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Aparelhamento cruel

OESP, Notas e Informações, p. A3
20 de Mar de 2005

Aparelhamento cruel

O médico Paulo Daniel Morais trabalha com comunidades indígenas de Roraima e integra o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à cúpula soi-disant "progressista" da Igreja Católica (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB) e, portanto, insuspeito de simpatia pela oposição dita "neoliberal" do governo federal petista. Com a autoridade de quem conhece o assunto e sofre o problema na pele, esse técnico fez um diagnóstico preciso do câncer burocrático que ajuda a matar as crianças de inanição em reservas indígenas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O alvo de sua crítica é a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), encarregada de dar assistência aos índios. "As coordenações estaduais e chefias distritais foram entregues a políticos, que às vezes se preocupam mais em agradar padrinhos políticos que as comunidades indígenas", disse.
Já há tempos esse setor da burocracia federal é cobiçado por políticos das regiões onde estão as reservas indígenas, por causa de sua atuação próxima das prefeituras locais. Para reduzir os malefícios dessa pressão, o ex-ministro da Saúde José Serra estabeleceu critérios técnicos para a ocupação de cargos do órgão. Em maio de 2000, o Decreto no 3.450, assinado pelo então presidente Fernando Henrique, determinava que os comandos da autarquia tinham de ficar a cargo de servidores do quadro de pessoal permanente da própria Funasa ou, no máximo, do Ministério da Saúde. E com comprovada experiência na tarefa que lhes cabe, de coordenação. Assim que assumiu, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratou de modificar esse decreto assinando outro, o de n.'4.615, acrescentando-lhe o advérbio de modo "preferencialmente". Abriram-se, então, as portas para gente de fora, permitindo o aparelhamento de órgãos subordinados ao Ministério da Saúde por militantes petistas e aliados indicados por critérios exclusivamente políticos.
A oportunista introdução dessa brecha semântica gerou o escândalo do desabastecimento de remédios no Instituto Nacional do Câncer (Inca), em agosto de 2003. E agora está produzindo as funestas conseqüências sofridas pelas crianças índias das reservas de Dourados (MS) e Campinápolis (MT), que morrem de desnutrição, agravada pela incapacidade da Funasa de evitar a tragédia. De suas 34 diretorias, 21 foram distribuídas pela base política aliada: 13 ao PT, 4 ao PTB e 4 ao PMDB. Segundo o médico Paulo Daniel Morais, o coordenador estadual da Funasa em Roraima foi escolhido pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da comissão especial da famigerada Medida Provisória n.o 232, que deverá ser premiado com um ministério na reforma do primeiro escalão que está para ser anunciada e é tido como histórico desafeto dos índios.
Esse loteamento maligno é agravado pelo uso do órgão responsável pela saúde do que a esquerda chama de "povos da floresta" como instrumento de represália política contra membros das bancadas de apoio ao governo que se rebelem contra suas decisões no Parlamento. O afastamento do ex-diretor-executivo Antonio Carlos Andrade logo no primeiro ano do governo Lula foi atribuído à abstenção de sua mulher, deputada Maninha (PT-DF), na votação da Reforma da Previdência.
Ao uso político de um órgão técnico, cujo trabalho tem um grande interesse social, agora se acrescentam denúncias de mordomia, insensibilidade e inércia burocráticas. O líder do PFL no Senado, José Agripino (RN), trouxe a lume dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) segundo os quais a Funasa gastou três vezes mais em 2004 com viagens de seus funcionários (R$ 28 milhões) do que com remédios para os índios (R$ 8 milhões). A esse quadro chocante foi depois acrescida a informação de que a Funasa pagou R$ 6.900 ao S.R da Silva restaurante (conforme a explicação oficial, em marmitas doadas aos índios timbiras e guajajaras) e R$ 87.901,10 a MF de Lima, uma churrascaria do Maranhão, cuja carne, segundo a Funasa, nutre os índios internados no município de Barra da Corda, no Maranhão.
Convocado ao Congresso para explicar essas contas, o ministro da Saúde, Humberto Costa, dado como forte candidato à degola na reforma ministerial, já antecipou sua linha de defesa com uma justificativa , tecnicamente correta, mas desumana: "As mortes (das crianças índias) estão dentro do número que normalmente acontece."

OESP, 20/03/2005, Notas e Informações, p. A3

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