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Contaminação de mercúrio na Amazônia e a responsabilidade civil ambiental

ConJur - https://www.conjur.com.br/
Autor: BEDONI, Marcelo; FARIAS, Talden; ALMEIDA, Amanda de
28 de Jun de 2023

Contaminação de mercúrio na Amazônia e a responsabilidade civil ambiental

Marcelo Bedoni
Talden Farias
Amanda de Almeida

28/06/2023

Em pesquisa publicada no final de maio deste ano, desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e outras instituições [1], constatou-se que pescados comercializados em mercados públicos, feiras-livres ou nos pontos de desembarque, durante o período de março de 2021 até setembro de 2022, em seis estados da Região Norte (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima), apresentaram níveis de mercúrio acima do limite seguro.

A pesquisa coletou amostras em 17 municípios dos seis estados mencionados, sendo analisado o total de 1.010 exemplares de peixes de 80 espécies diferentes. O resultado da análise integral revelou que mais de um quinto (21,3%) dos peixes comercializados apresentaram níveis de mercúrio acima dos limites seguros estabelecidos pela Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO/WHO) e pela Agência de Vigilância Sanitária Brasileira (Anvisa).

Também foi analisado o risco atribuível ao consumo de pescado contaminado, considerando-se como referência a dose de ingestão diária segura de 0,1 μg MeHg/kg peso corporal/dia proposta pela Environmental Protection Agency (EPA). Esse índice considera quatro estratos populacionais: 1) mulheres em idade fértil (dez a 49 anos); 2) homens adultos (≥ 18 anos); 3) crianças de cinco a 12 anos; e 4) crianças de dois a quatro anos. O resultado obtido apontou que o risco excedeu a dose de referência indicada em todos os estratos populacionais analisados e em todos os pontos amostrados.

Roraima apresentou a maior prevalência de contaminação, com 40,0% das amostras contaminadas com mercúrio. Com relação ao potencial de ingestão de mercúrio pela população, o Estado extrapolou de 5,9 a 27,2 vezes a dose de referência. As crianças de dois a quatro anos, por exemplo, correm o risco de ingerir até 27 vezes mais do que o índice seguro de ingestão de mercúrio.

Por causa de algumas lacunas, devidamente apontadas pelos pesquisadores, os resultados obtidos podem ser considerados conservadores, ou seja, provavelmente o cenário de contaminação de mercúrio é ainda mais grave. A descoberta da contaminação dos peixes por mercúrio também não é exatamente uma novidade, mas a pesquisa em questão pode ser tratada como inovadora em decorrência da metodologia e da amplitude na análise dos dados. De forma contundente, porém, a pesquisa registra um "[...] alerta crítico para a saúde pública na Amazônia, além de uma ameaça à segurança alimentar na região"

A principal consequência imediata à saúde é a propriedade de bioacumulação do metilmercúrio, composto orgânico de mercúrio disseminado nos corpos hídricos, pois o metal tende a se acumular gradativamente na cadeia trófica tendo como agravantes dos sintomas a idade, a duração da exposição e a forma química em que ele se encontra. Na Amazônia, crianças que são expostas desde os primeiros estágios de formação apresentam maior disposição ao desenvolvimento de doenças cognitivas, motoras, respiratórias e no sistema digestivo. No caso de pessoas adultas, tornam-se mais suscetíveis a doenças psicológicas, neurodegenerativas e motoras.

Com base nesse preocupante alerta, o presente texto objetiva analisar as implicações da contaminação de mercúrio nos peixes dos rios da Amazônia sob a ótica do Direito Ambiental. Para delimitar o escopo, será priorizado apenas o aspecto reparatório, tendo como foco a responsabilidade civil ambiental. Com isso, sem dúvidas, este texto estará se afastando de várias outras discussões relevantes, como as medidas preventivas e precaucionais que devem ser adotadas, as discussões em andamento para a construção de uma política pública específica, a exemplo do Projeto de Lei 5.490/2020, que visa instituir o "Plano Nacional de Erradicação da Contaminação por Mercúrio", dentre outros.

