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Cancelamento de CAR em Terras Indígenas: Desafios e Propostas para uma Melhor Regulamentação

Climate Policy Initiative - https://www.climatepolicyinitiative.org/pt-br/publication
25 de Mai de 2022

Cancelamento de CAR em Terras Indígenas: Desafios e Propostas para uma Melhor Regulamentação

Cristina Leme Lopes e Joana Chiavari
25/05/2022

DESTAQUES

- A legislação federal em vigor não traz soluções satisfatórias para que os estados regulamentem e/ou promovam ações concretas para resolver a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) em Terras Indígenas (TIs).

- A maioria dos estados não regulamenta a sobreposição de CAR em TIs, alguns copiam ou remetem à legislação federal e apenas São Paulo, Mato Grosso e Maranhão possuem legislação específica sobre a matéria. Ainda assim, a regulamentação nesses estados possui lacunas e não vem sendo aplicada.

- Alguns estados, independentemente de possuírem regulamentação específica, já estão promovendo o cancelamento de cadastros sobrepostos a TIs, como é o caso do Acre, Pará, Rondônia e Mato Grosso. Os procedimentos adotados variam entre esses estados, que possuem em comum o fato de terem sido notificados pelo Ministério Público Federal (MPF) para providenciar o cancelamento.

- Apenas o estado do Pará possui estratégia específica para identificar as sobreposições em TIs e proceder com o cancelamento, ou a suspensão dos cadastros enquanto não forem retificados.

- O filtro automático do SICAR só considera pendente a sobreposição em TIs homologadas/regularizadas e reservadas, tratando como regulares os cadastros sobrepostos às TIs que estão em outras fases do processo de demarcação. Isso impossibilita que estas áreas sejam consideradas na análise dos cadastros, implicando em grave ofensa aos direitos territoriais desses povos.

- O uso dos filtros do SICAR pelos estados ainda é opcional, ou seja, os estados podem "desligar" os filtros e escolher não detectar automaticamente quaisquer sobreposições em TIs.

- Dois projetos de lei foram apresentados, recentemente, no Congresso Nacional (PL 4450/2021 e PL 486/2022) a fim de regulamentar a vedação e o cancelamento de inscrição no CAR de áreas particulares em áreas protegidas, territórios tradicionais e outras terras públicas. Apesar de representarem um ponto de partida para solucionar a sobreposição de CAR em TIs, a simples aprovação dos projetos, tal como propostos, deixa lacunas que precisam ser resolvidas.

RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICA PÚBLICA

- O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) deve revisar e adequar a Portaria no 121/2020 às regras constitucionais e legais sobre as TIs, de forma a contemplar claramente as hipóteses de cancelamento e/ou suspensão e seu respectivo procedimento administrativo, conferindo tratamento uniforme ao tema em todo território nacional.

- Os estados devem regulamentar, de imediato, o cancelamento e/ou suspensão de inscrições sobrepostas a TIs, independentemente de regulamentação específica pelo poder público federal, em virtude de terem competência para estabelecer os procedimentos de análise do CAR.

- O governo federal e os estados não devem limitar a regulamentação do procedimento de cancelamento de CAR em TI às TIs homologadas, regularizadas e reservadas.

- A Fundação Nacional do Índio (Funai) deve revogar a Instrução Normativa Funai no 9/2020, em razão das ilegalidades nela constantes, conforme já reconhecido em diversas decisões judiciais proferidas.

- A Funai deve manter banco de dados atualizado com os limites georreferenciados de todas as Terras Indígenas desde a aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terra Indígena (RCID) para que os órgãos competentes estaduais possam implementar uma política de cancelamento de CAR justa e eficaz.

- O Serviço Florestal Brasileiro (SFB) deve ajustar o filtro automático do SICAR para ampliar a restrição de inscrições de áreas em sobreposição a qualquer Terra Indígena e não apenas às TIs homologadas. Além disso, deve atualizar periodicamente a base do SICAR a fim de identificar eventuais sobreposições de CAR em TIs e encaminhar aos estados, Ministério Público Federal e Funai o resultado do levantamento para que sejam tomadas as medidas cabíveis, conferindo maior efetividade a este instrumento.

- O governo federal e os estados devem contar com a participação ativa dos povos indígenas ao regulamentar o procedimento de cancelamento de CAR em TI, devendo qualquer regulamentação ser precedida de Consulta Livre Prévia e Informada, nos termos da Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
INTRODUÇÃO

A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei no 12.651/2012), ou simplesmente Código Florestal, é um instrumento fundamental para alinhar o crescimento da agropecuária com a proteção dos recursos naturais, pois seus dispositivos de proteção que limitam a expansão em termos de área de produção, as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal, criam incentivos para que os produtores rurais aproveitem as áreas já abertas, sem a necessidade de novos desmatamentos.

Dentre os principais instrumentos do Código Florestal, foi instituído o Cadastro Ambiental Rural, um registro público eletrônico, que auxilia na gestão ambiental e econômica de propriedades e posses rurais, bem como no monitoramento e combate ao desmatamento. Para alcançar estes objetivos, o CAR foi integrado a diversas políticas públicas, como licenciamento ambiental, acesso ao crédito rural e regularização fundiária.

Embora a lei disponha que a inscrição no CAR não será considerada para fins de reconhecimento de direito de propriedade ou posse, na prática, ele tem sido usado para a grilagem de terras públicas.[1] Por ser um cadastro autodeclaratório e permanente, no qual as informações prestadas são de responsabilidade do declarante, áreas em Terras Indígenas e outras áreas não cadastráveis, como territórios de comunidades tradicionais, Unidades de Conservação de domínio público e florestas públicas não designadas,[2] tornam-se facilmente objeto de inscrição irregular por pessoas que pretendem fazer um uso ilegal da área.

Atualmente, há mais de 29 milhões de hectares registrados no CAR em sobreposição a áreas protegidas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação). Dados recentes indicam que a inscrição de novas áreas no CAR, em sobreposição a estas áreas, aumentou 56% nos últimos dois anos.[3] De acordo com o Serviço Florestal Brasileiro, há 6.775 cadastros sobrepostos a Terras Indígenas homologadas,[4] sendo estimados entre 8.000 e 10.000 cadastros sobrepostos com TIs que ainda aguardam homologação.[5]

As Terras Indígenas são terras da União com usufruto exclusivo das populações indígenas. Sendo assim, a inscrição de imóvel rural no CAR em sobreposição a uma Terra Indígena é ilegal e gera impactos nocivos, incluindo danos ambientais e conflitos fundiários entre as populações indígenas e os invasores. Promover uma solução rápida e eficiente para cancelar os cadastros irregulares e evitar que novos cadastros sejam feitos é uma questão de ordem fundiária, social e ambiental e deve ser tratada de modo prioritário e urgente.

Neste documento, pesquisadoras do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) mapearam de forma detalhada a regulamentação federal e dos estados, para entender qual é o tratamento legal da sobreposição de CAR a Terras Indígenas, e identificaram que a legislação em vigor não contempla de forma adequada esta matéria.

Tendo sido constatada a inexistência de regulamentação federal estabelecendo procedimento de cancelamento de CAR em TI, as pesquisadoras direcionaram a análise para os procedimentos adotados pelos estados que estão promovendo na prática o cancelamento, para entender quão efetivos eles tem sido. O resultado dessa análise é que a quase totalidade dos estados não possui uma estratégia específica para identificar as sobreposições em Terras Indígenas e proceder com o cancelamento, notificação ou a suspensão dos cadastros em seu conjunto. As regulamentações estaduais dispõem que esta verificação ocorrerá na rotina de análise individual dos cadastros, fazendo com que estas situações irregulares permaneçam por tempo indeterminado na base do SICAR e fazendo com que aqueles que fizeram a inscrição de forma irregular continuem se aproveitando do cadastro para dar uma aparência de legalidade à invasão e ao uso ilegal dessas áreas.

