalando profundamente a economia. Ações urgentes e estruturais devem ser adotadas, seja de mitigação da crise climática - como a maior proteção das florestas e ecossistemas e o progressivo abandono dos combustíveis fósseis -, seja de adaptação das comunidades, para que se tornem mais resilientes diante dos impactos de eventos climáticos extremos, que vão se tornar cada vez mais frequentes e intensos.

Contudo, o sistema político brasileiro parece indiferente a esse quadro, como que mergulhado no mais profundo negacionismo. O Congresso Nacional promove pauta agressiva contra o meio ambiente, sob a liderança da bancada ruralista - que, aliás, atua irracionalmente contra os seus próprios interesses, já que a crise climática também afeta gravemente as atividades agropecuárias. Na maior parte dos estados e municípios, o cenário é semelhante. Até o governo federal, cuja postura é certamente muito mais civilizada do que a da gestão anterior, insiste em ideias ultrapassadas e perigosas para o clima, como a de iniciar a exploração de petróleo perto da Foz do Amazonas.

Esse cenário de emergência climática compõe o pano de fundo para a discussão sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, que não apenas consagrou a teoria do "marco temporal" das terras indígenas, como também criou uma série de dificuldades praticamente incontornáveis para as demarcações desses territórios, tendentes a inviabilizá-las e a fragilizar a proteção das áreas já demarcadas, expondo-as a contestações e a invasões.

Como se sabe, a teoria do marco temporal afirma que só teriam direito à demarcação os povos indígenas que conseguissem demonstrar que ocupavam suas terras tradicionais em outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição, ou que provassem a ocorrência, também naquela data, de um "renitente esbulho" - vale dizer, de um conflito físico ou judicial com particulares, na defesa das terras originárias.

Em 27 de setembro de 2023, o STF concluiu julgamento em que, por expressiva maioria de 9 votos a 2, considerou inconstitucional a teoria do marco temporal. A decisão do Tribunal, porém, foi compromissória, pois reconheceu aos particulares de boa-fé, que tivessem títulos sobre terras em que não estivesse caracterizado o marco temporal, o direito à indenização pelo valor integral da propriedade a ser demarcada. Preocupado com a proteção da segurança jurídica dos não indígenas, o Supremo instituiu uma exceção à regra constitucional segundo a qual, nas demarcações, o pagamento de indenização inclui apenas o valor das benfeitorias construídas de boa-fé, com exclusão do valor da própria terra (art. 231, § 6o, CF/88).

Essa concessão, porém, não satisfez o Congresso Nacional. Assim, na mesma data da decisão do STF, em clara afronta à autoridade da Corte, a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário do Senado Federal aprovaram, em velocidade recorde, a nova lei do marco temporal. O projeto foi encaminhado ao presidente da República, que vetou os seus preceitos mais críticos - inclusive os que previam o marco temporal. Contudo, a maior parte desses vetos foi derrubada pelo Congresso, o que levou à promulgação da lei.

Logo após a sua edição, a Lei 14.701/2023 foi questionada no STF por várias ações, que foram distribuídas à relatoria do ministro Gilmar Mendes. Porém, ao invés de suspender a eficácia da lei - que contrariava ostensivamente a recentíssima decisão do STF - o ministro Gilmar Mendes decidiu submeter a questão a uma "conciliação" entre o Congresso, o governo e as partes dos processos. E, nessa conciliação, também inseriu o tema de outra ação constitucional sobre assunto delicadíssimo, que sequer está diretamente relacionado com as demarcações e o marco temporal: a falta de regulamentação da mineração em terras indígenas.

A decisão monocrática foi submetida a referendo no plenário virtual do STF, mas o exame foi interrompido por pedido de destaque apresentado pelo presidente da Corte, ministro Luis Roberto Barroso. Com isso, o julgamento da matéria será feito no plenário físico do Supremo, mais sujeito à fiscalização da sociedade.

De todo modo, o quadro é muito preocupante. A manutenção da decisão do ministro Gilmar Mendes, se ocorrer, implicará a instauração de negociação sobre o que é absolutamente inegociável: direitos fundamentais indisponíveis de um grupo social minoritário e vulnerabilizado, que configuram cláusulas pétreas da Constituição. Uma negociação em que certamente predominarão autoridades brancas, decidindo sobre o direito mais básico dos povos indígenas. Uma negociação em que também estará em jogo o futuro do clima e do planeta.

A inconstitucionalidade do marco temporal e os riscos da mineração em terras indígenas

A tese do marco temporal é absurda, por várias razões, reconhecidas pelo STF no seu recente julgamento. Em primeiro lugar, o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional foi consagrado pelo poder constituinte no art. 231 da Carta de 88, sem qualquer alusão a marco temporal. Aliás, a negativa de proteção dos direitos territoriais dos indígenas expulsos de suas terras antes de 1988 foi considerada e propositadamente rejeitada durante a Assembleia Nacional Constituinte.

Mesmo sob a perspectiva da história oficial do "direito dos brancos", a tese do marco temporal não tem sentido. Afinal, o direito dos povos indígenas às suas terras é reconhecido no Brasil desde o Alvará Régio de 1680, passando pela Lei de Terras de 1850 e por todas as Constituições brasileiras anteriores, a partir da Carta de 1934. Portanto, não havia porque exigir a presença dos povos indígenas nas suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988, como condição indispensável para a sua proteção.

