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Consultar antes de decretar

O Globo, Opinião, p. 17
Autor: SIQUEIRA, Josafá Carlos de
11 de Set de 2017

Consultar antes de decretar

Josafá Carlos de Siqueira

Numa sociedade verdadeiramente democrática, é natural que as consultas públicas sobre temas de interesse de todos sejam realizadas antes das formulações de decretos, pois este é o modo de proceder de governantes que estão sintonizados com a vox populi. A formulação de decretos que não passam pelo bom senso na sociedade - sobretudo de temáticas sensíveis à comunidade nacional e internacional - corre o perigo de repetir posturas precipitadas, provocando tumulto, insatisfação e indignação.
Certamente, foi o que aconteceu com o decreto relacionado à liberação de áreas para a mineração na Região Amazônica - ainda que isso possa ser pensado dentro do critério de sustentabilidade, preservação, aproveitamento e controle dos recursos naturais. O que não podemos esquecer é que a sociedade está adquirindo, progressivamente, a visão sistêmica da realidade, em que as questões ambientais e sociais são vistas integradamente.
Nesta perspectiva, as intervenções no meio ambiente não podem contemplar apenas aspectos econômicos, mas também outras inter-relações que fazem parte da dinâmica socioambiental; sobretudo em áreas de referências simbólicas para o planeta, como é o caso da Amazônia. Não podemos ignorar que esta região é uma das últimas grandes reservas da Terra em recursos minerais, hídricos, biodiversidade e dos povos tradicionais. Qualquer intervenção neste espaço geográfico tão singular, distante do controle de fiscalização e monitoramento mais cuidadoso do governo central, requer cuidados especiais para evitar futuro descontrole e catástrofe, como já aconteceu em várias regiões do nosso país. Saudosamente continuamos a reproduzir, como no passado, a visão mercantilista sobre a Amazônia, na qual os habitantes da região não são consultados sobre os projetos de sustentabilidade mais adequados para o desenvolvimento local e nacional.
As consultas prévias à sociedade são fundamentais não só como expressão da democracia participativa, mas, sobretudo, pela relevância que a temática ambiental tem alcançado nas últimas décadas no cenário nacional e internacional - no âmbito da geopolítica, das organizações da sociedade civil, e das múltiplas denominações religiosas da humanidade. Um exemplo deste último ponto pode ser comprovado pela encíclica ecológica do Papa Francisco, "Laudato Si", que tem sido compartilhada pelos diferentes credos, com uma preocupação com a casa comum onde habitamos. Assim, qualquer decreto de intervenção sobre a Amazônia, considerada como a grande depositária dos valores socioambientais, não pode ser divulgado sem um mínimo de consenso daquilo que constitui um bem comum da sociedade, pois estes recursos são patrimônios materiais e imateriais não só do Brasil, mas de toda a humanidade. Decretos de cima para baixo não combinam com uma sociedade democrática, onde o bom senso e a inteligência exigem uma sintonia com tudo aquilo que vem sendo discutido e compartilhado de baixo para cima.
Vamos esperar que a cultura dos decretos seja sempre precedida de consultas públicas, sobretudo em questões candentes e sensíveis a todos, evitando o distanciamento entre o governo e a sociedade.

Josafá Carlos de Siqueira é reitor da PUC-Rio

O Globo, 11/09/2017, Opinião, p. 17

https://oglobo.globo.com/opiniao/consultar-antes-de-decretar-21802182

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