A análise revelou também que nem todos os estados mantém os filtros do SICAR que detectam automaticamente sobreposições em TI ativos, uma medida simples que impediria que novas inscrições ocorressem nessas áreas. Se os sistemas do CAR estaduais continuarem permitindo novos cadastramentos em Terras Indígenas, o trabalho de identificação das sobreposições e cancelamento dos cadastros terá sido ineficaz.

Finalmente, a partir do aprendizado com as experiências estaduais, as pesquisadoras propõem diretrizes a serem adotadas, em âmbito federal e estadual, para a regulamentação do cancelamento de cadastros sobrepostos a Terras Indígenas, ilustradas através de um fluxograma detalhado. Tais diretrizes pretendem servir como ponto de partida para um debate mais amplo entre os diferentes atores que são afetados direta ou indiretamente pela política do CAR, tendo em vista que povos indígenas e comunidades tradicionais devem ser adequadamente consultados antes da adoção de quaisquer medidas legislativas ou administrativas que os afetem diretamente.
1. Análise da regulamentação federal do CAR: qual tratamento legal da sobreposição de CAR a Terras Indígenas

O Cadastro Ambiental Rural foi implementado pela Lei no 12.651/2012 que instituiu o novo Código Florestal. O CAR é um registro público eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo uma base de dados para o controle, o monitoramento e o planejamento ambientais e econômicos, bem como para o combate ao desmatamento.

A inscrição dos imóveis no CAR é obrigatória, mas cabe ao proprietário ou possuidor apresentar o mapa georreferenciado da área, indicando o perímetro e identificando as áreas de preservação permanente, Reserva Legal, áreas com uso produtivo e áreas com remanescente de vegetação nativa. Por ser um cadastro autodeclaratório, o CAR precisa ser analisado e validado pelo órgão estadual competente. Uma vez identificadas irregularidades no cadastro, cabe ao órgão estadual competente solicitar a retificação das informações, quando for possível, ou cancelar o cadastro.

Inicialmente, o Código Florestal impunha um prazo para a inscrição dos imóveis rurais no CAR, mas este prazo foi prorrogado sucessivamente até a Lei no 13.887/2019 estabelecer que o CAR é um cadastro permanente, sendo possível a inclusão de dados e informações de imóveis rurais no sistema a qualquer tempo.

Estas características do CAR, cadastro autodeclaratório e permanente, fazem com que as áreas em Terras Indígenas e outras áreas não cadastráveis sejam facilmente objeto de inscrição irregular por pessoas que pretendem fazer um uso ilegal da área, incluindo a grilagem de terras públicas. Promover uma solução rápida e eficiente para cancelar os cadastros irregulares e evitar que novos cadastros sejam feitos é uma responsabilidade que deve ser compartilhada entre o SFB, gestor do SICAR, e os estados, responsáveis pelo cancelamento dos registros no sistema. Para que as ações estaduais sejam feitas com segurança jurídica, é importante que a regulamentação federal do CAR estabeleça um enquadramento jurídico mínimo para o cancelamento dos registros pelos estados.

O CAR foi regulamentado em âmbito federal pelo Decreto no 7.830/2012, pela Instrução Normativa (IN) no 2/2014, do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e, mais recentemente, pela Portaria MAPA no 121/2021.

O Decreto no 7.830/2012 estabelece apenas normas muito gerais sobre o CAR, sem qualquer menção a situações de sobreposição a TIs. Já a IN MMA no 2/2014 regulamenta detalhadamente todos os aspectos relativos ao CAR, mas as diretrizes para análise das informações e classificação do cadastro quanto à sua regularidade são, atualmente, regulamentadas pela Portaria MAPA no 121/2021.
Instrução Normativa MMA no 2/2014

A IN MMA no 2/2014 dispõe que a análise dos dados declarados no CAR é de responsabilidade do órgão estadual, distrital ou municipal competente. Esta análise pode ser automatizada, por meio de filtros e mecanismos que possam constatar irregularidades nas informações.

Após esta análise (automática ou manual), o CAR poderia ser enquadrado como: (i) ativo; (ii) pendente; ou (iii) cancelado. Em caso de sobreposição de imóvel rural a Terras Indígenas, Unidades de Conservação, terras da União e outras áreas consideradas impeditivas pelos órgãos competentes, o cadastro deveria ser classificado como pendente.

O artigo 46 da IN MMA no 2/2014 também previa que os cadastros dos imóveis sobrepostos no CAR ficariam pendentes até que os responsáveis procedessem à retificação, à complementação ou à comprovação das informações declaradas, conforme demandado pelo órgão competente. A norma, entretanto, não estabelecia nenhuma consequência para os cadastros classificados como pendentes, na prática eles poderiam ser usados em outras políticas públicas, como licenciamento ou obtenção de crédito.

Com a adoção da Portaria MAPA no 121/2021, os artigos da IN MMA no 2/2014 que dispunham acerca de sobreposição e classificação das informações do CAR em três situações deixaram de ser aplicáveis e passaram a ser regulamentados pela nova portaria.[6]
Portaria MAPA no 121/2021

Em maio de 2021, o MAPA editou a Portaria no 121 para regulamentar o procedimento de análise automática das informações do CAR, conhecida por "análise dinamizada". Além de estabelecer os parâmetros técnicos para as bases temáticas de referência, que serão usadas na análise dinamizada, a portaria acrescentou mais uma situação do cadastro - suspenso - e agora o CAR pode ser classificado em: (i) ativo; (ii) pendente; (iii) suspenso; ou (iv) cancelado.

A Portaria MAPA no 121/2021 manteve, praticamente, as mesmas regras para a classificação do CAR previstas na IN MMA no 2/2014, acrescentando a situação "suspenso" que pode ocorrer por decisão judicial ou administrativa.

A sobreposição de imóvel rural à Terras Indígenas, Unidades de Conservação, Terras da União e áreas consideradas impeditivas pelos órgãos competentes continua sendo considerada uma hipótese de pendência e não de cancelamento. De acordo com a portaria, a sobreposição nesses casos deve ser avaliada a partir das informações fornecidas pelos órgãos ou instituições competentes, como por exemplo, a Funai para as Terras Indígenas e o ICMBio para as Unidades de Conservação.

A Portaria MAPA no 121/2021 suspendeu o artigo 46 da IN MMA no 2/2014 que regulamentava as hipóteses de sobreposição, mas não estabeleceu nenhuma regra em seu lugar. Assim, uma vez constatada a sobreposição de um imóvel rural a uma Terra Indígena ou outra área considerada impeditiva, a Portaria MAPA no 121/2021 não diz como o órgão competente deve proceder, com por exemplo, solicitar a retificação das informações em um determinado prazo.

Ressalta-se que a Portaria MAPA no 121/2021 também não estabelece as consequências práticas de um CAR em situação pendente. Ou seja, a situação "pendente" não impossibilita, em princípio, o proprietário ou possuidor de praticar atividades econômicas, obter crédito ou licenças e autorizações administrativas. O Manual de Crédito Rural do Banco Central do Brasil (BC) condiciona o empréstimo à apresentação da inscrição do imóvel no CAR, desde que o mesmo não tenha sido cancelado. Essa é a mesma condição usada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para as suas linhas de crédito: caso o CAR conste como "suspenso" ou "cancelado", o produtor rural se torna inelegível ao crédito, mas a situação "pendente" não é um empecilho ao empréstimo.[7] O Manual de Crédito Rural também impede a concessão de crédito a empreendimento cuja área esteja total ou parcialmente inserida em terra indígena, mas considera apenas as TIs já homologadas. Nesse sentido, é preciso que o analista de crédito faça uma dupla verificação, a situação do CAR e a sobreposição em TI homologadas.

