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A culpa é nossa

FSP, Especial Clima, p. 1-8
Autor: LEITE, Marcelo; NOBRE, Carlos; MARENGO, José
03 de Fev de 2007

A culpa é nossa

Marcelo Leite
Enviado especial a Paris

Agora tem força de lei: não importa o que façam homens e mulheres daqui para a frente, seu planeta ficará bem menos hospitaleiro. Tempestades e secas serão mais freqüentes. Furacões e tufões, mais intensos. O nível do mar subirá pelos próximos mil anos -mesmo que a espécie desapareça da face da Terra nesse meio tempo.
Esta é a mensagem da primeira parte do quarto relatório de avaliação da saúde da atmosfera produzido pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, ou Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). O órgão criado pela ONU congregou 600 especialistas de 40 países para redigir o sumário executivo divulgado ontem em Paris.
A temperatura da atmosfera subirá pelo menos mais 1,8C além do 0,76C já escalado desde tempos pré-industriais. O mais provável é que totalize 3C até o fim deste século, mas não está de todo descartado que galope para mais de 4C.
A imensa geleira sobre a Groenlândia pode desaparecer em alguns milênios, como há 125 mil anos, elevando os mares em 7 m. No século 20, o nível do mar subiu 17 cm, mais aceleradamente após 1993.
O IPCC prevê que subirá 18 cm a 59 cm daqui para a frente até 2100. Seria devastador para a população de milhares de cidades costeiras. Só uma elevação de meio metro, como a prognosticada pelo IPCC, comeria dezenas de metros de praias em Recife. Com 10 cm a mais, o metrô de Nova York alagaria em ressacas.
Onze dos últimos 12 anos foram os mais quentes jamais registrados desde 1850. Nada de semelhante aconteceu nos últimos 20 mil anos, ou talvez 650 mil anos, como revela a composição de bolhas de ar aprisionadas no gelo da Antártida.
A história que essas bolhas contam é a de uma concentração inédita de gases do efeito estufa na atmosfera, como dióxido de carbono (CO2) e metano, produzidos pela queima de petróleo e derivados, carvão, agricultura e destruição de florestas tropicais. As emissões humanas desses gases, no entanto, só fazem aumentar. Elas cresceram de 6,4 bilhões de toneladas anuais em 1990 para 7,2 bilhões nesta década.
Governos do mundo inteiro reagiram ao relatório. O presidente francês Jacques Chirac disse ontem que é hora de uma "revolução" nos padrões de produção e consumo de energia. A declaração contrasta com o anúncio, anteontem, de que a Exxon, maior petrolífera do mundo, teve no ano passado o maior lucro da história do capitalismo: US$ 39,5 bilhões.
No que depender de cifras como essa, o termômetro e os mares continuarão subindo.

Aquecimento é "inequívoco", diz painel
O mais aguardado prognóstico da saúde do clima no planeta encerra de vez o debate sobre se os humanos têm ou não culpa pelo efeito estufa

DO ENVIADO A PARIS

A maratona do IPCC para fechar o documento "Mudança Climática 2007: A Base da Ciência Física" terminou 40 minutos depois da meia-noite de ontem em Paris (21h40 de anteontem em Brasília). Seus termos para o grau de certeza sobre o aquecimento global e a responsabilidade humana no fenômeno são fortes.
"Inequívoco" e "muito provável" foram os qualificativos mais usados. "Muito provável", no caso, se refere à segurança de mais de 90% de que o clima não mudaria como tem mudado não fosse a humanidade.
A climatologista norte-americana Susan Solomon, coordenadora do texto final que contém 21 páginas, pronunciou duas vezes seguidas a palavra "inequívoco" quando se referia ao aquecimento. Foi um raro momento em que acrescentou ênfase à sua exposição relativa à torrente de dados do sumário executivo do AR4, sigla pela qual é conhecido o quarto relatório do IPCC.
Nessas negociações multilaterais, a escolha das palavras tem muito peso. No relatório anterior, de 2001, o IPCC dizia que a contribuição humana era apenas "provável". No código climático-político, isso quer dizer "mais de 66% de certeza".
Já se sabia que o documento aprovado ontem iria vitaminar o vocabulário sobre certeza, pondo mais pressão sobre governos para que enfrentem o problema. Por isso o relatório era tão aguardado. Mas ele também alterou significativamente as projeções de 2001.
"O aquecimento do sistema do clima é inequívoco e agora se torna evidente, a partir de observações de acréscimos nas temperaturas globais médias do ar e do oceano, derretimento disseminado de neve e gelo e elevação do nível médio global do mar", afirma o quarto relatório do IPCC.
O físico brasileiro Paulo Artaxo, da USP, que participou dos trabalhos em Paris, discorda da qualificação de "catástrofe" para descrever as projeções. "Não é o fim do mundo, nem o caso de ser alarmista", afirmou.
Artaxo defende, porém, que se passe à ação, agora que não há mais dúvidas sobre a responsabilidade humana: "Como o mundo vai lidar com isso num espaço de tempo curto, até 2020 ou 2030?"