A opção pela responsabilização ambiental ocorre porque é um tema que desperta implicações imediatas. Por exemplo, os pescadores prejudicados querem e precisam de respostas urgentes sob pena de comprometer o seu sustento pessoal e de suas famílias. Além disso, a responsabilização é um dos temas mais controvertidos e complexos do Direito Ambiental, tanto é que o presente texto apresentará mais perguntas do que propriamente respostas. A intenção é fomentar um debate que não pode ser mais adiado, e para isso serão abordadas as implicações da contaminação no contexto da responsabilidade civil ambiental.

A contaminação por mercúrio pode ser considerada um dano ambiental? E que tipo de dano?
Dano ambiental é a "[...] lesão aos recursos ambientais, com consequente degradação [...] do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida". O dano ambiental pode ser coletivo ou individual. O primeiro consiste em uma degradação ao meio ambiente globalmente considerado, em sua concepção difusa, como patrimônio coletivo. O segundo, por sua vez, é a degradação que atinge pessoas, individualmente consideradas, através de sua integridade moral e/ou de seu patrimônio material particular.

Certamente, a pergunta se a contaminação por mercúrio causa dano é óbvia, pois não há dúvidas quanto a isso. Às vezes classificação entre coletivo e individual pode causar confusão, mas no caso concreto as duas espécies são aplicáveis. Há tanto um dano ambiental coletivo, que pode ensejar uma atuação por parte do Ministério Público, quanto um dano ambiental individual, em particular aos pescadores diretamente afetados em seu sustento, de modo que também são legitimados a ingressarem com ações de reparação.

Para quem recai a obrigação de reparar?
Um ponto mais complexo é saber quem são os responsáveis pelos danos ambientais e pela obrigação de reparação. A pesquisa liderada pela Fiocruz não deixa dúvidas que a contaminação de mercúrio nos peixes está relacionada com o passivo ambiental da atividade de garimpo ilegal, embora não seja a única causa.

A Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei 6.938/1981, reconhece, no seu artigo 3, IV, que o poluidor é a pessoa, física ou jurídica, responsável direta ou indiretamente por uma degradação ambiental. Há também a responsabilidade solidária, de forma que todos os que geraram tais lesões poderão e deverão ser acionados.

Assim, considerando-se o garimpo ilegal como a principal causa, a obrigação de reparar recai para todos aqueles envolvidos nessa atividade. No entanto, determinar, de forma objetiva, quem são os responsáveis não é uma tarefa simples. Toda a atividade ilegal é cercada por uma cadeia que incentiva, econômica e politicamente, a sua prática reiterada. Apesar dessa dificuldade, o fato é que esses poluidores estão vinculados direta e imediatamente à prática do garimpo, sendo necessário rastrear a circulação do dinheiro envolvido para poder identificá-los e responsabilizá-los.

O Estado como poluidor indireto?
A responsabilização ou não do Estado é uma das questões problemáticas que precisam ser esclarecidas. No caso concreto da contaminação de mercúrio associada a atividade ilegal de garimpo, por certo que o Estado não é o causador direto da degradação. A sua omissão comprovada em fiscalizar e combater a prática ilegal, por outro lado, pode ensejar a sua responsabilização.

A respeito das condutas omissivas do Estado, é preciso diferenciar entre uma violação de um dever específico de uma violação a um dever genérico dirigido ao ente estatal, pois na primeira hipótese a responsabilização é objetiva, já na segunda a regra seria considerar a responsabilização como subjetiva [14]. De acordo com a segunda turma do STJ, há exceções para a responsabilização civil subjetiva por atos omissivos do Estado: ressalva expressa em texto legal de microssistema especial e a previsão de um dever estatal mais rígido de proteção.

Pela ótica objetivista, para tornar efetiva a responsabilização basta a prova da ocorrência do dano e do vínculo causal deste com o desenvolvimento de uma determinada atividade humana. Já pela ótica subjetivista, a comprovação do elemento culpa é indispensável, tornando assim mais complexa a responsabilização.