Já que a Portaria MAPA no 121/2021 não prevê que a sobreposição de CAR a TI é uma hipótese de cancelamento, a solução seria o cancelamento do cadastro por decisão administrativa. Mas nesse caso, a portaria dispõe que o cancelamento deve ser feito por meio de processo administrativo assegurado o devido processo legal e a ampla defesa. Ora, nos casos de sobreposição de imóvel rural a uma Terra Indígena não há qualquer defesa que possa ser apresentada, posto que as Terras Indígenas são bens da União com usufruto exclusivo dos indígenas, de maneira que nenhum particular pode inscrever um imóvel rural no CAR em sobreposição a essas terras.

Assim, a regulamentação federal, em vigor, em relação à sobreposição de imóvel rural a Terra Indígena, não traz soluções satisfatórias nem segurança jurídica para que os estados regulamentem e/ou promovam ações concretas para resolver esta questão.

Como gestor do SICAR, o SFB implementou, em 2017, um filtro para detectar qualquer sobreposição de cadastro a Terras Indígenas. O problema é que, de acordo com regulamentação federal do CAR e as diretrizes da Funai, o sistema só considera as TIs já homologadas, não assegurando proteção às TIs em processo de demarcação. Além disso, esse filtro gera como resultado o enquadramento destes CARs como "pendentes", categoria que engloba assuntos burocráticos de menor relevância como, por exemplo, divergências nos dados cadastrais dos declarantes. Entretanto, os órgãos estaduais responsáveis pela implementação e gestão do CAR podem "desligar" os filtros federais e as sobreposições em TIs deixam de ser detectadas automaticamente.

Visando impedir que novas inscrições fossem feitas, em abril de 2021, o SICAR passou a impedir o registro de novas áreas no CAR com sobreposição maior que 5% a uma Terra Indígena homologada. Porém, os cadastros que já tinham sido inscritos em sobreposição a TIs, continuam no sistema.

À medida que a etapa de análise e validação dos cadastros avança nos estados, o estabelecimento de um procedimento administrativo para cancelamento de inscrições irregulares torna-se imprescindível. Considerando que o SFB é o gestor do SICAR e que a União é competente por zelar pelas terras públicas, dentre as quais as Terras Indígenas, o cancelamento de CAR em sobreposição a Terras Indígenas deveria ser regulamentado no âmbito federal para garantir a uniformidade da matéria no território nacional, ainda que os estados também possuam competência para regulamentar e implementar procedimentos próprios de análise do CAR.
2. Panorama da regulamentação do CAR pelos estados: reprodução das regras federais ou inovação no tratamento da sobreposição de CAR a Terras Indígenas

Os estados são responsáveis pela gestão direta do CAR e possuem competência para estabelecer procedimentos próprios para o cancelamento de CAR sobreposto a TI ou outras áreas consideradas impeditivas, com base na Constituição Federal de 1988 e na regulamentação federal do CAR (Código Florestal e regulamentos). Apesar disso, na prática, a maioria dos estados não está sendo capaz de implementar procedimentos efetivos para o cancelamento de cadastros em sobreposição a TIs.

Os estados regulamentam de forma muito diversificada a questão da sobreposição de CAR a Terras Indígenas (Figura 1). De forma geral, a maioria dos estados se baseia na regulamentação federal sobre o tema, sendo que apenas São Paulo, Mato Grosso e Maranhão regulamentam a sobreposição dos cadastros de forma mais detalhada.

Com relação às hipóteses de cancelamento de CAR, há também uma grande variação entre os estados, mas as situações previstas na legislação federal também servem como parâmetro para a maioria deles.

Figura 1. Panorama da Regulamentação do CAR pelos Estados, 2022

Fonte: CPI/PUC-Rio, 2022

Sete estados e o Distrito Federal (DF) copiam ou remetem à legislação federal[8] com relação ao tratamento das sobreposições de cadastros a TIs e às hipóteses de cancelamento: Acre, Amazonas, Distrito Federal, Pará, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Dez estados não regulamentam a sobreposição de CAR a TI, mas estabelecem regras gerais sobre cancelamento de CAR: Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima.

Cinco estados não regulamentam as hipóteses de sobreposição nem estabelecem regras para o cancelamento do CAR: Alagoas; Amapá; Rio Grande do Norte; Sergipe e Tocantins.

Ceará regulamenta as sobreposições de CAR a TIs, UCs e outras áreas públicas de forma mais detalhada que a legislação federal, entretanto, assim como a legislação federal, os cadastros também são enquadrados no status de "pendente" até que os interessados promovam a sua retificação, após notificação. Não há previsão de cancelamento pelo órgão competente nesses casos. Piauí dispõe que a sobreposição de CAR a territórios do Poder Público acarreta o bloqueio do processo de validação até que ocorra a composição amigável ou judicial. O interessado será notificado para apresentar a composição em prazo estabelecido sob pena de o CAR ser considerado irregular.

São Paulo e Maranhão são os únicos estados que regulamentam de forma expressa o procedimento de cancelamento de cadastros em sobreposição a TIs, territórios quilombolas ou de outras populações tradicionais, de UC de domínio público e de outras terras públicas em geral. Mato Grosso também regulamenta as sobreposições de cadastros a TIs, mas a legislação não usa o termo cancelamento de CAR e sim indeferimento da inscrição no CAR.
Regulamentação da sobreposição de CAR em TI no estado de São Paulo

Em São Paulo, os procedimentos para a análise de Cadastros Ambientais Rurais são regulamentados pela Portaria CBRN no 13/2018, parcialmente alterada pela Portaria CBRN no 1, de 9 de janeiro de 2019. De acordo com esta portaria, a análise dos cadastros deve ser feita em duas etapas: primeiro o órgão competente deve avaliar todos os aspectos formais dos cadastros, o que eles chamam de análise preliminar, para depois fazer a análise da regularidade ambiental do imóvel.

No momento da análise preliminar, os técnicos devem identificar se o cadastro está sobreposto a TIs, territórios quilombolas, UCs de domínio público com a situação fundiária regularizada e a terras públicas em geral. Caso seja constatada uma dessas situações, o órgão responsável deve notificar o proprietário ou possuidor do imóvel sobreposto e consultar os órgãos e entidades envolvidas e, eventualmente, associações que representem as comunidades tradicionais. Constatada a irregularidade do CAR, ele será cancelado ou, se for o caso de retificação parcial, suspenso se as correções não forem efetivadas.

Esta portaria não estabelece prazos para a resposta à notificação do proprietário ou possuidor, nem dispõe de forma clara como se dará a consulta aos órgãos e entidades ou associações responsáveis pela gestão das terras públicas ou tradicionais. Além disso, nos casos de sobreposição parcial não há prazo para o responsável promover a retificação, fazendo com que o cadastro continue constando indefinidamente na base do SICAR. Por fim, a regulamentação paulista também não esclarece se o procedimento de cancelamento alcança a sobreposição em terras públicas, independentemente da situação da fundiária em que se encontram ou apenas as que estão regularizadas. Assim, não está claro se nas hipóteses de sobreposição a terras indígenas estão incluídas TIs em qualquer das etapas de regularização ou apenas as TIs homologadas/regularizadas. A mesma dúvida se aplica aos territórios quilombolas e demais territórios tradicionais. A portaria só é clara no caso das UCs de domínio público, já que considera apenas aquelas com a situação fundiária regularizada.
Regulamentação da sobreposição de CAR em TI no estado de Mato Grosso

O Decreto estadual no 1.031/2017 estabelece que, quando não for justificada, a sobreposição total de CAR em TI demarcada deverá ser indeferida pelo órgão competente. A regulamentação dispõe ainda que a sobreposição parcial a terras indígenas interditadas ou declaradas impede a continuidade do processo de análise das informações declaradas no CAR, exceto por decisão judicial ou comprovação da averbação do georreferenciamento à margem da matrícula imobiliária após o ato de declaração da TI. Constatada a sobreposição, o proprietário ou possuidor será notificado para proceder à retificação. A regulamentação ainda estabelece que em caso de sobreposição parcial a TI interditada ou declarada o órgão competente considera apenas a área do imóvel livre da sobreposição para fins de cálculo da Reserva Legal.

