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Costura difícil, mas promissora

Adiante, n. 7, jul. 2006, p. 36-39
31 de Jul de 2006

Costura difícil, mas promissora
A aproximação entre as organizações e o mundo corporativo e positiva e sinérgica, embora traga riscos de cooptação

Por José Alberto Gonçalves

A distância entre o mundo corporativo e as ONGs parece intransponível, sobre tudo em relação às organizações mais críticas à economia de mercado, protagonistas do Fórum Social Mundial. O diálogo de fato não é fácil, mas sinais de aproximação dos dois mundos tornam-se cada vez mais comuns.
O movimento de responsabilidade social empresarial tornou as companhias uma fonte nada desprezível de financiamento a ações nas áreas de educação, saúde e meio ambiente. Apenas no universo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), foi investido em 2005 perto de R$ 1 bilhão em 2.210 projetos sociais, desenvolvidos diretamente pelas empresas ou por ONGs. Os números foram apurados no terceiro censo da entidade sobre o investimento social privado no País, que recebeu respostas de 63 de suas 90 associadas.
Além de financiar ações no campo social, um grupo de empresas também já participa de agendas conjuntas de trabalho com as ONGs em torno de temas de políticas públicas, algo quase impensável uma década atrás.
A experiência do Fundo Brasileiro da Biodiversidade (Funbio) indica que a costura pode funcionar em outros espaços. Seu Conselho Deliberativo possui 28 membros, distribuídos entre empresas, ONGs, instituições acadêmicas e governo. É ele que aprova as prioridades do Funbio para financiar projetos de conservação da biodiversidade. Integram o conselho entidades tão dissonantes quanto a AS-PTA, ONG que lidera a campanha contra os transgênicos, e o grupo Brascan, com atuação nas áreas de construção, mineração e agropecuária.
"Há empresas genuinamente convencidas de que o futuro delas está ameaçado% diz Pedro Leitão, secretário-geral do Funbio, que tem participado de reuniões com empresários para convencê-los a investir no fundo. Das instituições beneficiadas pelo Funbio, 79% são ONGs, entidades comunitárias e cooperativas. O fundo foi criado em 1995 como associação civil privada a partir da doação de US$ 20 milhões do Fundo Mundial do Meio Ambiente (GEF).
Agenda conjunta
As articulações para ampliar a base de doadores do Fundo da Infância e da Adolescência (FIA) e formular o projeto do IR Ecológico, uma espécie de Lei Rouanet do meio ambiente, também são bons exemplos de atuação conjunta entre ONGs e empresas.
No caso do FIA, o Gife e o Instituto Telemig Celular têm participado ativamente da negociação com o Congresso Nacional de alterações na lei que instituiu o fundo. O objetivo do movimento, de grande interesse das ONGs que atuam na área da infância, visa estender a renúncia fiscal também a pessoas físicas que fazem a declaração simplificada do imposto de renda e empresas que declaram o tributo pelo lucro presumido. Os recursos do FIA são destinados a centenas de projetos de proteção a crianças desenvolvidos por associações comunitárias, centros educativos e ONGs.
Segundo Fernando Rossetti, secretário-geral do Gife, cerca de 87% das 90 associadas da entidade investem em projetos educativos. Isso explica o empenho dá entidade na negociação para mudar as regras do FIA.
Mesmo um segmento historicamente à margem, como o de Educação de Jovens e Adultos (EJA), começa a atrair a atenção de algumas companhias, como a Natura, que lançou no início de julho o projeto "Lendo Nossa Gente". Realizado em parceria com as ONGs Ação Educativa, Alfabetização Solidária e Cenpec, visa estimular a leitura em escolas públicas que oferecem cursos para jovens e adultos.
Já o movimento pela criação do IR Ecológico conseguiu a façanha de juntar num mesmo barco grupos afinados com o mundo corporativo, como o Gife, a Fundação O Boticário e ONGs de perfis distintos como o WWF, a Conservação Internacional (CI), a The Nature Conservancy (TNC), o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), a SOS Mata Atlântica e o Instituto Socioambiental (ISA).
O objetivo é aprovar no Congresso uma lei de renúncia fiscal que incentive pessoas físicas e jurídicas a doar dinheiro para uma carteira de apoio a projetos ambientais. "Seria uma fonte adicional de recursos que as ONGs poderiam captar para investir na profissionalização de suas ações", diz Ana Cristina Barros, representante da TNC no Brasil.
Uma das pioneiras na aproximação com o setor privado é a Fundação SOS Mata Atlântica. Mesmo com empresários em seu conselho, até 1992 vivia de chapéu na mão atrás de doações das companhias, lembra Adauto Basílio, gerente de captação de recursos da organização. Em 1993, o lançamento de um cartão de crédito pelo Bradesco, pelo qual a pessoa se tornava filiada à SOS, deu fôlego à entidade para contar com uma fonte estável de recursos.
Metade do dinheiro repassado pelo Bradesco paga o custeio da entidade e os outros 50% destinam-se a projetos. "Antes os empresários torciam o nariz para nossos pedidos, éramos os ecochatos. Agora, são as empresas que nos procuram interessadas em apoiar alguma iniciativa", diz Basílio.
Do orçamento anual de R$ 13 milhões, cerca de 90% vêm das parcerias com empresas. Somente o cartão do Bradesco rende anualmente à SOS perto de R$ 3 milhões. Outro apoio é o da Colgate/Palmolive, que desde 1997 repassa à SOS 1% das vendas da linha de saúde bucal Sorriso Herbal, que deve render pelo menos R$ 150 mil aos cofres da entidade.
Mais uma ONG que ampliou suas parcerias com empresas é o Instituto Ecoar, especializado em educação ambiental e reposição florestal. Em 2004 e 2005, por exemplo, a entidade desenvolveu atividades de sensibilização ambiental no entorno de cinco unidades da Suzano Papel e Celulose no Estado de São Paulo, sob encomenda da empresa.
No entanto, assinala Miriam Duailibi, coordenadora do Ecoar, o instituto também condiciona suas parcerias à abertura das empresas para atividades de educação ambiental com funcionários dos diferentes escalões hierárquicos. Foi assim que surgiu o projeto "Fomento à Cultura de Sustentabilidade", realizado junto às áreas de recursos humanos, comunicação e segurança, meio ambiente e saúde do Cenpes, o centro de pesquisas da Petrobrás.
Conflitos e possibilidades
Ainda é difícil e muitas vezes turbulenta a aproximação entre os mundos corporativo e as ONGs, particularmente as organizações com atuação histórica no debate sobre políticas públicas. "Não é fácil atrair empresas para campanhas que interferem nas políticas públicas. Tendem a ter um pé mais atrás quando se trata de uma ação política mais explícita% diz Denise Carreira, ex-coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Rossetti, do Gife, reconhece a dificuldade. "São duas culturas distintas. As ONGs costumam ter um discurso mais ideológico, critico às empresas. No mundo corporativo, porém, a linguagem é mais enxuta e há mais cobrança por resultados." De qualquer forma, ele acredita que os dois campos tendem a se aproximar cada vez mais, até porque existe um grupo de empresas ciente da importância de relacionar investimentos sociais a políticas públicas que promovam a cidadania.
Tal ponte está sendo construída com a ajuda de consultorias como a Setor 2 1/2, especializada na estratégia de ações de responsabilidade social empresarial. A mais recente aproximação proporcionada pela Setor 2 1/2 se deu entre o ISA, a Grendene e a top model Gisele Bündchen, que aderiram em maio à campanha Y Ikatu Xingu, movimento pela recuperação das nascentes dos rios que cortam o Parque Indígena do Xingu.
Usar o apoio do setor empresarial quase sempre é um dilema para as organizações não governamentais. Não seria incoerente aceitar apoio de companhias que se notabilizaram por uma biografia socioambiental pouco louvável?
O tema costuma gerar discussões infindáveis no campo das ONGs e é visto com enfado pelos empresários. Pedro Leitão, do Funbio, levanta uma possível solução para o dilema. "A ONG deve condicionar a parceria ao cumprimento de um compromisso da companhia com a mudança de comportamento, monitorando a empresa por meio de indicadores." Mas sempre há riscos nessa relação, como adverte Fabio Feldmann, secretário-executivo do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais: "A interação das ONGs com o governo e empresas é positiva e sinérgica, mas sempre traz um risco que é o da cooptação", diz.

