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ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL APOIA REESTRUTURAÇÃO DA FUNAI E COBRA REFORMULAÇÃO DO DECRETO 7056

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28 de Fev de 2010

Nós, lideranças indígenas, dirigentes de organizações indígenas regionais - Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal e Região (ARPIPAN), Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) - congregadas na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) instancia nacional responsável por históricas ações como os Acampamentos Terra Livre e as articulações junto ao Governo Federal que possibilitaram a criação e instalação da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), o GEF Indígena e o processo de construção da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas, cientes da nossa responsabilidade de lutar pela garantia dos direitos dos povos indígenas do Brasil, viemos por meio da presente nos manifestar sobre o Decreto N 7.056 de 28 de dezembro de 2009 que normatiza a reestruturação da FUNAI.

Primeiro - Reconhecemos que o movimento indígena sempre defendeu a necessidade e importância da reestruturação do órgão indigenista, visando a readequação de sua estrutura institucional e quadro funcional às demandas dos povos indígenas, especialmente no tocante à demarcação das terras indígenas, competência principal da instituição.

No entanto, mesmo tendo conhecimento da base legal do ato do Executivo e de outras alegações de ordem política do Governo, rechaçamos a forma como a proposta da reestruturação foi trabalhada, sem o preenchimento de outros requisitos formais de proteção aos direitos indígenas assegurados na Constituição Federal, na Convenção 169 da OIT, na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, bem como na legislação especial (Lei 6001/73) e outras esparsas legislações chamadas de infraconstitucionais.

O Decreto violou esses instrumentos de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Senão vejamos.

A Convenção é mais do que clara ao estabelecer no seu artigo 6 o comando de exigência ou obrigatoriedade, quando os estados tomarem medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente os povos indígenas e seus direitos. Textualmente diz:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimento apropriado e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Lembramos que esta Convenção entrou no ordenamento jurídico brasileiro com força de emenda constitucional por meio do Decreto Legislativo n 143, de 20 de junho de 2002 e que fora promulgada pelo Decreto n 5.051, de 19 de Abril de 2004, tendo importância na defesa dos direitos humanos dos povos indígenas, conforme o §3 da Emenda Constitucional n 45, de 2004 que textualmente diz:

"Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

Dessa forma, senhor presidente, a Constituição Federal é sem sombra de dúvida alguma, a maior lei de um país, devendo todas as outras a ela se subordinar sob pena de serem consideradas inconstitucionais.

Ressaltamos ainda que o Brasil é um dos países que mais lutou pela aprovação e é signatário da Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, por entender que ocorrem graves violações dos direitos dos povos indígenas em todo o mundo, incluindo no Brasil. Porém, o governo ignorou também este instrumento, como verificaremos mais em diante.

Segundo - O Decreto em comento feriu os direitos dos povos indígenas protegidos na Convenção n 169 no primeiro momento por ser esse decreto um ato que mesmo sendo do Poder Executivo está a legislar sobre direitos indígenas, em segundo lugar por trazer em sua matéria modificações substanciais nas esferas administrativas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, órgão máximo da Federação de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.

Tais mudanças afetam diretamente todas as comunidades indígenas do Brasil, pois todas as Administrações Executivas Regionais deixaram de existir, dando lugar a outros tipos de gestão, chamadas no decreto de Diretoria Colegiada, Coordenações Regionais, Comitês Regionais dentre outros nomes dados na estrutura interna.

Certamente não se trata somente de mudança de nomes, pois algumas cidades, capitais e regiões com forte presença indígena vão ficar sem uma representatividade da FUNAI, a título de exemplo ficaram sem unidade da FUNAI Curitiba e Recife. Essas medidas consignadas no decreto afetam diretamente interesses e direitos de muitos povos indígenas em diversas regiões do Brasil.

Face a este contexto é compreensível a reação de lideranças e comunidades indígenas contra a publicação do Decreto, fazendo-se necessária, por parte do Governo, uma postura de acolhida às críticas, ajustando o Decreto, nos casos onde houve falhas na percepção das realidades peculiares de cada povo ou região étnica, sem necessariamente mexer com o propósito fundamental da reestruturação: a adequação da FUNAI para o cumprimento de seu papel institucional na perspectiva de uma nova política indigenista, longe do indigenismo tutelar, autoritário, assistencialista e paternalista.