Observa-se que a legislação de Mato Grosso é bastante confusa e contraditória. Ela não esclarece quais situações poderiam justificar a inscrição de área totalmente sobreposta a TI demarcada. Já que não há qualquer justificativa para um particular cadastrar uma área sobreposta a TI, estaria o estado prevendo a possibilidade de os próprios indígenas inscreverem parte da TI no SICAR como um cadastro independente?

De um lado a legislação estabelece que a sobreposição total ou parcial em TI impede a continuidade do processo de análise das informações declaradas no CAR, mas de outro lado dispõe que no processo de análise de cadastro em sobreposição a TI o técnico deverá considerar apenas a área do imóvel livre da sobreposição no cálculo da Reserva Legal. Ora, se em caso de sobreposição o cadastro não pode passar pela análise enquanto não tiver promovido a retificação, não faz sentido estabelecer esta regra sobre o cálculo da Reserva Legal. Por fim, assim como outros estados, Mato Grosso também não estabelece prazo para o proprietário/possuidor promover a retificação dos cadastros parcialmente sobrepostos a TIs.

Além do decreto estadual, dois pareceres jurídicos da Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso (PGE/MT) orientam a análise dos cadastros sobrepostos a TIs. No Parecer 21/SUBPGMA/2019 a PGE sustenta que não há impedimento jurídico para a inscrição de imóveis rurais, sobrepostos a Terras Indígenas, no Sistema Mato-Grossense de Cadastro Ambiental Rural (SIMCAR). De acordo com a PGE, a inscrição de propriedade e posses no SIMCAR tem como objetivo o controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento, sem que isso se constitua em autorização para o exercício ou continuidade de atividade econômica no imóvel.

Já o Parecer 132/SUBGMA/2020 trata de dois questionamentos: (i) se a Sema poderia manter a análise de cadastros sobrepostos a TIs e (ii) se a Sema deveria promover o cancelamento de cadastros sobrepostos à TI Kayabi, uma terra indígena regularizada, e manter apenas os cadastros que possuíssem decisão judicial favorável ao interessado. Em resposta ao primeiro questionamento, a PGE se manifestou favoravelmente à continuidade das análises de CAR em TIs para os fins de monitoramento e recuperação de danos ambientais. Já com relação ao segundo questionamento, a PGE se manifestou contrariamente ao cancelamento de qualquer cadastro na TI Kayabi, argumentando que esta medida não teria amparo legal nem nas orientações jurídicas da própria PGE.

Se a regulamentação de Mato Grosso com relação a sobreposição de CAR em TIs é falha, os pareceres da PGE/MT também não esclarecem as omissões legislativas. Ainda que os pareceres esclareçam que a inscrição no SIMCAR não implique em autorização para atividade econômica, a simples permanência dos cadastros na base concede uma aparência de legalidade da ocupação e o CAR pode ser usado para pedir empréstimos e fazer negócios. Além disso, a recuperação de danos ambientais em TIs independe de inscrição no SIMCAR, portanto manter os cadastros na base apenas para este fim não faz sentido. Por fim, dizer que o cancelamento de CAR sobreposto a TI homologada não tem amparo legal é desconhecer todo o sistema jurídico de proteção aos povos indígenas que possuem direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas nos termos do artigo 231 da Constituição Federal. O próprio Decreto Estadual no 1.031/2017 estabelece que a sobreposição total de CAR em TI demarcada deverá ser indeferida pelo órgão competente, ou seja, a inscrição no SIMCAR deveria ser cancelada.
Regulamentação da sobreposição de CAR em TI no estado do Maranhão

No Maranhão, as diretrizes para a análise e validação das inscrições dos imóveis rurais são estabelecidas pelo Decreto Estadual no 36.889/2021. Este decreto declara a nulidade das inscrições ativas no CAR de imóveis rurais que estejam integralmente sobrepostos a Terras Indígenas, a áreas de comunidades quilombolas e a unidades de conservação que sejam de posse e domínio públicos. Os cadastros parcialmente sobrepostos a estas áreas devem ser retificados, no prazo de 30 dias contados da notificação, sob pena de nulidade. Mas para que esta nulidade seja reconhecida e o cadastro seja efetivamente cancelado, o decreto prevê a necessidade de processo administrativo específico, assegurados aos interessados o contraditório e a ampla defesa.

Na prática, o decreto maranhense estabelece um procedimento bastante burocrático e demorado para resolver situações que são flagrantemente ilegais, como a sobreposição integral de cadastros a Terras Indígenas, territórios quilombolas e Unidades de Conservação de posse e domínio públicos. Além disso, o decreto exclui do rol das situações de nulidade o cadastramento em áreas de outros povos e comunidades tradicionais que não sejam os quilombolas.

Pouco após a publicação do decreto, a Secretaria de Meio Ambiente (Sema/MA) editou a Portaria Sema no 97/2021 disciplinando os procedimentos para cancelamento de inscrição no CAR de imóveis rurais acima de quatro módulos fiscais em Terras Indígenas, Áreas Quilombolas e Unidades de Conservação de posse e domínio públicos.[9]

De acordo com esta portaria, quando a Sema identificar sobreposição integral ou parcial de um cadastro a uma Terra Indígena, área de comunidade quilombola e Unidades de Conservação de posse e domínio públicos, ela notificará o proprietário ou possuidor para efetuar a retificação dos dados declarados no CAR, no prazo de 30 dias. A notificação será feita através da Central do Proprietário/Possuidor do SICAR e/ou publicação no Diário Oficial do Estado do Maranhão.

Caso o proprietário ou possuidor não concorde com a avalição da Sema com relação à sobreposição e não queira retificar as informações do CAR, ele deverá protocolar os documentos comprobatórios das informações declaradas em seu CAR por meio da abertura de um processo administrativo eletrônico no Sistema Gerenciador Eletrônico de Processos (Sigep) ou através da Central do Proprietário/Possuidor no prazo de 30 dias após a notificação.

A Sema fará a análise técnica das informações apresentadas pelo proprietário ou possuidor e caso seja confirmada a sobreposição do CAR em Terras Indígenas, áreas de comunidades quilombolas e UCs de domínio público, a Sema encaminhará os autos aos órgãos fundiários competentes e à Procuradoria Geral do Estado do Maranhão (PGE/MA) para a adoção das providências cabíveis. Caso os proprietários ou possuidores não se manifestem no prazo estabelecido, a Sema procederá com o cancelamento da inscrição do imóvel no SICAR.

Esta portaria não esclarece o procedimento de cancelamento após a análise técnica pela Sema dos documentos enviados. A portaria apenas estabelece que, após a análise técnica, os autos serão encaminhados aos órgãos fundiários competentes e à PGE/MA. Não está claro em que momento a Sema procederá o cancelamento do CAR uma vez constatada a sobreposição total ou parcial em TIs, comunidades quilombolas e UC de posse e domínio públicos - se o cancelamento será antes ou depois de encaminhar os autos às autoridades fundiárias e PGE/MA. Além disso, assim como São Paulo, a regulamentação maranhense também não estabelece de forma clara a situação fundiária das TIs, comunidades quilombolas e UCs de posse e domínio público.
3. Experiências estaduais de cancelamento de CAR em sobreposição a Terras Indígenas

Alguns estados, independentemente de possuírem regulamentação específica, já estão promovendo o cancelamento de cadastros sobrepostos a TIs, como é o caso do Acre, Pará, Rondônia e Mato Grosso. Os procedimentos adotados variam ente esses estados, mas em comum possuem o fato de terem sido notificados pelo Ministério Público Federal para providenciar o cancelamento.

