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Conflito no Mato Grosso envolvendo índios Xavante

Correio Braziliense-Brasília-DF
25 de Jan de 2004

Lembro-me quando ainda era pequeno e morava na 712 sul. Logo cedo pulava na cama do meu pai quando escutava o rapaz passando em frente à nossa velha casa e gritando "olhaê o correioooo". Lá se vão vinte anos, mas ainda hoje posso dizer que, sem dúvida alguma, o Correio éo jornal em que mais confio. Eis porquê escrevo. Estive viajando nas últimas semanas e, ao retornar, me chega às mãos um exemplar desse Jornal, do dia 10 de janeiro, Página 14, o quadro "áreas em litígio no país". Nele lê-se,exatamente:

"Município de Alto Boa Vista (Mato Grosso) Na reserva de Suiá-Missu, xavantes e marãiwatsede se recusam a mudar para as novas àreas discriminadas pelo governo. O conflito gerou inúmeras tensões na região a tal ponto do vice-presidente, José Alencar, que exercia a função de presidente em exercício, no final do ano passado ir ao local para negociar pessoalmente. O impasse permanece."

Entristeceu-me o coração ler isso no Correio, mas, certo de que este Jornal cometeu alguns erros agindo de boa fé, segue um pequeno relato da situação.

Os Xavante foram retirados por ordem do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, extinto em 1967 quando a Funai foi fundada) em aviões da FAB em 1966 para outra área, próxima à cidade de Barra do Garças. Cerca de 80 índios morreram nesse processo, quando foram transferidos de seu território, chamado Marãiwatsede. Em 1982 esse grupo migrou para outra Terra Indígena, sendo hostilizados, sempre, pelos outros grupos Xavante, seja por sua organização social baseada em faccionalismo,ou mesmo porque os recursos em terras indígenas são, quase sempre, escassos (a despeito do que pessoas menos informadas possam afirmar). De qualquer modo, eles sempre quiseram retomar seu antigo território e seu movimento tomou força quando, na ECO 92, a multinacional italiana que controlava a terra (à época, a fazenda Suiá Missu), afirmou publicamente que devolveria a terra aos Xavante. Mais que depressa, políticos e fazendeiros locais fizeram o possíveleo impossível e ocuparam a terra fundando, inclusive, o município de Alto Boa Vista, próximo à S. Félix do Araguaia. Apesar dessas manobras, a terra foi identificada, demarcada, homologada e registrada em nome dos índios, conforme manda a lei. Mais que isso, os ocupantes de boa-fé foram cadastrados pela Funai a fim de receberem pelas benfeitorias.
Acontece que, após tanto tempo, os índios querem simplesmente voltar para seu território. Atualmente, a situação é a seguinte (ao menos, quando estive lá - de 12 a 24 de dezembro de 2003 - os índios acampados à beira da BR-158, ao estilo MST, separados por 50 m e uma pequena ponte, do acampamento onde ficam os posseiros e alguns pistoleiros (ao menos 4 identificados). Uma série de acontecimentos encontram-se hoje em investigação no Ministério Público, como o suposto envolvimento da prefeitura na derrubada de pontes para impedir a entrada de índios, e a incitação pública ao preconceito. De fato, a cabeça de quem quer que seja que apoie os índios (técnicos da Funai, D. Pedro Casaldaliga, e eu mesmo) estáa prêmio na região. Os Xavante (povo que estudo há 6 anos) identifica pelo menos 4 aldeias e cemitérios antigos, enquanto o advogado dos posseiros acusa a Funai de ter feito uma montagem no relatório e que a antropologa que o elaborou (de reconhecida competencia nacional) era uma "bisonha".
Quanto à informação de que o vice presidente esteve na região, igualmente não precede. Ele esteve em uma reunião em Cuiabá com autoridades locais e nenhum representante dos Xavante (dois foram barrados na porta, salvo engano). Nada foi resolvido, ainda que todas as autoridades competentes saibam do que pode vir a ocorrer na região. Penso (opinião estritamente pessoal, evidentemente) que o sangue indígena ainda tenha menos força do que o capital da soja, junto aos políticos do país.

Desde novembro os Xavante estão acampados às margens da BR sem haverem desferido um tiro sequer, enquanto que, do outro lado do rio, tiros e rojões são atirados todas as noites, enquanto os posseiros gritam "Vai acabar! Vamos invadir!". A Polícia MIlitar queestava no local, na ponte que separava os dois grupos foi retirada dia 23, por ordem do governador do Mato Grosso, enquanto a Policia Federal, que esteve no local, também foi deslocada. Assim, não procede a informação de que os Xavante se recusem a ir a outras terras, conforme noticiado nesse Jornal, ao contrário, detêm o direito Constitucional, à luz do art. 231 e 232 de lá permanecerem,após terem sido de lá retirados.

Por outro lado, parece que o Estado não tem cumprido seu dever, nem o de manter a populaçãoem segurançae manter policiamento ostensivo na área, quanto o de indenizar e deslocar os ocupantes de boa-fé na região. O mais irônico é que,nas comemorações de 500 anos do Brasil eu também estive entre os Xavante, vendo alguns dos seus levando bombas de gás lacrimogêneo. Neste exato momento, a vergonha se repete, de modo mais velado, tendo esses índios aguerridos (como era Mário Juruna, o Xavante mais famoso e primeiro índio deputado federal) serem obrigados a ver seus cemiterios e antigas aldeias cederem lugar a pasto e esterco sem nada poderem fazer.

A justiça do branco é cega, sim, mas por não enxergar as iniquidades que são cometidas por mãos poderosas.

Caso a equipe do Correio tenha a intenção de visitaro local, me ofereço para acompahá-los, em busca da melhor notícia, não enfocando a visão míope do waradzu ("branco", em Xavante), mas sim a verdade dos fatos, a partir da ótica de neutralidade que sempre foi característica do Correio.

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