Marques et al. observam que a legislação brasileira é marcada por "[...] uma profunda contradição: impõe valores restritivos da presença de mercúrio nos nichos ambientais por um lado, contudo é extremamente permissiva com seu uso na mineração artesanal". O Decreto 97.507/1989, no artigo 2o, ao prever que "É vedado o uso de mercúrio na atividade de extração de ouro, exceto em atividade licenciada pelo órgão ambiental competente" é um exemplo de norma permissiva ao uso de mercúrio. Já o Decreto 9.470/2018, que promulgou a Convenção de Minamata sobre Mercúrio, estabelece, no artigo 7, item 2, ao abordar a mineração de ouro artesanal e em pequena escala, que o Estado brasileiro "[...] deverá adotar medidas para reduzir, e quando viável eliminar, o uso de mercúrio e compostos de mercúrio nessas atividades, bem como as emissões e liberações de mercúrio no meio ambiente resultantes dessas atividades".

Como a contaminação generalizada de mercúrio nas águas dos rios amazônicos foi intensificada pela atividade do garimpo ilegal, é preciso somar também na equação os deveres imputados ao Estado brasileiro de proteger os direitos indígenas, especialmente os pertinentes a defesa dos territórios. Assim, como a maior parte do garimpo é desenvolvida em terras indígenas, não restam dúvidas que a contaminação por mercúrio nas águas da região é mais um passivo ambiental dessa atividade que foi, em certa medida, impulsionada pela omissão estatal em fiscalizar e proteger os territórios indígenas.

O STF, na ADPF 709, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, já reconheceu a omissão da União no combate à atividade ilegal do garimpo, especialmente na Terra Indígena Yanomami, que tem parte do seu território no Estado de Roraima - o Estado mais afetado com a contaminação. Cabe destacar o importante papel do Judiciário, não apenas pelo julgamento da ADPF 709, mas também pela edição de Resoluções do CJN, a exemplo das 22/2022 e 453/2022, que atentaram para as singularidades processuais criminais ou cíveis que afetam o exercício do direito de acesso à justiça dos povos indígenas.

Portanto, o caso concreto reclama a aplicação da Súmula 652 do STJ: "A responsabilização da administração por dano ao meio ambiente decorrente de sua omissão no dever de fiscalização é de caráter solidário, mas de execução subsidiária". Ou seja, a responsabilização do Estado é objetiva, mas isso não significa uma impunidade para os poluidores diretos, de modo que deve se buscar responsabilizar primeiramente as pessoas envolvidas diretamente na atividade degradadora, até porque foram eles que obtiveram lucro com isso.

E o dano ambiental futuro?
Um dos temas importantes a ser considerado na discussão sobre a responsabilidade civil ambiental é o dano ambiental futuro. Alguns danos relacionados à contaminação, como à saúde humana, levam vários anos para se manifestarem, isso, porém, não pode ser um empecilho, ou uma justificativa, para simplesmente não agir.

Qualquer ausência de ação agora consiste em uma violação da prevenção e da equidade intergeracional, princípios básicos do Direito Ambiental. Nesse sentido, é importante lembrar que o dano ambiental futuro é um "[...] risco ilícito, passível de ser fonte geradora de obrigações de fazer ou não fazer em decorrência de deveres fundamentais de proteção intergeracional [...]".

Assim, a responsabilização civil não considera apenas o dano presente, pois a preocupação com o futuro, motivada principalmente pelo dever de proteção das futuras gerações, reclama ainda uma atenção com o desenrolar dos danos que podem surgir, principalmente se os níveis de contaminação de mercúrio continuarem elevados.

À título de conclusão
Aproveitando a pesquisa da Fiocruz e de outras instituições, este texto procurou levantar questões e apresentar algumas respostas à problemática da contaminação por mercúrio sob a ótica do Direito Ambiental brasileiro. Evidentemente, o tema está longe de ser esgotado. Na verdade, existe um longo caminho de pesquisa pela frente, e o direito não pode se furtar de dar a sua devida contribuição.

Nesse sentido, a responsabilidade civil ambiental tem o potencial de viabilizar a reparação dos danos ambientais coletivos e individuais, bem como os chamados danos futuros. Assim, procurou-se chamar a atenção para o fato de que essa responsabilização precisa entrar na discussão, pois como bem lembrado por Milaré, "[...] a atividade ruinosa do poluidor corresponde a uma indevida apropriação pessoal dos bens de todos [...]". Cabe agora ao Ministério Público, e aos órgãos ambientais, buscar os responsáveis por essa cadeia econômica que causa tantos danos ao meio ambiente e à saúde humana.

https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/opiniao-mercurio-otica-responsabi…

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