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Biopirataria, do sapo ao cipó, prejudica o Brasil

O Globo, Economia, p. 29
08 de Jan de 2006

Biopirataria, do sapo ao cipó, prejudica o Brasil

Governo briga em tribunais internacionais contra multinacionais que registram patentes de produtos originários do país
Sapo kambô, cipó-cruz, andiroba, carqueja, copaíba, açaí. Não se trata de aula de tupi nem de folclore brasileiro, mas sim de uma mostra de produtos genuinamente nacionais que têm sido objeto da cobiça de empresas estrangeiras. Cada um destes animais, plantas e sementes teve seu nome ou princípio ativo registrado indevidamente por companhias estrangeiras.
Substâncias encontradas no Phillomedusa bicolor, como é conhecido cientificamente o sapo kambô, foram registradas em abril de 1996 na Europa pela empresa canadense IAF Biochem International Inc. A Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, fez o mesmo. Mérito dos canadenses ou dos americanos de descobrir as propriedades do sapo amazônico? Os representantes do governo brasileiro duvidam.
Pesquisas mostraram que a secreção do Phillomedusa bicolor contém elementos que podem ser usados como analgésicos ou aplicados no tratamento da isquemia. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas e de fortalecimento do sistema imunológico.
Pelas regras da Convenção de Paris sobre Propriedade Intelectual e o acordo de Trips, da Organização Mundial do Comércio (OMC), para obter o registro de uma patente a empresa precisa provar que o produto traz inovações e tem aplicação industrial. Além disso, segundo a Convenção da Diversidade Biológica, é preciso que o fabricante tenha o consentimento prévio das comunidades donas daquele conhecimento, o reconhecimento legal do governo (que prova que as plantas ou animais não foram retirados ilegalmente do país) e ainda reparta seus lucros com as comunidades.
— Trata-se de um animal encontrado apenas em uma região remota da Amazônia. Não teria sido possível descobrir a utilização das substâncias encontradas nele sem se valer do conhecimento tradicional das comunidades indígenas. Estes registros são questionáveis sob vários aspectos em relação às normas internacionais — afirma um dos representantes brasileiros que acompanha o caso.

Registro lá fora impede uso por grupos nacionais
Governo encaminhará aos órgãos de patente lista de biodiversidade
O que aconteceu com o sapo kambô também ocorreu com o chamado cipó-cruz (Arrabidaea chica), ou cajuru e uma variedade de nomes pelos quais é conhecida no Brasil esta planta com amplas propriedades terapêuticas. Suas folhas são um santo remédio para doenças de pele a cólicas intestinais, passando por conjuntivite, hemorragias, inflamação uterina e icterícia. A francesa Serobiologiques Lab S.A. obteve no Escritório Europeu de Patentes (EPO, na sigla em inglês) a patente sobre a invenção que utiliza o extrato desta planta para a produção de cosméticos ou fármacos.
O registro da composição cosmética ou farmacêutica contendo um extrato de andiroba foi concedido pelo EPO ao laboratório francês Laboratoires de Biologie Végétale Yves Rocher em outubro de 1998. O Escritório de Harmonização para o Mercado Interno (Ohim, na sigla em inglês) — órgão europeu responsável por marcas — também concedeu o registro a empresas estrangeiras de nomes de produtos brasileiros. É o caso do açaí, dado a uma empresa alemã; da copaíba, a uma italiana; e da carqueja, a uma suíça.
Vitória brasileira cria jurisprudência na Europa
Com os registros das patentes e marcas concedidos às multinacionais, qualquer empresa brasileira fica impedida de comercializar ou exportar esses produtos. Os casos são inúmeros e difíceis de serem identificados.
Em fevereiro do ano passado, a missão do Brasil junto à União Européia (UE) conseguiu evitar que o Ohim concedesse à empresa japonesa Asahi Foods o registro da marca cupuaçu. A mesma empresa já havia perdido o direito ao uso da marca no Japão e acabou desistindo de registrá-la nos EUA. A vitória do governo brasileiro abre caminho para outras decisões na disputa por nomes de frutos, sementes e árvores do país.
Mas o Ministério das Relações Exteriores quer evitar que os institutos de propriedade industrial sequer autorizem o uso de marcas e patentes desses produtos. Para isso, está preparando, com outros ministérios, uma grande lista relacionando todos os nomes da biodiversidade segundo as classes de produtos.
O documento será distribuído aos institutos de propriedade industrial do mundo inteiro, que terão mais subsídios para julgar a concessão de registros. A idéia é evitar os longos e geralmente caros processos para a cassação.
Em março de 2005, a Índia conseguiu cassar o registro da amargoseira (Azadirachta indica) obtido pela empresa americana Thermo Trilogy. O caso se arrastou por quase dez anos. Por ter sido o primeiro, o caso foi considerado por especialistas um divisor de águas e deve criar jurisprudência. (Vivian Oswald)

O Globo, 08/01/2006, Economia, p. 29

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