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Bispo defende homologação de terra contínua para índios

FSP, Entrevista da 2ª, p. A10
Autor: CASALDÁLIGA, D. Pedro
12 de Jan de 2004

Bispo defende homologação de terra contínua para índios
Sob proteção federal por causa de ameaças de morte, ele diz que a política indígena em Roraima é perversa

Entrevista da 2ª
D. Pedro Casaldáliga

Tiago Ornaghi
Da agência Folha

O bispo de São Félix do Araguaia (MT), d. Pedro Casaldáliga, 75, defende que a reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, seja demarcada e homologada como área indígena contínua (sem enclaves brancos) e que toda a população não-índia seja removida.
Para o bispo, os índios fizeram reféns três religiosos por terem sido cooptados por fazendeiros contrários à decisão do governo federal. "Eles querem radicalizar para que os objetivos de demarcar a reserva se tornem impossíveis."
Casaldáliga, que ficou conhecido internacionalmente por adotar posições radicais em questões sociais e por criticar o regime militar (1964-1985) numa das regiões onde a guerrilha atuava (Araguaia), é ameaçado de morte e recebe proteção federal.
O bispo, que já desafiou os preceitos do Vaticano e por isso foi punido, diz que a Igreja Católica vive um "processo de involução".
"[João Paulo 2o] Poderia deixar o papado. A permanência possibilita que a Cúria se mantenha mais centralizadora, mais controladora, mais fechada", disse.
Casaldáliga avalia que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva está fazendo "progressos modestos" na reforma agrária e na questão das terras indígenas, mas que os avanços são obstaculizados pelo Judiciário. "O Judiciário é lerdo, quando não é omisso, quando não é corrupto."
Espanhol de Barcelona, o missionário da ordem dos Claretianos chegou à Amazônia há 35 anos. Ele é um dos fundadores da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
A prelazia de São Félix do Araguaia ocupa uma área de 150 mil km2 na Amazônia Legal brasileira.
Atualmente, o religioso enfrenta problemas de saúde. Sofrendo do mal de Parkinson, precisa submeter-se a uma dieta rigorosa para controlar a pressão alta.
"Estou esperando um sucessor. Com 75 anos, não se podem programar grandes façanhas."

A seguir, trechos da entrevista concedida por d. Pedro Casaldáliga à Agência Folha no dia 27 de novembro e no sábado passado.

Agência Folha - A situação na Raposa/Serra do Sol mostrou uma radicalização da questão indígena?

D. Pedro Casaldáliga - Em Roraima, a população é majoritariamente indígena. A atuação política no Estado tem sido muito perversa para os índios, muitas vezes devido aos interesses de garimpeiros e fazendeiros.

Agência Folha - Três religiosos foram feitos reféns pelos índios. Por que isso aconteceu?

Casaldáliga - Isso aconteceu por que os fazendeiros da região e alguns índios cooptados por eles acham que esses religiosos estão defendendo o direito dos indígenas e a demarcação de uma área contínua. Eles querem radicalizar para que os objetivos de demarcar a reserva se tornem impossíveis.

Agência Folha - Qual seria a solução para o problema em Roraima?

Casaldáliga - A demarcação de uma reserva contínua que não separasse as aldeias, que, de outra forma, ficariam isoladas. E a retirada da população branca para evitar a luta pela terra.

Agência Folha - O sr. está sendo novamente ameaçado de morte. Como são essas ameaças?

Casaldáliga - Recebi informações de órgãos oficiais sobre essas ameaças. Mais recentemente, ameaças foram pichadas em paredes da nossa comunidade. Recebi nomes de quem estaria interessado na minha morte.

Agência Folha - O sr. está recebendo proteção?

Casaldáliga - Sim. A proteção é feita sem nenhum tipo de ostentação para não criar um clima hostil. Nem eu mesmo vejo a segurança. É muito discreta.

Agência Folha - Como o sr. avalia a ação do governo Luiz Inácio Lula da Silva quanto à reforma agrária?

Casaldáliga - Nós estamos começando a saber onde está a ferida na questão agrária. O novo plano de reforma agrária feito pelo Plínio de Arruda Sampaio é bastante bom, pelo que ouvi falar [o economista e ex-deputado federal petista, a pedido do governo, elaborou um anteprojeto do Plano Nacional de Reforma Agrária; o plano, não posto em prática, estabelece a meta de 1 milhão de famílias assentadas entre 2004 e 2007].
Mas precisamos de um levantamento mais preciso e mais justo de quem são os verdadeiros sem-terra para evitar que haja figuras infiltradas, como acontece aqui na região [do Araguaia, nordeste de Mato Grosso]. Mas a coisa não vai melhorar tão rapidamente, porque em última instância acaba caindo tudo na mão do Judiciário. E o Judiciário é caracterizado pela lerdeza. O Judiciário é lerdo, quando não é omisso, quando não é corrupto.

Agência Folha - O que o sr. acha do trabalho do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos?

