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Chegou a vez do Sede Zero

OESP, Vida, p. A19
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
07 de Abr de 2005

Chegou a vez do Sede Zero

Marcos Sá Corrêa

Como foi o Fome Zero no começo do governo Lula, a transposição do Rio São Francisco tem tudo para ser, neste meio de mandato, um projeto grande demais para o presente, porque foi concebido para ligar o passado do presidente ao futuro da reeleição. É quase um Sede Zero, que estreou em Santa Catarina, onde Lula foi ver a seca no Sul e defendeu a urgência para obras no Nordeste. E o que os agricultores catarinenses tinham a ver com os nordestinos? Ora, o presidente, que é de todos os brasileiros e não perdeu a chance de contar mais uma vez sua saga pessoal de retirante.
Dito assim, parece simples. Complicado, só fica para quem se dispõe a entender através do dossiê que o Ministério da Integração Nacional armou na internet. O site mistura informações demais - no relatório de impacto ambiental, que requer 37 minutos para baixar no computador - com informações de menos, na seção "O que diz a mídia", onde quase só há loas ao projeto de jornais nordestinos.
Numa empreitada de R$ 4,5 bilhões, a página do ministério fica avarenta quando se trata de recuperar as matas ciliares na bacia do São Francisco. Para isso, disporá de dois viveiros, cada um produzindo 200 mil mudas por ano. Isso quando o governo afegão pretende reflorestar Cabul com 4,5 milhões de árvores e a queniana Wangari Maathai ganhou o Nobel da Paz em 2004 plantando 30 milhões de árvores no semi-árido africano.
E, por falar em África, o que está fazendo na página a referência a Lesoto, como exemplo de que "a integração de bacias hidrográficas já foi testada em outros países"? Logo Lesoto? É claro que o ministério cita outros modelos, nem todos incontroversos. Entre eles, os Estados Unidos que, sugando o Rio Colorado para plantar na Califórnia campos de golfe e paraísos artificiais, criaram um deserto de sal onde, não faz muito tempo, o México tinha lagoas e florestas. E o Egito, que andou em pé de guerra com Etiópia e Sudão em nome de seu "novo delta do Nilo".
Mas Lesoto é um caso à parte. O pequeno reino africano, cuja população inteira caberia na Zona Sul do Rio de Janeiro, meteu-se em confusão desde que passou a exportar água para a África do Sul, transpondo no caminho cerca de 30 mil pequenos fazendeiros de vales férteis para montanhas frias. Apesar do tamanho, o projeto bilionário virou mesmo notícia quando, três anos atrás, Masupha Sole, diretor-geral da Lesotho Highlands Water Authority, foi processado por corrupção, por embolsar pelo menos R$ 2,5 milhões em propinas de 11 empreiteiras canadenses, italianas, francesas e inglesas. Desde 2003, Sole está na cadeia, cumprindo 18 anos de pena.
Talvez seja um consolo para Sole saber que no Brasil ainda se leva sua administração a sério, num site do governo. Fora isso, Lesoto deveria ficar fora da conversa, onde entrou indevidamente porque o Ministério da Integração Nacional foi buscar longe o que tinha em casa. O ministro Ciro Gomes, encarregado da transposição, tem experiência no ramo. Em 1993, quando governava o Ceará, abriu em 4 meses o Canal dos Trabalhadores, num momento em que a falta de chuva no sertão ameaçava secar as torneiras em Fortaleza. Os 115 quilômetros de extensão do canal, 12 anos depois, estão cheios de problemas: vazamentos, ociosidade, rachaduras, excesso de evaporação, trechos assoreados e água poluída, por exemplo. O presidente Lula precisa conhecê-lo, antes de por as mãos no São Francisco. Comparado a Lesoto, o Ceará é um pulo.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br )

OESP, 07/04/2005, Vida, p. A19

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