Terceiro - Não é demais reafirmar que os povos indígenas do Brasil têm maturidade suficiente para discutir, avaliar e decidir juntamente com os entes da Federação questões que lhes digam respeito, pois já não vigora mais no Brasil o regime tutelar orfanológico sobre os índios e suas coletividades.

Os indígenas no Brasil são com efeito titulares de cidadania tendo o direito de participar ativamente da vida política da Nação, bem como a exercer direitos individuais e coletivos de seus interesses próprios competindo a União por força do artigo 231 da CF/88 proteger e fazer respeitar os bens e interesses indígenas.

Assim, evitando tratar os indígenas como pessoas sem direitos e liberdades fundamentais a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas já em seus dois primeiros artigos diz:

Artigo 1. Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos.

Artigo 2. Os povos e indivíduos indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.

Em razão destes e outros já citados requisitos jurídicos, reivindicamos, até para sanar as falhas apontadas no ato administrativo do governo, participação plena em todo o processo que hoje inauguramos, de diálogo e negociação, a respeito dos ajustes que deverão ser feitos ao Decreto, da discussão do Regimento, da implementação da estruturação, incluindo a indicação de coordenadores e a composição de estruturas colegiadas administrativas ou de controle social.

Acreditamos, por isso, ser necessário assegurar um período e cronograma de reuniões nas distintas regiões, para poder esclarecer suficientemente o conteúdo do Decreto e por outro lado recolher as demandas específicas das comunidades voltadas a aprimorar a reestruturação da FUNAI.

Contudo, já queremos pontuar algumas questões que precisam ser observadas no processo de adequação do Decreto.

O Decreto em questão embora pareça trazer em sua substancia forte conotação coletiva, quando transforma o órgão de presidencialista a um colegiado em sua diretoria, e ao criar comitês regionais deixando a prever a participação indígena, o faz de forma muito tímida. Poderia ter sua composição desde o inicio de forma paritária ao contemplar a participação indígena na gestão. A nossa expectativa é que o novo Regimento possa ir muito além, nas esferas da coletividade e de participação indígena na gestão, desde a instancia máxima às unidades regionais e locais.

É lamentável que o atual Decreto em plena vigência da nova Constituição e do ingresso de instrumentos internacionais de proteção aos direitos dos povos indígenas diz somente:

Art. 8o A Diretoria Colegiada é composta pelo Presidente da FUNAI, que a presidirá, e por três Diretores.

§ 5o A critério do Presidente, poderão ser convidados a participar das reuniões da Diretoria Colegiada gestores e técnicos da FUNAI, do Ministério da Justiça e de outros órgãos e entidades da administração pública federal, estadual e municipal, representantes de entidades não-governamentais, bem como membros da Comissão Nacional de Política Indigenista - CNPI, sem direito a voto.

Lembramos, no entanto, que a Comissão Nacional de Política Indigenista embora seja na forma paritária com a participação de indígenas e de agentes do governo é uma instituição pública do próprio Poder Executivo e não é instancia "pura" de representação dos indígenas e de suas coletividades. E, pior, mesmo ela participando de reunião poderá participar se convidada e sem direito a voto. Mera participação formal no âmbito das possibilidades.

Poderia o Decreto ter ido alem, inovado ao reservar vagas especificas para indivíduos indígenas, como vem fazendo outros órgãos da Administração Pública como a própria Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e mesmo o Ministério da Justiça que ao contratar empresas ou consultorias só aceitam empresas composta por boa parte integrante de afro-descendentes.

No "pacote" do Decreto em análise veio o concurso público visando atender a nova estrutura da FUNAI, nem de longe vislumbrou o ingresso de cidadãos indígenas em seu quadro, como vem fazendo inúmeros órgãos dos estados da Federação que abriu vagas para professores indígenas ou mesmo a Fundação Nacional de Saúde ao contratar agentes indígenas de Saúde mediante procedimento próprio. Andou mal, muito mal o Decreto nessa questão. É tempo ainda de se editar um edital complementar ao concurso a contemplar a participação indígena. A FUNAI estará dando um passo além, quando o próprio Poder Legislativo em ambas as casas estão discutindo e pronto a aprovar mediante lei a reserva de vagas em todos os concursos públicos para integrantes dos povos indígenas.