Melhores dados
O que reforça a segurança dos especialistas são centenas de dados medidos por instrumentos que não estavam disponíveis na época do relatório de 2001. Os modelos climáticos -programas de computador que simulam o clima da Terra- também estão mais precisos e poderosos. Eles são capazes de "enxergar" com mais detalhe os processos que ocorrem na atmosfera e nos oceanos.
O aumento de temperatura projetado até o final do século é de aproximadamente 3C, como valor mais provável. Não havia a indicação de números exatos como esse no documento de 2001, só uma faixa de valores (de 1,4C a 5,8C).
Agora, o IPCC indica duas faixas de valores. Uma é a série de números redondos fixados ("melhores estimativas") para cada cenário das simulações, que vai de 1,8C no mais otimista até 4C no menos otimista. A outra é um intervalo de aquecimento com chance menor de acontecer, mas não descartado (de 1,1C até 6,4C).
No caso da elevação prevista do nível dos mares até 2100, a diminuição da incerteza levou a um resultado contra-intuitivo. De 0,9 cm a 88 cm em 2001, o intervalo foi "rebaixado" para 18 cm a 59 cm. Parece menos, porque há uma tendência a reparar somente no dado mais alto, mas tanto 18 cm quanto 59 cm são valores muito altos -e, agora, muito mais prováveis.
"O ponto de interrogação foi removido", afirmou Achim Steiner, diretor-executivo do Pnuma (Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas).
Para Rajendra Pachauri, presidente do IPCC, o documento aponta claramente "o custo da inação". Ele se referia aos dois novos termos que passam a dominar o debate internacional sobre o clima: mitigação (como diminuir emissões de CO2 ou retirá-lo da atmosfera) e adaptação (proteger as populações dos efeitos inevitáveis).
É no campo da mitigação que se dão os embates políticos. Países ricos, os que mais contribuem para o aquecimento global, querem que nações em desenvolvimento também aceitem compromissos de redução. Seria para o segundo período do Protocolo de Kyoto, depois de 2012 (os resultados do primeiro são em geral considerados um fracasso).
O governo brasileiro bateu pé na questão do desmatamento, ponto sensível para o Brasil nas negociações. José Domingos Miguez, do Ministério da Ciência e Tecnologia, insistiu que se cravasse no texto a estimativa de que ele lança 1,6 bilhão de toneladas anuais de carbono na atmosfera -15% das emissões globais.
A objeção impediu que ficasse só a faixa de previsão, de 0,5 bilhão a 2,7 bilhões de toneladas. Nesse caso, haveria a chance de que o segundo valor -que corresponde a 25% das emissões mundiais- chamasse mais a atenção. (MARCELO LEITE)

