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Coisa de Branco

Isto É, p. 57-58
04 de Out de 1995

Coisa de branco
Governo prepara decreto que deve interromper a demarcação das reservas indígenas

Eliane Trindade

A antropóloga Ruth Cardoso recebeu de presente um vistoso cocar - símbolo do apreço dos índios terenas - ao inaugurar, em Brasília, o 1" Encontro Nacional da Mulher Indígena, na segunda-feira 25. Já o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, marido da pesquisadora, está a um passo de cometer uma espécie de heresia antropológica. Nas próximas semanas, o presidente deverá receber do ministro da Justiça, Nelson Jobim, um rascunho de decreto ou de medida provisória, que pode transformar em terra de ninguém 340 das 545 reservas indígenas do País. O governo quer alterar o Decreto 22, que desde 1991 regula a demarcação das terras indígenas. Na prática, o novo decreto permitirá que fazendeiros, posseiros, garimpeiros, mineradoras, Estados e municípios contestem os limites da maioria das áreas já interditadas para a ocupação indígena. Ou seja, as reservas podem encolher. "A proposta não tira o direito dos índios, apenas corrige um vício no processo atual", argumenta Jobim. "Tem muita gente com mania de conspiração", desabafa. Desde 1993, Jobim defende que o Decreto 22 é inconstitucional, porque, ao garantir grandes áreas autônomas aos índios, estaria ferindo o princípio da federação. Nos últimos quatro anos, a Funai demarcou 28 áreas indígenas, somando 170 mil quilômetros quadrados, 40% das demarcações feitas desde 1910.
"Se o decreto for mudado, não haverá mais demarcação de áreas indígenas no País", afirma o sertanista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, que hoje ocupa a chefia do Departamento de índios Isolados da entidade. "A perspectiva de mudança nas regras já provocou a invasão de várias reservas", emenda Saulo Feitora, secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, ligado à Igreja Católica). Segundo Feitora, o clima cada vez mais tenso junto às reservas resultou no recente assassinato de Geraldo Rolim, advogado da Funai np processo de demarcação da reserva dos índios Xucuru de Ororubá, em Pesqueira (PE). E cerca de 50 posseiros, com o apoio de políticos locais, invadiram, em junho, a reserva Uru Eu Wau Wua, em Rondônia. No mesmo dia, o ministro Jobim participara de um debate na Assembléia Legislativa do Estado. O tema: a mudança nas regras de demarcação de temas indígenas.
O novo decreto inverte a lógica utilizada até agora para a criação de reservas indígenas. A Funai trabalhava com o conceito de presença histórica das tribos nas áreas definidas. Agora, depois de a Funai definir cada reserva, posseiros e fazendeiros terão 90 dias para contestar a demarcação, mesmo que os índios circulem há séculos por ali. "No caso de se acatar as razões de um posseiro que comprove ser dono de dez hectares, por exemplo, determinarei à Furai que seja retificado o mapa", diz o ministro Jobim. Além de acender a polêmica com sertanistas e entidades indígenas, o novo decreto atropela o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque o tribunal ainda está julgando uma causa iniciada em 1992 pela empresa Sattin S/A Agropecuária e Imóveis, contra a demarcação das terras dos Kaiowá-Guarani, do Mato Grosso. Hoje, segundo o famoso Decreto 22, os fazendeiros só podem questionar na Justiça o valor das indenizações a serem pagas.
O ministro Nelson Jobim é um velho defensor de alterações no processo de criação das reservas indígenas. Há dois anos, seu escritório de advocacia foi contratado pelo então governador do Pará, Jáder Barbalho, colega de PMDB, para mover uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a demarcação de cinco milhões de hectares das áreas de Paru Este e Trincheira Bacajá. "Os técnicos da Furai reservaram 18 mil hectares por índio", diz Jáder Barbalho, hoje senador pelo Pará. "Trata-se de um verdadeiro país administrado pela Furai", conclui. Ao propor a mudança das regras do jogo, o ministro Jobim deve contentar fazendeiros, garimpeiros e muitos governadores. Mas e a legião de indigenistas e ONGs? Uma legião que, aliás, traz dinheiro ao País. Só o governo alemão, pressionado por seus ambientalistas, prometeu US$ 30 milhões, que servirão para demarcar a metade dos 90 milhões de hectares (11% do território nacional) que a Furai reservou aos cerca de 325 mil índios do País. O dinheiro pode bater asas, caso sejam adotadas novas regras de demarcação.
Com o objetivo de resistir às pressões das ONGs, o presidente Fernando Henrique armou uma arapuca política digna dos melhores caçadores indígenas. No último dia 15, às vésperas de puxar o tapete das tribos, embarcando na mudança no Decreto 22, FHC entregou a presidência da Furai ao ex-deputado Márcio Santilli, 39 anos, diretor do Instituto Socioambiental (ISA), uma ONG das mais atuantes. A manobra deu resultado. Santilli, no governo, já defende as alterações propostas por Nelson Jobim. "O saneamento jurídico do processo não visa reduzir as terras indígenas", diz, fumando o cachimbo da paz.

