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Contrato de R$ 546 milhões sem licitação

O Globo, O País, p. 10
13 de Nov de 2010

Contrato de R$ 546 milhões sem licitação
Às vésperas do 1 turno, empresa fecha negócio para construir centro de lançamento de foguetes no Maranhão

Roberto Maltchik

Sem licitação, a empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), criada para levar adiante o programa espacial brasileiro, fechou em 29 de outubro, às vésperas do primeiro turno, um contrato de R$ 546 milhões com o consórcio Camargo Corrêa/Odebrecht para construir um novo centro de lançamento de foguetes em Alcântara (MA).

Os recursos deverão ser aplicados entre 2011 e 2012, para tentar fazer o veículo lançador de satélites Cyclone 4, de fabricação ucraniana, chegar ao espaço em dois anos.

Entretanto, a falta de previsão orçamentária para o empreendimento e a inexistência de dados oficiais sobre a saúde financeira da Ucrânia ameaçam o sucesso da operação.

Como O GLOBO revelou em maio, a licitação para construir a base, numa área de 500 hectares dentro do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), foi revogada e o contrato foi firmado por carta-convite, numa manobra chancelada pelo Conselho de Defesa Nacional.

Nos bastidores, a alternativa foi considerada a única fórmula para evitar a constante ameaça de ações de embargo, movidas por empresas que seriam derrotadas no processo.

Mas o procurador Marinus de Marsico, representante do Ministério Público Federal junto ao Tribunal de Contas da União, avalia que tais argumentos são frágeis e diz que existem indícios de descumprimento da Lei de Licitações.

- Precisamos saber os detalhes do contrato para identificar se todos os itens podem ser dispensados de licitação.

O que causa maior estranheza é que esse processo começou por licitação, que foi interrompida de maneira abrupta (em maio) - disse Marsico.

Investimentos feitos pela Ucrânia são incógnita
Segundo fontes do setor, o contrato, cujo conteúdo é classificado como de interesse à segurança nacional, abre brechas para que o valor global alcance quase R$ 1 bilhão. Marsico disse que deverá requisitar cópia do documento para analisar a legalidade do processo.

Apesar da alegada "segurança nacional", o mercado dava como praticamente certa a vitória do consórcio Camargo Corrêa/Odebrecht já no começo do segundo semestre e, em 9 de setembro, o governo já alardeava o início das obras.

Outro segredo é a saúde financeira do governo ucraniano para dar suporte ao empreendimento. De acordo com o Tratado firmado entre Brasil e Ucrânia para conceber a Alcântara Cyclone Space, Brasil e Ucrânia devem repartir igualmente todas as despesas do projeto. Entretanto, até hoje a ACS não disponibiliza o fluxo de investimentos do país europeu.

A Ucrânia é uma entre as nações mais castigadas pela crise econômica internacional.

Em novembro de 2009, a exprimeiraministra Iulia Timochenko chegou a apelar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em visita a Kiev, por recursos do BNDES para concretizar o negócio. A transação, no entanto, esbarra na legislação brasileira.

Enquanto isso, a União deve despejar, nos próximos dois anos, R$ 356 milhões na construção do sítio de lançamento.

Serão R$ 193 milhões da própria ACS (a Ucrânia entraria com o mesmo valor), mais R$ 163 milhões da Agência Espacial Brasileira (AEB), que repassou à binacional, em 25 de outubro, a responsabilidade pela execução de obras de infraestrutura.

Os recursos ainda não estão no Orçamento Geral da União e os operadores do programa contam com a apresentação de "destaques no orçamento", e com a boa vontade da presidente eleita, Dilma Rousseff, para cumprir o cronograma.

A obra de infraestrutura, que também será feita sem licitação, contempla a rede de sistemas de energia e água, o cabeamento ótico e a construção do prédio para o armazenamento de propelente líquido (combustível de altamente tóxico usado em foguetes do mesmo porte). Já o local onde o foguete deve ser efetivamente lançado demanda três complexos: a área de montagem, a área tecnológica e a mesa de lançamento. Serão 360 dias corridos de trabalho, porém, em razão do período de chuvas, a meta é concluir o projeto em dois anos.

O prazo de 2012 para o primeiro lançamento é classificado como "extremamente otimista" por técnicos que participam da operação. A meta é usar o Centro de Alcântara como referência internacional para o lançamento comercial de satélites à órbita geoestacionária, a 36 mil quilômetros da Terra. Cada lançamento seria vendido por cerca de US$ 30 milhões.