Do Patrimônio, Bens e Renda do Patrimônio Indígena trazida pelo Decreto, trazemos abaixo o que diz seu texto original em seguida breves considerações a respeito.

DO PATRIMÔNIO E DOS RECURSOS FINANCEIROS

Seção I

Dos Bens e Renda do Patrimônio Indígena

Art. 26. Constituem bens do Patrimônio Indígena:

I - as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas ou suas comunidades;

II - o usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas pelos indígenas ou suas comunidades e nas áreas a eles reservadas; e

III - os bens móveis ou imóveis, adquiridos a qualquer título.

Art. 27. A renda indígena é a resultante da aplicação de bens e utilidades integrantes do

Patrimônio Indígena.

§ 1o A renda indígena será preferencialmente reaplicada em atividades rentáveis ou utilizada em programas de promoção aos indígenas.

§ 2o Os bens adquiridos pela FUNAI, à conta da renda do Patrimônio Indígena, constituem bens deste Patrimônio.

Art. 28. O arrolamento dos bens do Patrimônio Indígena será permanentemente atualizado, procedendo-se à fiscalização rigorosa de sua gestão, mediante controle interno e externo, a fim de tornar efetiva a responsabilidade dos seus administradores.

Art. 29. Será administrado pelos indígenas ou suas comunidades os bens adquiridos por eles com recursos próprios ou da renda indígena, ou que lhes sejam atribuídos.

Veja que no Decreto são bens do Patrimônio Indígena as terras tradicionalmente ocupadas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e todas as utilidades existentes nas terras ocupadas pelos indígenas ou suas comunidades e nas áreas a eles reservadas.

Enfim todos os bens nas terras indígenas incluindo o usufruto exclusivo são considerados bens indígenas, portanto a gestão/administração esta sob a tutela da FUNAI. Em nenhum momento fala da gestão compartilhada. Somente no artigo 29 diz que Será administrado pelos indígenas ou suas comunidades os bens adquiridos por eles com recursos próprios ou da renda indígena, ou que lhes sejam atribuídos.

O Decreto não reconhece em momento algum à autodeterminação, á autonomia e o autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais como estão garantidos nos artigos 3 e 4 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Interessante notar que nas esferas internacionais o Brasil se demonstra guardião máximo dos direitos indígenas votando, fazendo defesa para que os países votem de forma favorável aos direitos indígenas, já no âmbito nacional faz totalmente o contrario, deixando os indígenas de lado, fora de todas as discussões principalmente daqueles assuntos que dizem diretamente respeito aos direitos indígenas.

Se a intenção do governante brasileiro não for para "inglês ver", deverá tanto na adequação do Decreto quanto na elaboração do Regimento Interno da FUNAI detalhar e contemplar a participação indígena na gestão compartilhada dos bens e outras titularidades do território indígena. Deve ir além, dizer quais bens e interesses são assuntos internos e locais para os quais os índios devem exercer a autodeterminação, a autonomia e o autogoverno na forma da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Após o exposto, Senhor Presidente, se não contemplados, pode se afirmar que os povos indígenas, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo, na forma do artigo 232 da Constituição Federal de 1988.

Podem também os povos indígenas, representarem contra o Decreto no Supremo Tribunal Federal por não verem seus direitos garantidos na Convenção n 169 da OIT. Ressaltando que a Convenção é um instrumento de direitos humanos internacionais e por força da Emenda Constitucional n 45 tem força equivalente a de emendas constitucionais.

Não sendo o bastante poderão os indígenas representar contra o Estado Brasileiro por violação de seus direitos reconhecidos internacionalmente. A representação poderá ser perante os órgãos das Nações Unidas ou perante os órgãos dos Estados Americanos - OEA.

Todavia, melhor será se o governo ajustar o Decreto a fim de contemplar os direitos violados e garantir a participação indígena conforme requerido insistentemente por nós, inclusive neste documento.

Acreditamos, por fim, que o Governo, como nós, priorize a via do diálogo e da negociação em prol do cumprimento de seu papel constitucional de zelar pela proteção dos direitos indígenas e em sintonia com o regime democrático que rege no nosso país.

Atenciosamente,

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB

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