A eficiência medida em números

Trata-se de um curso inédito: ensina profissionais de organizações da sociedade civil e técnicos do setor público a medir financeiramente o resultado das ações sociais. 0 Banco Itaú lançou o treinamento no ano passado e prepara a quarta turma, que tomará aulas durante dois meses e meio.
"Os recursos tanto físicos quanto humanos são muito escassos nas instituições, daí a necessidade de buscar a eficácia na sua alocação", afirma Ana Beatriz Patrício, superintendente da Fundação Itaú Social. "Mais que prestar contas para os financiadores, as organizações buscam nesse curso a profissionalização."
O banco está empenhado em traduzir em números o impacto econômico da educação e, sob a coordenação do diretor-executivo Sergio Werlang, já chegou a uma estimativa: o investimento nesse setor, medido por um dos projetos sociais da fundação - o Raízes e Asas - traz uma taxa interna de retorno à sociedade de 14,3% ao ano, durante 50 anos.
Aron Belinky, que ocupa a cadeira das ONGs na construção da norma de responsabilidade social ISO 26000, pondera que as ONGs precisam desenvolver seus próprios meios de medir a eficiência. Para ele, a medição financeira é válida em caráter emergencial, quando é necessária velocidade na solução de questões. Mas alerta que esta não pode ser a única saída, pois acaba condicionando, de forma reducionista, ativos intangíveis a valores monetários. - por Amália Safatle

Adiante, n. 7, jul. 2006, p. 36-39

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