Opinião

O nascimento do Homo planetaris

Carlos Nobre
José Marengo
Especial para a Folha

É comun ouvir de pessoas com mais de 50 anos, especialmente do Sul e Sudeste, a observação de que não faz mais frio como antigamente. Essa percepção é correta. As temperaturas estão subindo em todo país: já aumentaram de 0,6C a 0,7 C nos últimos 50 anos. As temperaturas mínimas subiram quase 1C durante o mesmo período.
Há um menor número de noites muito frias. Tudo isso é principalmente conseqüência das crescentes emissões de gases de efeito estufa por atividades humanas. A física que embasa o efeito estufa da atmosfera terrestre é robusta e bem conhecida desde o final do século 19. Torna-se até surpreendente notar que se levou tanto tempo para atingir-se o quase consenso atual sobre a enorme gravidade disso.
O 4o relatório de avaliação sobre a base científica das mudanças climáticas (AR4), produzido por centenas de cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, divulgado ontem, não deixa dúvida de que a maior parte do aquecimento dos últimos 50 anos se deve exatamente às emissões de gases-estufa por atividades humanas.
No entanto, a receptividade às conclusões deste quarto relatório na sociedade é muitíssimo maior. Desde 1990, ano do primeiro relatório, o grau de ceticismo tem diminuído notavelmente, talvez pela contundência das evidências apresentadas nos três relatórios já publicados -mas também pelo melhor grau de entendimento de processos físicos e especialmente devido à ocorrência de grandes extremos climáticos, como secas e enchentes.
No Brasil, temos enfrentado um grupo cada vez menor de céticos que falam que aquecimento global é "bobagem", de que somos excessivamente alarmistas. Consolida-se na percepção da sociedade o conceito de que mudanças climáticas são coisas do presente. Deve-se enfatizar que não é mais possível reverter completamente o aumento do aquecimento global. Os gases de efeito estufa em excesso continuarão aquecendo a baixa atmosfera e superfície terrestre por séculos, muito provavelmente.
No tocante à redução das emissões, é indiscutível que nossa grande contribuição deve ser o radical decréscimo dos desmatamentos amazônicos, para nos tirar da nada honrosa posição no bloco de frente dos países que mais emitem gás carbônico por essa via.
A queda das taxas de desmatamento dos últimos dois anos traz no seu bojo a esperança - esperança esta que inexistia até alguns anos atrás- de que é, sim, factível reduzir a derrubada de florestas para valores próximos de zero, baseando o desenvolvimento sustentável da Amazônia na recuperação de áreas degradadas.
Além disso, é preciso uma profunda transformação, talvez sem paralelo na história da civilização, uma evolução não biológica, mas filosófica e cultural, do Homo sapiens para algo novo, que podemos chamar de Homo planetaris. Essa nova humanidade deve ser guiada pelo conhecimento e pela ciência e ter respeito e solidariedade com os menos afortunados.

CARLOS A. NOBRE é pesquisador titular do Inpe, doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA, presidente do Comitê Científico do Programa Internacional da Geosfera-Biosfera (IGBP) e membro do Grupo de Trabalho 2 do IPCC
JOSÉ A. MARENGO é pesquisador titular do Inpe, doutor pela Universidade de Wisconsin, EUA, coordenador do programa de mudanças climáticas do Inpe e membro do Grupo de Trabalho 1 do IPCC.

Falta coragem para os países ricos, diz Lula
DA AGÊNCIA FOLHA, EM CAMPINAS
DA REPORTAGEM LOCAL
Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os países ricos não estão levando a sério a questão do ambiente. "O mundo rico está cansado de assinar protocolo" e não cumprir as metas de redução da emissão de gases na atmosfera por não ter "coragem de enfrentar as indústrias poluidoras", disse Lula ontem em visita a Campinas (SP).
Para o presidente, "o governo americano, o governo francês e o governo inglês estão preocupados e, no Brasil, nesses últimos dois anos, nós diminuímos o desmatamento da Amazônia em 52%. É preciso eles [países desenvolvidos] cuidarem do terreiro deles também", afirmou.
Em entrevista à Folha, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva fez eco às declarações de Lula no interior de São Paulo.
"A mitigação e a adaptação às mudanças do clima precisam ser feitas de forma global. É preciso que os países parem de fazer o jogo do empurra-empurra. Aqueles que já fazem algo, como o Brasil, precisam fazer mais, os que não fazem nada devem se sentir constrangidos eticamente a fazer", afirmou.
A ministra admitiu ter ficado preocupada com os resultados apresentados ontem pelo IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), na cidade de Paris.
"Todos nós estamos preocupados. As informações exibem um cenário muito difícil. Mesmo tomando as medidas existe a previsão de que o aquecimento poderá continuar por séculos. Temos agora a confirmação de que o que está acontecendo é resultado das intervenções humanas no ambiente."
(MAURÍCIO SIMIONATO E EDUARDO GERAQUE)