Em junho de 2020, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal publicou um documento com o levantamento e análise de sobreposições de CAR em Terras Indígenas, segmentando as TIs por fase de regularização: (i) em estudo; (ii) delimitadas; (iii) declaradas; (iv) homologadas; (v) regularizadas; e (vi) encaminhadas como reserva indígena. As TIs foram separadas por estado e posteriormente foi feito o cruzamento das TIs com os shapefiles do CAR.[10] De acordo com os dados levantados pelo MPF, há em torno de 10 mil cadastros sobrepostos a TIs, dos quais aproximadamente 80% se sobrepõem a TIs regularizadas.[11] Ainda que o estudo feito pelo MPF superestime o número de cadastros em sobreposição a TIs,[12] há uma quantidade muito significativa de CAR em TIs que precisam ser cancelados.

Após este estudo, o MPF solicitou providências a diversos órgãos federais, como o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) e Banco Central, pedindo o cancelamento do registro desses cadastros, a anulação de licença ambientais concedidas e a suspensão de financiamentos bancários, dentre outras.[13] O MPF também enviou recomendações aos estados para promoverem o cancelamento imediato de todos os cadastros sobrepostos a Terras Indígenas.[14]

Em resposta às recomendações do MPF, alguns estados, a exemplo do Acre, Rondônia e Pará, providenciaram o cancelamento dos cadastros, mas outros, como Amazonas e Roraima, ainda não conseguiram cumprir com as recomendações. A inexistência de regulamentação federal estabelecendo o procedimento de cancelamento de CAR em TI é um dos entraves apontados pelos estados. Eles consideram que não há segurança jurídica para o cancelamento dos registros.

O conhecimento de algumas experiências estaduais de cancelamento de CAR sobreposto a TI, as dificuldades encontradas e os êxitos obtidos podem ajudar os demais estados a elaborar e implementar as suas próprias regras e procedimentos para o cancelamento.
Acre

O Acre é um dos estados que não regulamentou nem as hipóteses de sobreposição de CAR, nem os critérios para o cancelamento, remetendo à legislação federal para estas situações omissas. Além disso, o estado não usa um filtro automático de TIs, as sobreposições são constatadas na rotina de análise e validação dos cadastros. Assim, no caso de sobreposição de CAR a TI, o órgão estadual competente notifica o produtor de que a sobreposição impede a continuidade da análise e o cadastro é classificado como pendente.

Com relação ao cancelamento o Acre também segue as regras federais dispondo que o cadastro deve ser cancelado quando forem constatadas informações falsas ou em caso de decisão judicial ou administrativa. Assim, quando o estado recebeu um ofício do MPF solicitando o cancelamento de 132 cadastros em sobreposição as TIs, considerou que este pedido se enquadrava nas hipóteses legais e promoveu o cancelamento de aproximadamente 120 cadastros.
Pará

O Pará é um dos estados em que a sobreposição de cadastros em TIs é bastante relevante. De acordo com análise do MPF, havia no Pará em torno de 1290 cadastros sobrepostos a Terras Indígenas declaradas, delimitadas e homologadas/regularizadas.[15] O relatório do MPF identificou, ainda, mais de mil sobreposições de CAR em TIs em estudo.

Diante deste cenário, o estado decidiu implementar uma estratégia para o cancelamento dos cadastros. Como a legislação do Pará apenas remete à legislação federal no que diz respeito ao procedimento de análise dos cadastros, a Semas/PA adotou o Memorando Técnico no 116/2020 proposto pela Diretoria de Geotecnologias (DIGEO), o qual descreve os procedimentos técnicos, critérios e ações para tratamento de sobreposições de CAR em territórios protegidos, como terras indígenas regularizadas/homologadas e unidades de conservação de proteção integral.

O Memorando Técnico no 116/2020 da DIGEO estabelece regras de acordo com o percentual de sobreposição: (i) Quando o imóvel possui mais de 50% da sua área inscrita no CAR sobreposta a uma TI, o cancelamento é sumário. (ii) Quando a área sobreposta do imóvel varia entre 5% e 50%, a Semas suspende o cadastro e notifica o responsável para que ele retifique o CAR, retirando toda a área sobreposta a TI, no prazo de 30 dias, sob pena de cancelamento. Durante este prazo, o CAR não pode ser usado para obter autorizações em qualquer instância e todos os benefícios são suspensos ou bloqueados. O proprietário/possuidor poderá apresentar no prazo de 30 dias documentação de regularidade fundiária, mas se essa manifestação não comprovar tal regularidade, o cadastro poderá ser cancelado. (iii) Quando a sobreposição é menor que 5% da área do imóvel, o cadastro segue para a análise pelos técnicos.

O Pará é o único estado que implementou uma estratégia específica para o cancelamento dos cadastros sobrepostos a TIs. O estado estabeleceu um planejamento com prioridades que levam em consideração a atual capacidade técnica da Semas/PA e a pressão e o aumento do desmatamento nos territórios protegidos. Por isso, as primeiras TIs que foram objeto de ação foram a TI Cachoeira Seca e TI Apyterewa. Até o momento, a Semas/PA já cancelou mais de 620 cadastros e suspendeu 145 em mais de 40 TIs homologadas[16] e em torno de 100 cadastros estão atualmente com a equipe técnica para promover o cancelamento.[17] No caso de sobreposição a TIs que ainda estejam em processo de demarcação (que não foram regularizadas), a Semas/PA pode encaminhar o cadastro para análise ordinária e suspendê-lo, de acordo com os percentuais de sobreposição previstos no Memorando Técnico no 116/2020.

Por fim, o fato de o procedimento de cancelamento e suspensão dos cadastros no Pará estar fundamentado em um memorando técnico não garante a segurança jurídica que esta situação requer. Primeiro porque não é um ato normativo, segundo porque não tem a publicidade que deveria por não ser publicado no Diário Oficial do Estado e, por fim, este memorando pode ser facilmente revogado/alterado. Seria mais adequado que este procedimento fosse regulamentado por um ato normativo que garantisse a perenidade e a legalidade do procedimento.
Rondônia

Rondônia também não possui regulamentação própria sobre cancelamento de CAR sobreposto a TIs e outras terras públicas. Após ter recebido a recomendação do MPF solicitando o cancelamento dos cadastros em TIs, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) verificou os cadastros que se encontravam nessa situação e notificou todos os responsáveis, através da Central Proprietário/Possuidor, para retificarem seus registros e apresentar documentos. Foram identificados em torno de 1350 cadastros, dos quais 700 foram cancelados por estarem com mais de 10% da área sobreposta a TIs. Atualmente, a Procuradoria Geral do Estado de Rondônia (PGE/RO) avalia um pedido de reversão do cancelamento por parte do proprietário do imóvel.
Mato Grosso

Como mencionado, o estado regulamenta as hipóteses de sobreposição de CAR em TIs e apesar de a PGE/MT ter se manifestado contrariamente ao cancelamento de cadastros sobrepostos à TI Kayabi, a Sema/MT já promoveu o cancelamento de aproximadamente 60 cadastros integralmente sobrepostos a outras TIs homologadas. A situação de Mato Grosso é preocupante pois de acordo com o levantamento do MPF mais de 1.000 cadastros estariam irregularmente sobrepostos a TIs no estado.

