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Autor: CHIARETTI, Daniela
16 de Jul de 2024
BR-319: nem a Muralha da China seguraria a grilagem
A polêmica da pavimentação do trecho central da estrada que um dia ligou Manaus a Porto Velho e hoje ameaça dividir ao meio a Amazônia
Daniella Chiaretti
16/07/2024
Há quem diga, no governo federal e fora dele, que estão querendo passar o trator no licenciamento ambiental e dividir a Amazônia pela metade. Isso enquanto as atenções estão concentradas nos poços de petróleo da Margem Equatorial e os brasileiros não conseguem ter um debate adequado se querem ou não ser o país que produzirá a última gota do combustivél fóssil de um mundo em crise climática.
Agora, a grande ameaça à integridade da floresta vem do lobby de políticos do Norte para que o trecho do meio da BR-319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho, seja pavimentado. É uma velha polêmica que parece ganhar celeridade. São 400 quilômetros muito estragados que, na visão dessa turma, têm que ser asfaltados logo e permitir, com governança e fiscalização exemplares que professores e médicos, remédios e alimentos transitem pela rodovia trazendo progresso sustentável à região e conectando os moradores de Manaus com o resto do Brasil. Isso, provavelmente, em cenário de Alice no país das maravilhas.
No Brasil de hoje, com o crime organizado se espalhando pela Amazônia, grileiros por toda a parte e fiscalização deficiente, cientistas e ambientalistas temem que a pavimentação do trecho do meio dos 885 quilômetros da BR-319, a Manaus-Porto Velho, faça explodir o desmatamento. Construída durante a ditadura e inaugurada em 1976, deixou de ser transitável em 1988 diante dos altos custos de manutenção e a força da floresta tropical. Desde então é alvo de uma das maiores polêmicas que envolem a preservação da Amazônia.
"Entre todas as estradas na Amazônia, a BR-319 é a que tem potencial de produzir maior impacto", disse ao Valor, em 2013, o professor Britaldo Soares, especialista em modelagem ambiental de mudanças do uso da terra. A estrada corta a Amazônia em dois grandes blocos de floresta, cruzando uma área ainda bem preservada, o Amazonas, e com concentração de terras devolutas, o nome para áreas públicas que o Estado ainda não destinou (não disse se são terras indígenas, unidades de conservação, territórios quilombolas, ou o que se quer que sejam). Enquanto o Estado não age, o crime se aproveita.
O novo asfalto chegou às duas pontas com o Programa de Aceleração do Crescimento de 2007. Sensível ao efeito-bomba da pavimentação total, mas também da reivindicação legítima da população de Manaus que se sente isolada do resto do país, e da pressão dos políticos da região, em agosto o presidente Lula explicou assim se a pavimentação do trecho do meio da BR-319 estava ou não no Novo PAC. Estava, mas da seguinte forma: a Casa Civil conduziria um estudo a respeito do tema. "A questão ambiental é muito crítica nessa parte da Amazônia", respondeu Lula. "Ao invés da gente colocar de forma precipitada ou a gente dizer que não vai colocar, decidimos construir um grupo especial para dar a palavra definitiva".
Há um mês o Ministério dos Transportes surpreendeu ao apresentar o estudo de 68 páginas. Ali se propõe a implantação de 500 quilômetros de proteção física (leia-se, uma cerca), para preservar a fauna, com 172 passagens para que onças, tamanduás e antas passem para o lado de lá da rodovia. O relatório especifica: "uma passagem a cada 2,35 quilômetros". O espantoso está na conclusão: "O grupo de trabalho conclui que existem elementos para garantir a viabilidade técnica e ambiental para a completa pavimentação da BR-319". Alguém precisa informar a pasta que quem define se há alguma viabilidade ambiental em empreendimento federal é o processo de licenciamento, previsto em lei. O Ibama, autarquia do Ministério do Meio Ambiente, é o orgão a quem cabe a palavra final.
Há mais um agravante. Em julho de 2022, fim de governo Bolsonaro, o Ibama concedeu a licença prévia para a pavimentação dos 400 quilômetros do meio da BR-319.
"A licença prévia concedida para a reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR-319 pelo governo Bolsonaro é nula", diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama. "Como toda LP, é formalmente um atestado de viabilidade ambiental do empreendimento, e esse empreendimento está longe de ser viável. As condicionantes ambientais inclusas na LP não enfrentam o principal impacto da obra, o crescimento exponencial do desmatamento na região de influência da rodovia." Ela segue: "Ninguém afirma que essa estrada será inviável para sempre. Mas hoje não tem governança suficiente para enfrentar o desmatamento e vai dar errado".
A pedido do Valor, Tasso Azevedo, fundador do MapBiomas, referência no mapeamento das mudanças no uso do solo do território brasileiro, observou o desmatamento nos municípios no entorno da BR-319. O desmatamento tinha um certo ritmo em 2019 e 2020. Em 2021 subiu bastante e em 2022 deu outro salto. Só em 2023 caiu, como no restante da Amazônia. "O que chama mais a atenção é que de 2021 para 2022, quando houve uma estabilização no ritmo de desmatamento, no caso dos municípios do entorno da BR-319 o desmatamento cresceu de forma acelerada, o que mostra que pode ter sim relação com a expectativa do asfaltamento."
Britaldo Soares diz que a grilagem de terra é o grande vetor de desmatamento da Amazonia. A tal cerca proposta no relatório, para ele, é ridícula. "Nem com a Muralha da China se seguram esses grileiros", diz.
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