A crise climática pega Brasil desprevenido
País não tem um plano de adaptação à nova situação climática, que já faz seringal substituir café em SP e trará perdas às lavouras de soja

EDUARDO GERAQUE
DA REPORTAGEM LOCAL

A São Paulo da garoa e do café não existe mais. As geadas paulistas, com o passar dos anos, viraram fenômenos esparsos. No noroeste do Estado, o café está deixando de ser plantado devido ao calor em excesso. Com esse clima, quem ganha espaço são as seringueiras, nativas da quente Amazônia.
Para quem acha que o impacto das mudanças climáticas em São Paulo e no Brasil virá apenas daqui muitas décadas, os cálculos do pesquisador Hilton Pinto, do Cepagri (Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas a Agricultura), da Unicamp, são um verdadeiro balde de água fria -quer dizer, quente, no caso.
O governo deveria se interessar por esses números e por outros, que vêm sendo produzidos pelos cientistas. Mas o Brasil não tem um plano de adaptação para a mudança climática. "As políticas são insuficientes", admite Luiz Pinguelli Rosa, professor da Coppe (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Secretário Executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, órgão cujo chefe é o presidente Lula.
Para o pesquisador, falta uma cultura que envolva as mudanças do clima no dia-a-dia das cidades e do país. "O tema das adaptações aos impactos é onde estamos pior. É preciso colocar essas previsões até no âmbito das enchentes que ocorrem nas cidades", afirma Pinguelli.

Número mágico
Para tentar criar essa cultura é que Pinto, da Unicamp, especialista em ligar dados do clima com a agricultura, prefere olhar para o passado e o presente.
"No Estado de São Paulo, nos últimos cem anos, as médias das temperaturas mínimas subiram de 2,5 C a 3 C. Ou seja, as madrugadas ficaram mais quentes. Isso é bem perceptível pelos dados que temos", diz.
Segundo Pinto, a migração das culturas na agricultura paulista é uma realidade. Na cálida São José do Rio Preto, o café está abrindo passagem para as seringueiras, que prosperam sob o clima amazônico.
"No caso do café, o 34 é um número mágico. Na época do florescimento, não podem ocorrer mais do que cinco dias com temperaturas superiores aos 34 C. Se isso ocorre, a produção é perdida. As flores e os frutos não são produzidos."

São Paulo da borracha
Se antes o noroeste paulista estava na fronteira da cultura do café, hoje, tudo mudou.
"Em 1990, havia 2,3 mil hectares de seringueiras plantadas naquela região. Em 2005, a área dessa cultura já era de 20 mil hectares. Essa cultura terá um bom futuro", diz Pinto.
De seu computador da Unicamp (que tem como fundo de tela um pôr-do-sol onde o astro está trocado pelo símbolo do Corinthians), Pinto tira dados que mostram o fenômeno em outros pontos do Estado. Os seringais, entre 1990 e 2005, pularam dos 3,7 mil hectares para 37 mil hectares.
"Não tem escapatória. O aumento de 3 C nas temperaturas máximas do Brasil, apenas no caso do café, significa um prejuízo de R$ 2 bilhões. No total, para todos os grãos, a perda do potencial de plantio no país será de 25%", afirma Pinto.
"No prazo entre 20 anos e 45 anos teremos um cenário agrícola bastante diferente."
O efeito passado e presente das mudanças climáticas no Brasil, percebidos principalmente no campo, reforça uma perspectiva sinistra.
O modelo feito pela Unicamp, em parceria com a Embrapa Informática Agropecuária, mostra que as perdas econômicas, para a maior parte dos agricultores, aumentarão.
Em termos nacionais, o café continua um exemplo emblemático. "Caso a temperatura aumente em média 5,8 C, vamos perder 92% da área útil de plantio em São Paulo, Minas Gerais e Paraná", explica Pinto.
Os cenários futuros construídos pelos pesquisadores consideram aumentos de temperatura da ordem de 1 C, 3 C e 5 C. E um aumento nos níveis de chuva em 5%, 10% e 15%. O índice de acerto das previsões é de 80%, que também considera os tipos de solo para o plantio.
Depois do café, que tende a migrar para o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, a soja também será impactada. Ela poderá perder até 64% de área, com um aumento de 5,8 C.
"A cultura da soja depende muito de água. Por isso, no Rio Grande do Sul, por causa da maior quantidade de secas, ela deverá desaparecer por completo", profetiza Pinto.