Chama a atenção o fato de os estados, com a exceção do Pará, não possuírem uma estratégia específica para identificar as sobreposições em Terras Indígenas e demais áreas impeditivas e proceder com o cancelamento, notificação ou a suspensão dos cadastros em seu conjunto. As regulamentações estaduais dispõem que esta verificação ocorrerá na rotina de análise individual dos cadastros, fazendo com que estas situações irregulares permaneçam por tempo indeterminado na base do SICAR.

Os estados precisam traçar planos específicos para resolver os cadastros irregulares sob pena de serem coniventes com as ilegalidades cometidas por aqueles que se apropriam irregularmente de terras públicas e de comunidades tradicionais. Além disso, é urgente que os estados mantenham os filtros ativos que impeçam novas inscrições nessas áreas públicas. Se o sistema do CAR estadual continuar permitindo novos cadastramentos em Terras Indígenas, comunidades tradicionais, Unidades de Conservação de domínio público e outras áreas públicas consideradas impeditivas, o trabalho de identificação das sobreposições e cancelamento dos cadastros terá sido ineficaz.
4. Análise dos Projetos de Lei sobre vedação de CAR em terras públicas

Recentemente, dois projetos de lei foram propostos no Congresso Nacional buscando regulamentar a vedação de inscrição no Sistema Nacional do Cadastro Rural Ambiental (SICAR) de área particular sobreposta a terras públicas, como Terras Indígenas, Unidades de Conservação de domínio público, territórios de povos e comunidades tradicionais e florestas públicas. A análise destes projetos de lei revela que, apesar do escopo mais abrangente, nenhum dos dois regulamenta de forma completa o procedimento de cancelamento e nem detalha regras específicas para cada uma das diferentes situações fundiárias em que estas terras públicas se encontram. Nesse sentido, mesmo que estes PLs sejam aprovados, os estados ainda precisarão adotar regulamentação complementar própria definindo o fluxo administrativo para que se chegue ao efetivo cancelamento de registros irregulares.
Projeto de Lei 4450/2021

O PL 4450/2021 foi apresentado na Câmara dos Deputados em 14 de dezembro de 2021. De autoria dos Deputados Rodrigo Agostinho, Tábata do Amaral, Joênia Wapichana e outros, o PL dispõe sobre a vedação de inscrição no SICAR de imóveis rurais em áreas onde a transferência para o domínio privado seja vedado por lei, tais como áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos tradicionais, unidades de conservação criadas ou em processo de criação e florestas públicas não destinadas. O PL também determina a suspensão de validade do CAR e o embargo automático dos imóveis rurais objeto de desmatamento ilegal.

O PL 4450/2021 dispõe que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) deve tornar inativos, no prazo de 30 dias contados da entrada em vigor da lei, todos os cadastros que se encontrem em uma das situações citadas acima.

O objetivo dos deputados que subscrevem este projeto de lei é tornar o CAR um instrumento mais efetivo de controle e combate ao desmatamento. Na justificativa de apresentação do PL, os deputados trazem dados sobre o aumento do desmatamento ilegal em áreas inscritas no SICAR. Tornar o CAR mais efetivo é necessário e urgente, mas a proposta do PL 4450/2021 tem algumas limitações que podem inviabilizar o alcance deste objetivo.

Este PL, como visto, cria uma condição para o CAR, dispondo que o SFB deve tornar o CAR "inativo". A mencionada Portaria MAPA no 121/2021 que regulamenta os procedimentos gerais de análise dos cadastros estabelece quatro condições para o CAR: ativo, pendente, suspenso e cancelado. Os estados, ao regulamentarem o Código Florestal, seguem as mesmas condições estabelecidas na legislação federal. Nesse sentido, seria mais adequado que o PL 4450/2021 considerasse uma das condições já regulamentadas, como por exemplo, o cancelamento dos cadastros.

Além disso, de acordo com a proposta do PL 4450/2021, caberia ao SFB promover a "inativação" dos cadastros irregulares. Entretanto, a competência para a análise das informações declaradas no CAR e da regularidade ambiental dos imóveis rurais é dos estados. Ou seja, apenas eles poderiam tornar os cadastros "inativos". O SFB é apenas o gestor do SICAR, sendo responsável pela disponibilização dos módulos para a análise dos cadastros pelos estados.

Por fim, o PL 4450/2021 também não estabelece o procedimento administrativo para o órgão competente suspender a validade dos cadastros irregulares, nesse sentido, ainda que o projeto de lei seja aprovado, será necessário um decreto regulamentando tal procedimento, de forma a possibilitar o efetivo cancelamento destes pelos estados.
Projeto de Lei 486/2022

O PL 486/2022 foi proposto pelo Senador José Serra ao plenário do Senado Federal, em 9 de março de 2022. Este projeto de lei tem um escopo mais abrangente que o do PL 4450/2021, pois além de vedar o registro no CAR de imóveis rurais localizados em terras públicas, ele também estabelece a destinação de florestas públicas não destinadas e tipifica o crime de inscrição fraudulenta no SICAR. Para tanto o PL faz alterações na Lei da Reforma Agrária (Lei no 8.629/1993), na Lei de Crimes Ambientais (Lei no 9.605/1998), na Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei no 11.284/2006) e no Código Florestal (Lei no 12.651/2012).

Com relação às alterações propostas ao Código Florestal, o PL 486/2022 veda a inscrição no CAR, por particulares, de imóveis rurais em áreas localizadas em unidades de conservação (UC) de domínio público, terras indígenas (TI), terras tradicionalmente ocupadas por comunidades quilombolas, florestas públicas não destinadas e demais áreas para as quais a transferência para o domínio privado seja vedada por lei. As inscrições realizadas, a qualquer tempo, em uma destas áreas deverão ser canceladas. Para tanto, o Poder Público deverá manter banco de dados contendo os limites georreferenciados de UCs de domínio público, TIs, territórios quilombolas, florestas públicas não destinadas, dentre outras terras públicas. Para a análise das situações descritas este banco de dados deverá ser integrado ao sistema informatizado de gestão do CAR.

Em sua justificativa, o Senador José Serra também apresenta dados que mostram o aumento do desmatamento ilegal em florestas públicas não destinadas e em Terras Indígenas, sobretudo nas áreas inscritas irregularmente no CAR. Sustenta que o desmatamento na Amazônia agrava a crise climática e que é preciso adotar uma política de vedação de conversão de florestas públicas não destinadas ao uso privado.

Assim como o PL 4450/2021, o PL 486/2022 também não estabelece o procedimento administrativo para o cancelamento dos cadastros, de maneira que sua aprovação não necessariamente resolveria, no curto prazo, o problema atual de inscrições irregulares de CAR sobrepostos a TIs e outras áreas protegidas. Entretanto, ao prever expressamente em lei que a sobreposição de CAR em TIs é uma hipótese de cancelamento, os estados que já possuem um procedimento administrativo de cancelamento de CAR poderiam ser basear diretamente no texto legal como fundamento para o cancelamento.

O PL 486/2022 se refere apenas às terras indígenas e às terras tradicionalmente ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, sem mencionar as demais comunidades tradicionais. São reconhecidos oficialmente no Brasil 28 povos e comunidades tradicionais e o Código Florestal dá um tratamento específico a todos os povos e comunidades tradicionais que façam o uso coletivo do território, nesse sentido, o PL não deveria restringir apenas aos indígenas e quilombolas.

Porém, há ainda uma questão complexa sobre a qual o PL 486/2022 tem lacunas que precisam ser resolvidas. Um dos problemas na política de cancelamento de CAR em áreas protegidas e terras públicas diz respeito à situação fundiária dessas áreas. Cada categoria fundiária tem um procedimento de regularização próprio e a depender da etapa de regularização é possível que uma ocupação particular seja permitida, como é o caso de UCs de domínio público pendente de regularização fundiária. O próprio Código Florestal prevê a doação para o poder público de áreas particulares em UCs pendentes de regularização fundiária para compensação de Reserva Legal.