- Estamos prevendo o primeiro lançamento para 2012.

Um voo de qualificação (sem satélite a bordo). O segundo vai com carga útil. Esperamos fazer isso ainda em 2012 - disse o presidente da ACS, Roberto Amaral, que foi ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula.

Agência espacial nega que desrespeite legislação
Dispensa da licitação estaria respaldada em decisão do Conselho de Defesa Nacional

Brasília.

A Alcântara Cyclone Space e a Agência Espacial Brasileira (AEB) negam que o contrato assinado com dispensa de licitação de R$ 546 milhões, firmado com o consórcio Camargo Corrêa/Odebrecht, desrespeite a legislação. As duas instituições afirmam que a negociação está respaldada por decisão do Conselho de Defesa Nacional, que em maio determinou o fim da disputa, alegando o "interesse público" e a "proteção da defesa nacional".

O presidente da AEB, Carlos Ganem, afirma que a complexidade da obra determina a execução por carta-convite. Diz ainda que o termo de cooperação com a ACS, firmado em outubro para que as obras de infraestrutura também ficassem dispensadas de licitação, atende a boa prática de engenharia e a necessidade de cumprimento de prazos.

- Foi feito um protocolo de cooperação entre a Agência e a ACS para oferecer, da forma mais expedita e racional, um modo de trabalho legal para obter no menor prazo de tempo o melhor resultado em favor de uma política de lançadores (de satélites) no Brasil. Quem imagina que a AEB tenha outro objetivo, que não o previsto, não sabe nada acerca do orçamento da União e da Lei de Responsabilidade Fiscal - disse Ganen.

A ACS informa que todas as cláusulas do contrato e do acordo com a Agência Espacial estão previstas em lei. O presidente da ACS também disse que a dispensa de licitação para toda a obra ocorre por questão de engenharia. Segundo ele, "seria muito arriscado" ocorrerem, ao mesmo tempo, duas obras diferentes no mesmo local.

- Não quer dizer que a Agência Espacial é incompetente (para gerenciar o contrato). Do ponto de vista de engenharia, seria muito arriscado ter duas obras de engenharia distintas no mesmo local. Vamos fazer a parte da AEB e ela vai nos pagar por isso - disse o presidente da ACS, Roberto Amaral.

Sobre as garantias de pagamento do sócio ucraniano, a ACS não se pronuncia. Os ucranianos são responsáveis pelo foguete Cyclone 4 e pela transferência de tecnologia. De acordo com fontes do setor, o projeto executivo do lançador de satélites foi concluído.

Acidentes e quilombolas

A Alcântara Cyclone Space foi criada em outubro de 2003, com o objetivo de incluir o Brasil no seleto grupo de países que servem de base para o lançamento de satélites. A meta era lançar, a partir deste ano, o Cyclone 4, foguete ucraniano com capacidade de levar à órbita equipamentos de elevado potencial comercial e estratégico, como satélites de telecomunicações e de observação das mudanças climáticas. Cada lançamento será vendido por US$ 30 milhões.

No entanto, entraves com comunidades quilombolas na região de Alcântara, no Maranhão, já atrasaram o primeiro lançamento em, pelo menos, dois anos. O novo prazo de lançamento é 2012.

Alcântara foi escolhida para sediar a base em razão de sua proximidade com a linha do equador, localização geográfica que oferece uma economia de cerca de 30% na queima de propelente (combustível). A polêmica com os quilombolas, que se negam a ser transferidos para outras localidades afastadas da orla marítima, provocou mudanças radicais no projeto.

O centro de lançamento foi deslocado para dentro de uma área militar criada pelo governo Sarney, ainda nos anos de 1980. O Ministério da Defesa, entretanto, opera nos bastidores para transferir as famílias e expandir o projeto, criando novos centros de lançamento. A ACS e AEB afirmam que não têm planos para a área ocupada pelas comunidades tradicionais.

O projeto Cyclone 4 é classificado como a mais importante e promissora iniciativa para impulsionar o Programa Espacial Brasileiro. O lançamento do Veículo Lançador de Satélites (VLS) já fracassou por três vezes. O último fracasso, em 2003, resultou na morte trágica de 21 técnicos e engenheiros, vítimas da explosão do foguete, na véspera do lançamento. À época, investigação do Ministério Público Federal apontou graves falhas de segurança. O projeto do VLS sofre com a falta de recursos, e a próxima tentativa de lançamento está prevista para 2014.

O Globo, 13/11/2010, O País, p. 10

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