Infra-estrutura urbana e saúde pública deverão ser repensadas

DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil precisa conhecer as vulnerabilidades à mudança climática de suas várias regiões, para adotar uma política pública de "redução de danos".
"A mudança climática já está aqui. Não tem mais o que combater. Temos de avaliar a situação e propor medidas para poder reduzir o prejuízo", afirma José Marengo, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
"Por enquanto, o Brasil não tem um plano nacional de vulnerabilidade, como existe em outros países do mundo", diz. Na Holanda, por exemplo, um plano de reordenamento territorial e agrícola já está em curso. O país fica abaixo do nível do mar e deve deixar a água invadir parte de seu território.
Um modelo feito por Marengo mostra que, no pior cenário, as temperaturas vão subir em até 6 C na maior parte do Brasil durante o próximo século.
Segundo Marengo, é bom que se entenda que a mudança do clima está perto das pessoas.
"Uma zona com bastante risco é o Semi-Árido. As secas mais freqüentes poderão gerar refugiados do clima. Grandes ondas de migração."
No caso do Sudeste, como os episódios das chuvas intensas devem aumentar (mesmo que não ocorra uma elevação no volume total de precipitação no ano), a potencialização de problemas já conhecidos dos moradores das grandes cidades parece inevitável.
"São Paulo com qualquer chuvinha vira "una Venezia". Isso é resultado de uma mistura dos efeitos das mudanças do clima com coisas que não têm a ver", explica o peruano Marengo, com sotaque carregado.
"As pessoas moram nas encostas e nos leitos dos rios. A cidade está muito impermeável, com muito lixo. Tudo isso precisa ser analisado."
Para Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fiocruz e membro do Grupo de Trabalho 2 do IPCC - voltado para adaptação e vulnerabilidade-, a imagem de que alguns problemas serão potencializados é mais correta.
"Temos um mapa de vulnerabilidade sobre o impacto do clima nas doenças que é válido hoje. E daqui a 30 anos?"
Os casos de malária, dengue e diarréia tendem a aumentar onde as doenças já existem: o aquecimento diminui mais ainda as diferenças de temperatura entre inverno e verão, facilitando a reprodução de insetos vetores de doenças.
O pesquisador diz que haverá um risco maior nas zonas urbanas de leishmaniose e leptospirose. "Isso vai ocorrer. Como vamos nos virar? Na verdade, a pergunta é outra. Temos de saber como o poder público vai acudir as pessoas." (EG)

Emissão precisa cair pela metade
As negociações entre países ricos e pobres para tentar desacelerar o aquecimento global podem ficar mais complicadas do que se esperava