Casaldáliga - Sentimos que o governo continua sem ter a coragem de enfrentar o problema e fazer a demarcação, a homologação das áreas indígenas. As áreas deveriam ter sido demarcadas todas até 1988. Outro problema é o do assassinato de índios. Lamentei muito a declaração do ministro de que a maioria das mortes foi causada por conflitos internos. Acompanho de perto a situação. Não é verdade. São fundamentalmente conflitos de terra.

Agência Folha - O sr. crê que a CNBB tenha se tornado mais conservadora?

Casaldáliga - Eu diria que há um processo de involução da Igreja Católica. Mas as pastorais específicas têm adquirido mais autonomia e personalidade. Já não é mais tão necessário que a CNBB oficialmente aja. As pastorais específicas agem in loco, no terreno. A CPT, o Cimi e as diversas pastorais estão trabalhando em áreas de fronteira. E essas áreas são conflituosas. Lidar com problemas de terras não é o mesmo que cuidar de idosos ou crianças. Por isso, sempre aparecem Cimi e CPT como radicais, como exigentes, como impacientes.

Agência Folha - Que balanço o sr. faz da questão agrária desde a década de 70?

Casaldáliga - Continua havendo medo em relação a mexer com o latifúndio. Medo de terrorismo, de mexer com interesses. Como se o latifúndio fosse intocável. Ainda há a vontade de alguns de sacralizar a propriedade particular, como se fosse um direito sagrado e absoluto.

Agência Folha - Qual é sua opinião a respeito do crescimento da agroindústria?

Casaldáliga - A grande pergunta a ser feita é: como conjugar a agricultura familiar com a agroindústria? Eu acho que, na devida medida, caberiam os dois programas. Privilegiar a agricultura familiar, que é a agricultura que resolve a fome, o desemprego e a produção do país. Pois o latifúndio e a monocultura sempre acabam sendo muito menos produtivos, além de não empregar e de destruir o ambiente. No entanto, o governo coloca na agroindústria muito mais dinheiro do que na agricultura familiar. A necessidade do país é pagar os juros da dívida. A agroindústria paga os juros dessa dívida, pois a agroindústria é fundamentalmente de exportação. Esquece-se da mesa da família e atende-se à mesa do FMI [Fundo Monetário Internacional].

Agência Folha - Como o sr. vê os projetos sociais do governo Lula?

Casaldáliga - A FAO [Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação] tem feito questão de anunciar os dados do Fome Zero. Acho que é um programa válido. Talvez tenha sido anunciado com uma certa festividade populista. Esqueceu-se que o problema não pode ser resolvido com a facilidade com que se apresentou.

Agência Folha - A Igreja Católica teve um importante papel na formação do PT, a partir da esquerda católica. Como está esse relacionamento agora?

Casaldáliga - As comunidades eclesiais de base foram a origem dos líderes do PT e de outros movimentos sociais, como o próprio MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Todos os envolvidos fizeram uma opção pelo povo, pensando em justiça social. É lógico que essa ideologia se alinhou e floresceu em certos partidos e movimentos. Mas é preciso fazer a diferenciação: PT é uma coisa, igreja é outra; MST é uma coisa, CPT é outra. Mas somos todos companheiros de caminhada.

Agência Folha - No ano passado, morreram mais índios e sem-terra do que em 2002. Por que justamente no primeiro ano de Lula?

Casaldáliga - Eu tenho a impressão de que, com o governo Lula, os movimentos sociais sentiram uma atmosfera de "é agora ou nunca". Eu, os sem-terra e os deserdados sentimos que ou se faz a reforma agrária no governo Lula ou teremos perdido uma ocasião histórica. Por outro lado, o latifúndio, representado pela bancada ruralista, percebeu que uma revolução no campo poderia ser desencadeada e reagiu de uma forma muito mais agressiva, o que origina esse conflito armado.

Agência Folha - Com a formação de um grupo conservador de cardeais eleitores, especula-se que o próximo papa possa ser mais conservador que João Paulo 2o. O que o sr. acha disso?

Casaldáliga - Eu digo o seguinte: por um lado há uma involução oficial da igreja no que diz respeito às condições e à saúde do papa. Ele poderia deixar o papado. A permanência possibilita que a Cúria se mantenha mais centralizadora, mais controladora, mais fechada. Mas, por outro lado, têm crescido nas bases eclesiais muito mais consciência e liberdade. Existem muitas pastorais e grupos que têm liberdade para atuar nas questões sociais.

Agência Folha - O sr. anunciou, em 1999, a sua "Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba"...

Casaldáliga - Eu fiz uma declaração de amor à revolução total. Eu sublinhei o total. Em Cuba, a revolução acabou sendo parcial. O resultado em Cuba deveria ter sido mais democrático. Cuba teve o problema do bloqueio econômico. Mas sempre a América Latina deverá agradecer à coragem de Cuba frente aos EUA, a contestação do imperialismo. E Cuba, desde a revolução, tem cuidado muito da saúde e da educação de seu povo. Mas há os desrespeitos, que são evidentemente negativos.