Com relação aos territórios quilombolas e outras áreas de comunidades tradicionais há muitos casos em que as famílias fazem a inscrição de sua área no CAR, individualmente, seja porque a área total da comunidade ainda não foi inscrita no CAR por não estar regularizada, seja porque alguns bancos não aceitam o CAR de território coletivo para fins de concessão de crédito rural. Portanto, nesses casos é preciso avaliar cada cadastro individualmente. Quanto às ocupações em terras públicas é preciso identificar se o ocupante tem o direito de regularizar a área nos termos da Lei no 11.952/2009. As Terras Indígenas também incluem áreas em diferentes etapas no processo de demarcação e a depender da etapa do processo, como na fase dos estudos de identificação, é possível que ainda haja a presença de não indígenas na área (ver Box 1).

Por fim, o georreferenciamento dos limites destas diferentes categorias fundiárias depende da etapa em que se encontram no processo de regularização. Sem mapas com limites georreferenciados bem definidos não é possível promover a integração com o SICAR para fins de cancelamento dos cadastros irregulares. Nesse sentido é importante que haja uma definição sobre qual etapa da regularização fundiária da terra pública ou comunidade tradicional o PL 486/2022 é aplicável e que os bancos de dados com limites georreferenciados destas áreas sejam criados, quando inexistentes.

BOX 1. QUESTÃO FUNDIÁRIA DAS TERRAS INDÍGENAS

A Constituição Federal de 1988 assegura aos indígenas a "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam".[18] Além disso, o texto constitucional definiu o prazo de cinco anos para que a União demarcasse todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Entretanto, passados quase 30 anos do prazo constitucional, foram homologadas/reservadas 487 Terras indígenas e há ao menos 237 em processo de demarcação na Funai.[19]

O procedimento administrativo de demarcação de Terras Indígenas é estabelecido pelo Decreto Federal no 1.775/1996, o qual divide o processo em cinco etapas principais: (i) estudos de identificação; (ii) aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terra Indígena (RCID) pela Funai; (iii) declaração dos limites da Terra Indígena por meio de portaria do Ministro da Justiça; (iv) homologação por meio de decreto do Presidente da República; e (v) registro da Terra Indígena no Registro Geral de Imóveis (Figura 2). Antes da edição deste decreto, entretanto, já existiam na legislação outras formas de regularização fundiária, como é o caso das reservas indígenas, das terras dominiais e da interdição de área para proteção de povos indígenas isolados.

Figura 2. Fluxograma de Demarcação de Terras Indígenas

Fonte: CPI/PUC-Rio, 2022

Apesar de a Constituição proteger todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, independentemente da etapa de regularização, na prática, políticas públicas e atos normativos infraconstitucionais garantem uma efetiva proteção apenas às TIs homologadas/regularizadas, fazendo com que os indígenas tenham que sistematicamente recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir os seus direitos.

A Lei no 12.651/2012, que instituiu o atual Código Florestal, foi objeto de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidades (ADI) e uma delas, a ADI 4903/DF, questionava a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 3o que estendia o regime especial das pequenas propriedades e imóveis rurais familiares apenas às terras indígenas demarcadas e às áreas tituladas de povos e comunidades tradicionais. O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade das expressões "demarcadas" e "tituladas" estendendo as disposições do Código a todas as Terras Indígenas e territórios tradicionais.

De acordo com os ministros do STF, "a exigência de demarcação de terras indígenas e da titulação das áreas de povos e comunidades tradicionais, como pressuposto para a aplicação do aludido regime especial, viola o art. 231 da CF e o art. 68 da ADCT. A demarcação e a titulação de territórios têm caráter meramente declaratório - e não constitutivo -, pelo que o reconhecimento dos direitos respectivos, inclusive a aplicação de regimes ambientais diferenciados, não pode depender de formalidades que nem a própria Constituição determinou, sob pena de violação da isonomia e da razoabilidade".[20]

A proteção das TIs nas diferentes etapas do processo de demarcação era parte da política de proteção aos povos indígenas da Funai. Entretanto, em 2020, a Funai editou a Instrução Normativa no 9, disciplinando o requerimento, análise e emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL) em relação a imóveis privados. A DRL se destina a fornecer aos titulares de imóveis rurais a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das Terras Indígenas. Esta declaração é documento essencial para a regularização de posses em terras públicas, além de outros atos registrais, pois atesta que o imóvel não se encontra em TIs. A grande novidade da IN no 9/2020 foi restringir a emissão da DRL apenas para imóveis incidentes em Terras Indígenas homologadas, reservas indígenas e Terras Indígenas dominiais, excluindo deste rol as TIs em processo de demarcação. Esta instrução normativa foi usada como fundamento para que o filtro de TI do SICAR considerasse apenas as sobreposições em TI homologadas.

Após a edição da IN no 9/2020, o Ministério Público Federal ajuizou uma série de ações civis públicas em diversos estados brasileiros, requerendo a suspensão dos efeitos da instrução normativa para assegurar a manutenção e/ou a inclusão de todas as Terras Indígenas no SIGEF e no CAR, ainda que o processo de demarcação da TI não tenha finalizado.[21] Apesar de vários tribunais terem concedido liminares ou decisões suspendendo os efeitos da normativa,[22],[23] ainda não houve uma decisão final transitada em julgado e até hoje o filtro de TI do SICAR apenas detecta automaticamente as sobreposições em TIs homologadas.

Um projeto de lei complementar da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (PLC 17/2020) pretendia regulamentar os procedimentos de análise de CAR, excluindo a detecção de sobreposições em TIs não homologadas, nos termos da IN Funai no 09/2020. Após forte mobilização da sociedade civil contra esta proposta, o texto acabou sendo aprovado sem esta restrição. Mas na prática, o estado não toma qualquer providência nos casos de sobreposição de CAR em TIs em processo de demarcação.

Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu dois atos da Funai que negavam proteção a Terras Indígenas não homologadas. O ministro sustenta que não se pode utilizar o argumento da não homologação para retirar a proteção das terras indígenas porque "a não homologação de tais terras deriva de inércia deliberada do poder público, que viola o direito originário de tais povos, previsto na Constituição, cabendo à União o dever (e não a escolha) de demarcar suas terras". Em sua decisão o ministro reconhece, ainda, que "ao afastar a proteção territorial em terras não homologadas, a FUNAI sinaliza a invasores que a União se absterá de combater atuações irregulares em tais áreas, o que pode constituir um convite à invasão de áreas que são sabidamente cobiçadas por grileiros e madeireiros, bem como à prática de ilícitos de toda ordem".