Tal exigência representaria uma gravíssima injustiça. É que, por conta de processos históricos de opressão e violência, muitos povos indígenas estavam afastados de seus territórios tradicionais em 5 outubro de 1988, mas mantinham com eles vínculos profundos, de natureza cultural e espiritual. Negar a terra ancestral a esses povos seria revitimizá-los, de modo completamente injusto e incompatível com os valores da Constituição de 88.

É que a nossa Constituição pretendeu inaugurar uma nova relação com os povos indígenas, refutando compreensões preconceituosas do passado, que tratavam esses grupos como coletividades infantilizadas, que deveriam em algum momento ser "integradas à comunhão nacional". O constituinte quis fundar uma ordem jurídica que respeita e valoriza as diferenças culturais e identitárias. Por isso, fortaleceu a proteção do direito dos indígenas às suas terras - que é premissa indispensável também para a proteção do seu direito à "organização social, costume, línguas, crenças e tradições" (art. 231, caput). Não faria sentido interpretar a Constituição às avessas, inventando limitações inexistentes a direito fundamental tão importante dos povos indígenas

Além disso, exigir, várias décadas depois, a demonstração da posse das terras em outubro de 1988, especialmente tratando-se de grupos vulnerabilizados, com culturas próprias, que não se valem das formas de documentação típicas do direito oficial, equivaleria a exigir uma prova praticamente impossível de se fazer.

E não se pode esquecer que, para os indígenas, a terra não é direito patrimonial, mas existencial, que não pertence ao domínio do ter, mas ao do ser. A terra é o habitat, com o qual as comunidades mantêm profundo vínculo espiritual. É o ambiente em que podem viver de acordo com os seus costumes e tradições, reproduzindo a sua cultura e legando-a para os seus descendentes. É também o espaço em que gozam de autonomia para fazer as suas escolhas comunitárias, tomadas de acordo com as suas formas de organização política e societária. A garantia do direito ao território é, portanto, condição sine qua non para a proteção de todos os demais direitos dos povos indígenas, inclusive o direito à identidade étnica; o direito de ser e de viver como indígena. Sem a garantia da terra tradicional, a identidade indígena é ameaçada, com risco de dissolução dos laços comunitários e perecimento da cultura.

Do outro lado, a mineração em terras indígenas - incluída pelo ministro Gilmar Mendes na "negociação" sobre o marco temporal - representa riscos evidentes para os povos originários e para o meio ambiente. Sabe-se como as atividades de mineração são extremamente lesivas à natureza. Elas causam desmatamento, geram grave poluição dos rios e do ar, contaminam a água e os alimentos que os indígenas consumiriam. Envolvem, em geral, obras de grande envergadura, e atividades econômicas que implicam a atração de amplos contingentes populacionais não indígenas, o que causaria tensões e fatalmente comprometeria o modo de vida tradicional das populações originárias.

Depois de Mariana e de Brumadinho, ninguém pode ignorar o risco que as atividades de mineração - mesmo quando promovidas pelas maiores empresas nacionais e globais - representam para a vida e para a segurança das comunidades próximas. Com povos indígenas, esse risco seria exponenciado, pelas características singulares dessas populações, como a sua cultura própria, sua relação especial com a natureza e a maior exposição a doenças.

Terras Indígenas e crise climática

É consenso científico que as populações indígenas atuam como guardiões das florestas, dos ecossistemas e da biodiversidade mundial. Relatório recente divulgado pela FAO, organismo das Nações Unidas, ressaltou que territórios indígenas protegem as florestas do desmatamento ilegal de forma até mais eficaz do que outras áreas de conservação mantidas pelos governos. [2] De acordo com Wayne S. Walker, menos de 2% do desmatamento histórico na Amazônia brasileira aconteceu dentro de terras indígenas, que ocupam mais de 25% da região. [3] Os índices de preservação são muitos superiores, inclusive, aos das unidades de conservação ambiental.

Pesquisas como essas evidenciam que o combate ao aquecimento global depende diretamente do reconhecimento e da proteção das terras indígenas. Esses territórios contribuem significativamente para a manutenção da integridade das florestas e dos demais ecossistemas, evitando, assim, as emissões de carbono que causam o aquecimento global. Não é exagero dizer que o futuro do planeta depende da manutenção dos territórios e do modo de vida das populações indígenas.

Isto ocorre sobretudo porque a organização sociocultural, política e econômica dos povos indígenas é baseada em compreensão holística da relação entre o ser humano e a natureza: as pessoas são parte da natureza, e não entes afastados, cuja relação com o meio ambiente se dê pela objetificação e domínio - como é típico no Ocidente capitalista. Essa cosmovisão indígena se traduz em práticas que efetivamente "mantêm a floresta de pé".

Mas para que isso possa acontecer, e para que a sociedade envolvente possa superar a sua ignorância arrogante e aprender com os indígenas a conservar o meio ambiente, é preciso garantir com firmeza o seu território, conferindo-lhe um regime jurídico adequado. Não dá pra "negociar" esses direitos, cedendo aos impulsos suicidas da bancada ruralista ou aos interesses econômicos das grandes empresas de mineração.

Só um negacionista não compreende a urgência do tema do aquecimento global, que põe em risco a vida humana no planeta - de todos nós, e não apenas dos indígenas. Desproteger, nesse momento, as terras indígenas ou escancarar os territórios ancestrais à mineração é apressar ainda mais a corrida irracional na direção do precipício, do qual estamos a poucos passos.

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