Perfil

Casaldáliga foi punido pelo papa por declarações

Da agência Folha

D. Pedro Casaldáliga nasceu em 1928, em Barcelona (Espanha). Aos 16 anos, ingressou na Congregação dos Claretianos.
Chegou à Amazônia há 35 anos com o objetivo de catequizar a população local. Ele é um dos fundadores dos órgãos ligados à igreja que atuam nas questões agrária e indígena no país, respectivamente a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Casaldáliga se notabilizou nos anos do regime militar ao defender temas polêmicos e ligados aos ideais da militância de esquerda, em especial a reforma agrária e a homologação das terras indígenas.
Desde que chegou ao Brasil, Casaldáliga é bispo da prelazia (jurisdição) de São Félix do Araguaia, que ocupa uma área de 150 mil km2 na Amazônia Legal brasileira. São Félix do Araguaia fica a 1.176 km a nordeste de Cuiabá.
Em 1988, Casaldáliga foi punido pelo Vaticano com o "silêncio obsequioso" pelo período de três meses. A punição se deveu às constantes declarações favoráveis à reforma agrária e aos direitos dos índios.
Ele também viajou à Nicarágua, a El Salvador e a outros países da América Latina que, na época, eram tidos como politicamente radicalizados.
Casaldáliga desrespeitava abertamente a norma canônica das visitas "ad limina". Pelo Código de Direito Canônico, todos os bispos devem visitar o papa de cinco em cinco anos. Na época, ele disse considerar as visitas "um desperdício sem sentido de recursos e tempo da igreja".
De acordo com a punição, ele não poderia mais dar entrevistas, viajar pela América Latina, fazer conferências sem autorização e escrever sem passar por censura prévia, além de ter que acatar as normas canônicas sobre as visitas "ad limina".
Em 1999, o bispo publicou a "Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba", em que elogia alguns pontos de melhoria social alcançados pelo governo cubano desde a revolução de 1959.
Em fevereiro do ano passado, quando completou 75 anos de idade, Casaldáliga pediu aposentadoria. Agora espera pela indicação de um substituto.
O bispo tem recebido ameaças de morte por meio de telefonemas. Sua casa chegou a ser pichada com ameaças. Haveria um prêmio de R$ 60 mil pela morte do religioso. (TGO)

Outro lado

Cronograma é o "possível", diz pasta da Justiça

Da agência Folha

Sobre a opinião de d. Pedro Casaldáliga de que o ministro Márcio Thomaz Bastos não está agindo com "coragem para enfrentar o problema e fazer a demarcação e a homologação das áreas indígenas", o Ministério da Justiça disse, por sua assessoria de imprensa, que as ações do governo sobre questões indígenas de demarcação e homologação de reservas estão seguindo o "cronograma possível em face das dificuldades inerentes à questão".
Na semana passada, o ministro Márcio Thomaz Bastos manteve a homologação de uma reserva contínua (sem enclaves brancos) na área da Raposa/Serra do Sol (uma terra de 1,75 milhão de hectares no nordeste de Roraima).
Quanto às críticas feitas por Casaldáliga de que "o Judiciário é lerdo, quando não é omisso, quando não é corrupto", quando trata da questão indígena, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Maurício Corrêa, já havia declarado, em 20 de novembro passado, por meio de sua assessoria, que os processos de reforma agrária e de homologação de terras indígenas são julgados pelo Judiciário de acordo com as leis e com a Constituição.
A respeito da declaração de Casaldáliga de que "a Igreja Católica vive um processo de involução" e que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) pode estar se tornando mais conservadora, a entidade disse que as suas atividades sempre foram pautadas pela busca da melhoria das condições de vida dos mais carentes.
D. Amaury Castanho, bispo da diocese de Jundiaí (SP) e um dos principais articuladores da CNBB, destacou os últimos textos publicados pela entidade, que, segundo a conferência, têm todos um "caráter de defesa dos interesses das populações índias, marginalizadas e defendem a reforma agrária".
Para a entidade, as motivações políticas nunca estiveram acima das sociais como motivadoras das suas ações. Para a CNBB, considerar que a Igreja Católica está sofrendo "um processo de involução" é apenas uma das formas de analisar as mudanças históricas que acontecem na igreja.
"Ninguém pode acusar a CNBB de ter se fechado às questões sociais. Não é justo dizer que houve uma involução", disse Castanho.
Ele se disse "muito preocupado com alguns excessos realizados pela CPT [Comissão Pastoral da Terra] e pelo Cimi [Conselho Indigenista Missionário]". (TGO)

FRASE

"O governo continua sem ter a coragem de enfrentar o problema. As áreas [indígenas] deveriam ter sido demarcadas todas até 1988"

FSP, 12/01/2004, Entrevista da 2ª, p. A10

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