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Deter o aquecimento global vai ser difícil, os resultados vão demorar a aparecer e vai ser preciso negociar muito para que o potencial de redução na emissão de gases-estufa nos países em desenvolvimento possa ser aproveitado. Segundo o IPCC, o maior volume das oportunidades mais fáceis para tentar frear a mudança climática está nas nações pobres.
Os números divulgados ontem indicam que para evitar o pior cenário possível em 2100 -um aumento maior que 4,5C na temperatura média global-, a humanidade teria de cortar pela metade a emissão de gás carbônico prevista para esse século. Um desafio e tanto.
"Se quisermos limitar o aquecimento a 2C, podemos jogar "apenas" 750 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera neste século", disse à Folha Meinrat Andreae, climatologista do Instituto Max Planck de Química, da Alemanha. Se não fizermos nada, emitiremos no fim do século até 1,4 trilhão de toneladas.
Impossível? "Não há um momento a partir do qual a coisa se torna impossível, mas ela fica mais difícil à medida que o tempo passa", diz Andreae.
Para ter uma idéia do tamanho do problema que é evitar a emissão de 650 bilhões de toneladas de CO2, basta saber que o Protocolo de Kyoto -tratado assinado em 1997 para cortes de emissão- previa conter só 5 bilhões em emissões até 2012.
Para traçar um panorama maior de mitigação (medidas para reduzir o gás carbônico na atmosfera), o chamado Grupo de Trabalho 3 do IPCC prepara um relatório para maio. Uma versão preliminar do trabalho obtida pela Folha mostra que os cientistas já estimam como evitar a emissão de até 40 bilhões de toneladas de CO2 até 2030 (veja quadro acima).
O trabalho do Grupo 3 está deixando três idéias claras.
A primeira delas é que não vai adiantar tentar concentrar mudanças apenas na política de geração de energia. A indústria e a agricultura têm uma grande contribuição a dar. "E o relatório está mostrando que o potencial na parte de edificações [residências e comércio] é absurdamente grande", diz Roberto Schaeffer, economista da UFRJ que integra o grupo.
A segunda é uma das poucas boas notícias relativa a mitigação e se refere aos custos para cortar emissões.
Uma boa parte do trabalho pode se feita por meio de investimentos que retornam, resultando em custo zero ao final "Em geral são melhorias em eficiência energética", diz Schaeffer. Para simplificar, basta pensar que economizar energia significa economizar dinheiro também. "Existem inclusive medidas que têm custo negativo [ou seja, dão lucro]."
O terceiro e mais complicado aspecto apontado pelo relatório provisório, porém, é uma constatação que já estava esboçada pelo Protocolo de Kyoto: as melhores oportunidades para cortar emissões estão nos países em desenvolvimento.
"A razão desse potencial, de maneira geral, é que a infra-estrutura desses países ainda não foi totalmente construída", diz Schaeffer."Quem ainda está por fazer usinas e indústrias ainda tem a opção de escolher tecnologias mais limpas", explica. "Para quem já tem tudo instalado, fica mais difícil."
Diante desse cenário, os países industrializados poderiam tentar empurrar a responsabilidade para os pobres, exceto por uma razão. "A responsabilidade histórica dos países desenvolvidos é muito maior do que a nossa, e hoje eles emitem muito mais", diz Suzana Kahn Ribeiro, também da UFRJ e do Grupo 3 do IPCC.
Kyoto desobrigou os pobres de reduzir de emissões, mas a pressão para que isso ocorra no futuro é cada vez maior.
Há uma corrente de acadêmicos que é contra isso. "Impor metas do tipo "Kyoto" a um país como o Brasil não funcionaria, porque o governo não tem tanto controle sobre o desmatamento da Amazônia, que é a nossa maior fonte de emissão", diz o físico Luiz Gylvan Meira Filho, da USP.
Como, então, criar um incentivo para que nações pobres aproveitem seu potencial? Meira Filho foi um dos artífices chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), ferramenta do acordo de Kyoto que gerou um mercado no qual países ricos podem bancar medidas de mitigação para os pobres em troca de abatimento nas suas cotas de redução.
"Com todo esse potencial nos países em desenvolvimento, com as opções mais baratas aqui, nossos projetos de mitigação são muito mais atraentes", diz Khan Ribeiro. "O problema é que se todos esses projetos forem feitos gerando créditos para países desenvolvidos, eles bancarão apenas a parte mais fácil da solução."
Se os países em desenvolvimento tiverem de assumir metas, a parte mais fácil do trabalho já vai ter entrado na conta das nações ricas, raciocina Ribeiro. "Aí só nos restariam as opções mais caras". O problema seria contornável se a mitigação nos países pobres fosse bancada por fundos internacionais. Desatar esse nó demandará muita discussão na formulação de um acordo pós-Kyoto (o protocolo expira em 2012).