Os direitos territoriais indígenas são claramente protegidos pela Constituição e por decisões judiciais da Suprema Corte e devem ser considerados nos processos de análise dos Cadastros Ambientais Rurais. Na prática, entretanto, a falta ou imprecisão de dados georreferenciados dos limites destas TIs traz limitações aos analistas dos órgãos competentes. A análise do CAR se faz a partir do cruzamento das informações declaradas com bases cartográficas de referência, dente elas, a base oficial de Terras Indígenas da Funai. O órgão indigenista possui mapa e dados geográficos das Terras Indígenas delimitadas, declaradas, homologadas, regularizadas, reservadas e em interdição. Apenas as TIs em estudo não constam dessa base cartográfica.Esta base completa deveria ser usada pelo SFB e todos os estados para a análise dos Cadastros Ambientais Rurais. Restringir a análise de sobreposições a apenas cadastros em TIs homologadas e reservadas impossibilita que as TIs em processo de demarcação sejam consideradas pelos órgãos competentes na análise dos cadastros, implicando em grave ofensa aos direitos territoriais desses povos.
5. Diretrizes para a regulamentação do cancelamento de CAR em sobreposição a Terras Indígenas

O governo federal assim como os estados podem e devem regulamentar o procedimento administrativo de cancelamento de CAR sobreposto a TIs, tal como proposto nas diretrizes e no fluxograma (Figura 3) a seguir:Estabelecer um procedimento de cancelamento administrativo sumário para sobreposição integral e parcial (definir o percentual de sobreposição, por exemplo acima de 50%) de CAR em Terras Indígenas delimitadas; declaradas; homologadas; regularizadas; áreas reservadas e áreas com restrição de uso,[24] usando como base de referência o mapa Terras Indígenas Situação Fundiária da Funai.[25]

- Estabelecer um procedimento administrativo que notifique o proprietário ou possuidor para retificar o seu cadastro quando a sobreposição for parcial (definir o percentual de sobreposição, como por exemplo entre 5% e 50%). O proprietário ou possuidor deverá retificar toda a área que está sobreposta em um prazo determinado (ex: 30 dias), sob pena de cancelamento automático. Outra alternativa é estabelecer um procedimento administrativo no qual o próprio órgão competente retifica o cadastro quando a sobreposição for parcial (definir o % de sobreposição, como por exemplo entre 5% e 50%) e notifica o proprietário ou possuidor para o aceite da retificação em um prazo determinado, sob pena de cancelamento automático.

- A notificação pode ser feita pela central do proprietário/possuidor, por edital no Diário Oficial do Estado ou por correio com aviso de recebimento.

- Em caso de retificação parcial/incorreta, o órgão responsável poderá notificar novamente o proprietário ou possuidor com um prazo mais curto e se a retificação continuar incorreta, o órgão responsável poderá cancelar integralmente o cadastro.

- O proprietário/possuidor poderá solicitar auxílio do órgão competente para proceder a retificação de seu cadastro.

- Estabelecer o órgão responsável para dirimir controvérsias com relação aos limites geográficos das Terras Indígenas.

- Documentos que comprovem a propriedade ou outros direitos reais na área não impedem o cancelamento de CAR sobreposto a Terras Indígenas já que os indígenas possuem direitos originários sobre o território. O proprietário poderá resolver as questões fundiárias diretamente nos órgãos responsáveis (como solicitação de indenização por benfeitorias).

- Em caso de CAR sobreposto a Terras Indígenas que se encontrem em estudo, etapa do processo de demarcação em que a área do território indígena ainda não foi identificada e delimitada, a regulamentação pode prever que o CAR seja considerado ativo ou pendente, mas o recibo do CAR deverá conter um aviso indicando que o cadastro está sobreposto a Terra Indígena em estudo para demarcação.

- A regulamentação pode prever o estabelecimento de acordo de cooperação ou portaria conjunta com o órgão indigenista para disciplinar o intercâmbio de informações.

Figura 3: Fluxograma de Cancelamento de CAR Sobreposto a TI

Fonte: CPI/PUC-Rio, 2022
6. Plano de ação

[1] Transparência Internacional Brasil. Qual a relação que a grilagem de terras tem com a corrupção? 2022. bit.ly/3Ld6Exu.

[2] Cada uma dessas categorias fundiárias apresenta especificidades que demandam regulamentação específica de cancelamento de CAR sobrepostos a estas áreas.

[3] Oviedo, Antonio, Cicero Augusto e William A. Lima. Conexões entre o CAR, desmatamento e o roubo de terras em áreas protegidas e florestas públicas. Instituto Socioambiental, 2021. bit.ly/3MljBGZ.

[4] Serviço Florestal Brasileiro entrevistado por Cristina Leme Lopes, do CPI/PUC-Rio. 2021.

[5] Ministério Público Federal. Procedimento Administrativo no 1.00.000.008996/2019-64. 2020.

[6] O art. 12 da Portaria MAPA no 121/2021 dispõe expressamente que no âmbito do MAPA, os procedimentos gerais complementares do CAR passam a ser regulados pelo disposto na Portaria, não se aplicando os artigos 46; 49; 50 e 51 da IN MMA no 2/2014.

[7] Decker, Augusto, Denise Luna, Isadora Duarte, Letícia Pakulski e Tânia Rabello. BNDES atende o campo e libera exigência ambiental. O Estado de S. Paulo, 24 de fevereiro de 2020. bit.ly/3wxeUD3.

[8] A legislação federal de referência nesse caso é a IN MMA no 2/2014, já que a Portaria MAPA no 121/2021 foi adotada após a regulamentação pelos estados.

[9] No Maranhão a gestão do CAR é dividida entre a Sema/MA e a Secretaria de Agricultura Familiar (SAF/MA), por isso o cancelamento de imóveis menores que quatro módulos fiscais ainda precisa ser regulamentado pela SAF/MA. Até a publicação desta nota técnica a SAF/MA ainda não tinha editado seu regulamento sobre a matéria.

[10] Shapefiles são arquivos que contém as feições geográficas das áreas inscritas no CAR.

[11] Ministério Público Federal. Procedimento Administrativo no 1.00.000.008996/2019-64. 2020.

[12] De acordo com o SFB os números do MPF contabilizaram 2 mil cadastros duplicados.

[13] Ministério Público Federal. Procedimento Administrativo no 1.00.000.008996/2019-64. 2020.

[14] Assessoria de Comunicação Procuradoria Geral da República. MPF identifica quase 10 mil registros de proprietários privados no Cadastro Ambiental Rural em áreas destinadas a povos indígenas. Conselho Indígena Missionário, 2020. bit.ly/3yG5Yy3.

[15] Ministério Público Federal. Procedimento Administrativo no 1.00.000.008996/2019-64. 2020.

[16] Chiavari, Joana, Cristina L. Lopes e Julia Nardi. Onde Estamos na Implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros. Edição 2021. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021. bit.ly/OndeEstamos2021.

[17] Rodolpho Z. Bastos. Regulariza Pará. Semas/PA, 2022.

[18] Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 231, 1988.

[19] Fundação Nacional do Índio. Terras Indígenas. 2020. bit.ly/3wxy386.

[20] Supremo Tribunal Federal. ADI no 4903. 2018. bit.ly/3Ngd7ch.

[21] Ministério Público Federal. Sentença anula portaria que liberava registro de fazendas em terras indígenas na região de Altamira (PA). 2022. bit.ly/3N6OkHB.

[22] Ministério Público Federal. MPF obtém liminar para suspender em SP norma da Funai que põe em risco terras indígenas ainda em demarcação. 2022. bit.ly/3Nlqng6.

[23] Ministério Público Federal. Justiça Federal declara nula a normativa que permite grilagem em terras indígenas, a pedido do MPF. 2021. bit.ly/3lkN33K.

[24] TI delimitada é aquela cujo RCID já foi aprovado pela Presidência da Funai e publicado no Diário Oficial da União e do Estado, e que se encontra na fase do contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça; TI declarada é aquela que possui Portaria de Declaração emitida pelo Ministro da Justiça. Esta portaria fixa os limites e inicia-se a demarcação física, ou seja, a área da TI já está devidamente protegida; TI homologada é aquela que possui Decreto Presidencial de Homologação; TI regularizada é aquela homologada e registrada no Registro Geral de Imóveis; Áreas Reservadas são aquelas destinadas pela União à posse e ocupação indígena nas seguintes modalidades: reserva indígena; parque indígena; colônia indígena e Áreas com restrição de uso - áreas com presença de indígenas isolados que são protegidas enquanto não se inicia o procedimento de demarcação.

[25] Funai. Terras indígenas situação fundiária. bit.ly/3Ljv9sM.

https://www.climatepolicyinitiative.org/pt-br/publication/cancelamento-…

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