Perdidos na selva
O novo decreto sobre a demarcação de terras ata uma séria ameaça para as tribos isoladas, que vivem em regiões extremas da selva e permanecem arredias a qualquer tipo de contato com os brancos. A Furai monitora informações sobre 59 grupos ainda desconhecidos. Eles se espalham por uma área equivalente a 50% do território nacional. Apenas na Amazônia, os sertanistas estão no encalço de 22 tribos que se embrenharam na floresta para fugir dos brancas. O trabalho da Fanai desenvolvo-se em nove frentes, que permitiram, até agora, a aproximação com cinco novos grupos indígenas. No último dia 10, o sertanista Marcelo Santos, chefe de uma expedição em Rondônia, localizou no município de Corumbiara quatro índios que falam uma língua desconhecida, do tronco tupi. Estranhamente, na semana passada, um grupo de fazendeiros levou ao local - em um avião particular - o ex-funcionário da Funai Osny Ferreira, com um grupo de índios cintas-largas. Dois cintas-largas estavam gripados, o que levou técnicos da Fanai a suspeitarem de uma tentativa de contaminar os índios desconhecidos, que provavelmente não têm resistência à gripe. A Fanai antecipou a vacinação e o envio de medicamentos; ao grupo.
A descoberta da tribo perdida colocou mais lenha na fogueira da disputa pela terra na região. Os fazendeiros contestam a presença histórica dos índios, alegando que a própria Funai os teria levado para lá, corri o objetivo de criar uma nova reserva Os conflitos entre fazendeiros e índios são tão comuns quanto os choques ente proprietários e sem-terra. "Esses índios são sobreviventes, que, no choque com seringueiros, fazendeiros e garimpeiros, foram se retraindo para a selva", explica Sydney Possuelo, da Fanai.
A área que concentra o maior número de tribos isoladas é o Vale do Javari, na fronteira entre o Amazonas e o Peru. Ali, os sertanistas dão como certa a presença de pelo menos cinco novos grupos e espera-se para breve o contato com o mais próximo deles. Os fazendeiros chamam esses índios de "caceteiros" porque, nos choques com os brancos, eles usam pedaços de pau e não arcos e flechas. Algumas tribos desconhecidas podem ser dizimadas antes mesmo de trocar o primeiro aperto de . . mão com o pessoal da Fanai. A Polícia . Federal já encontrou, na região, três corpos de índios assassinados. Um inquérito foi aberto para investigar as mortes. `"Todas as vezes que a Fanai tenta fechar a área ao homem branco, os políticos não deixam", diz Sydney Possoelo. A profissão de sertanista também envolve riscos consideráveis. Nove funcionários da Fanai foram mortos no, Vale do Javari nos últimos anos. E o quadro da Fanai só conta hoje com cinco sertanistas remanescentes.

Isto É, 04/10/1995, p. 57-58

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