ONG tentou subornar cientista para questionar IPCC, diz jornal

DA REDAÇÃO

No dia em que o IPCC divulgou seu relatório sobre aquecimento global, o jornal britânico "The Guardian" publicou reportagem que diz que um grupo de lobby ligado à administração Bush pagou a cientistas e economistas para que minimizassem o impacto do texto.
Segundo o jornal, o AEI (American Enterprise Institute), financiado pela petrolífera ExxonMobil, a maior do mundo, ofereceu pagamentos individuais de US$ 10 mil para artigos que enfatizassem os defeitos do relatório.
O AEI recebeu mais de US$ 1,6 milhão da Exxon e mais de 20 de seus integrantes já trabalharam como consultores da administração do presidente dos EUA, George W. Bush. O vice-presidente do conselho de gestão do instituto, Lee Raymond, já comandou a Exxon.
Em cartas enviadas a cientistas nos EUA, no Reino Unido e em outros países, o AEI define o painel da ONU como "resistente à crítica construtiva e tendencioso a tomar conclusões que têm pouca sustentação em trabalho de análise". As cartas pedem artigos que explorem as limitações dos modelos climáticos do relatório.

"Valioso"
Em Washington, procurado pela imprensa para comentar o relatório do IPCC, o presidente George W. Bush se pronunciou por meio de seu porta-voz Tony Fratto, que classificou o documento de "valioso" com "conclusões significativas".
"Esse informe contribuirá para o conjunto de conhecimentos que temos para estudar e compreender a melhor maneira de reagir aos desafios da mudança climática", afirmou Fratto. O porta-voz lembrou na entrevista que Bush prometeu um corte no consumo de gasolina de 20%, apesar de o país ainda se recusar a assinar qualquer acordo internacional.
"Somos um contribuinte pequeno se você olhar para o resto do mundo", disse o secretário de energia dos EUA, Sam Bodman, minimizando a recusa do país ao Protocolo de Kyoto. Ele não criticou, porém, o relatório do IPCC. "Estamos felizes com ele. Nós aceitamos e concordamos com ele."

"Egoísmo"
Em Paris, entretanto, o tom ontem foi outro.
"Em face dessa urgência, não é mais hora de meias-medidas. É hora de uma revolução." Com essa declaração, o presidente francês Jacques Chirac resumiu como deve ser encarado o novo relatório do IPCC.
"Por que somos tão lentos em tomar as medidas necessárias?", perguntou a si próprio, em discurso. "Porque, com egoísmo nos recusamos a reconhecer as conseqüências."
Chirac já havia criticado a inação dos EUA a respeito do problema. Segundo ele, é "inevitável" a perspectiva que produtos americanos têm para o futuro no mercado europeu: incidência de impostos sobre a emissão de carbono.

Pessimismo extra
Entre cientistas que comentaram o novo relatório, alguns se declararam mais pessimistas do que o IPCC. "Acho que há espaço para uma elevação de até 6C", disse à Folha James Lovelock, ícone do ambientalismo que tem defendido a energia nuclear como forma de evitar a emissão de carbono. "Não há mais como evitar isso neste século."
Meinrat Andreae, biogeoquímico do Instituto Max Planck, também disse que o limite de dúvida deve ser ampliado para cima. "Acho que há muita incerteza, particularmente no que se refere ao derretimento de plataformas de gelo", disse.
Para o secretário-geral do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Achim Steiner, é hora de ampliar Kyoto. "É mais urgente do que nunca que a comunidade internacional entre em negociações sérias para um novo tratado mundial abrangente para deter o aquecimento global", disse.
Com agências internacionais

FSP, 03/02/2007, Especial Clima, p. 1-8

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