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Antropologia de urgência

Gazeta Mercantil (Rio de Janeiro - RJ)
26 de Ago de 2001

Ao lado das modestas casas de madeira da aldeia Vendaval, em meio à selva amazônica, se destaca uma casa de alvenaria, tão branca que parece construção recente. Faz apenas sete meses que a vila, habitada por índios ticunas, ganhou seu posto de saúde. Até pouco tempo atrás, ficar seriamente doente ali significava viajar um dia de canoa até o hospital mais próximo. Como eles costumam dizer, espantando o visitante desavisado, 'a gente ia até São Paulo', referindo-se não à capital paulista, mas à pequena São Paulo de Olivença. Agora bastam alguns passos para chegar ao posto de saúde. Construído com verba da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o ambulatório é administrado pela Organização Toru Mau, associação que representa o povo ticuna no Alto Solimões, Amazônia. Apesar do avanço ser grande, a aproximação ainda maior entre médicos e pajés causa uma série de conflitos culturais. Antes de exercer a medicina, os médicos da selva precisam entender também de antropologia.A inauguração do posto é um exemplo peculiar da nova política de saúde indígena do país. O objetivo principal é entregar cada vez mais aos povos indígenas a gerência dos recursos de saúde. A Organização Toru Mau, sediada em Benjamin Constant (AM), fundada no final do ano passado, tem como diretores índios ticunas. Desde 1999 as organizações indígenas têm autonomia para decidir como gerenciar sua verba, desde que sigam um modelo de gestão aprovado pela Funasa.A população indígena do país, estimada em 350 mil pessoas de 210 povos, foi dividida em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Eles são administrados por um conselho, que pode ser uma diocese, prefeitura ou ONG. As entidades têm autonomia para adaptar as normas da Funasa à realidade de sua região, respeitando a diversidade cultural e política de cada distrito. Outro avanço é o aumento no valor dos recursos destinados à saúde indígena. Em 1998, este valor foi de apenas R$ 20 milhões. Em 2000 e neste ano, a verba saltou para R$ 129 milhões. 'Com os convênios, a Funasa repassa os recursos, mas não é mais responsável pela execução dos projetos, que costuma ser muito lenta em órgãos federais', diz Ubiratan Pedrosa Moreira, diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa.Assim, no Distrito do Alto Solimões, a Organização Toru Mau (OTM) administra a partir da cidade de Benjamim Constant uma rede de atenção básica, em que se destaca o papel dos pólos-bases. Em comunidades maiores, como Vendaval, são construídos pólos-bases, postos de saúde onde trabalha uma equipe multidisciplinar composta por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e dentista. Os casos graves são atendidos nos centros de referência, que podem ser alguns dos pólos-bases ou a rede do SUS. Apesar disso, os índios costumam reclamar de discriminação. 'Por exemplo, eles querem que os pajés possam fazer seus rituais nos hospitais', diz Celina Baré, índia baré e coordenadora do convênio entre a Funasa e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entidade que é responsável pelo atendimento na região de Manaus.Para receber os índios que precisam sair de suas aldeias já existem algumas Casas de Saúde do Índio, para alojar os pacientes e seus acompanhantes durante o tratamento. O serviço inclui também o acompanhamento dos índios em consultas e exames, inclusive para facilitar a comunicação, já que muitos não falam português. Mesmo nos postos de saúde das aldeias, os agentes de saúde desempenham um papel importante como tradutores.O avanço em termos de uma busca pela qualidade de vida tem sido grande, segundo atestam os próprios índios. Mas os problemas ainda estão muito longe de ser resolvidos. A questão da saúde indígena na Amazônia vai muito além do atendimento laboratorial. Algumas comunidades reclamam que as equipes de saúde nem sempre respeitam seus costumes, ou, pior, queixam-se de que o número de profissionais contratados não consegue atender a demanda. Os DSEI têm dificuldade para conseguir levar profissionais para trabalhar em lugares tão distantes. E é ainda mais complicado encontrar aqueles identificados com a questão indígena, como a médica Flávia Padilha, carioca de 28 anos que decidiu trocar a vida da cidade grande para lutar pelos direitos indígenas e acabou fundando a Toru Mau. Ela agora trabalha e mora 20 dias do mês em Belém dos Solimões, aldeia ticuna de três mil habitantes, uma das maiores do país, não muito distante de Vendaval.E nenhum médico começa a trabalhar numa comunidade sem antes receber um treinamento não apenas sobre o perfil epidemiológico dos locais onde irão atender, mas também sobre a cultura dos povos indígenas. É fundamental, como mostra a experiência de Flávia Padilha em Belém dos Solimões. Há quase um ano na aldeia, ela só foi chamada para ajudar uma vez, em um parto. Mesmo com uma médica na aldeia, o nascimento dos bebês ainda é uma atribuição das parteiras, tradição que tem seus mistérios, já que Flávia não consegue saber com certeza quais são as parteiras do lugar. 'Elas se escondem, mas com o trabalho de conscientização que fazemos sobre cuidados de higiene, algumas vezes recebemos pedidos de materiais, como luvas.' Além das parteiras, Flávia sabe que a comunidade se trata com ela mas procura também pelo pajé, e ela respeita essa opção. Ela entende que não pode mudar a cultura dos índios, apenas contribuir para que tenham uma vida mais saudável. Mas nem todas as comunidades tem tido uma experiência tão positiva e a falta de respeito à cultura dos nativos foi uma das queixas apontadas no relatório final da III Conferência Nacional de Saúde Indígena. O fato de morar na comunidade - e sofrer com alguns problemas dos índios, como falta de água potável, a dependência de um gerador e a dificuldade de comunicação - ajuda a conquistar a confiança da população e até entender seu perfil epidemiológico. Os índios sofrem de maneira geral com infecções respiratórias agudas, diarréia e verminoses, desnutrição e tuberculose. Segundo o relatório 'A Saúde no Brasil', produzido pela Opas/OMS em 1998, a mudança no estilo de vida levam ao aumento do alcoolismo e das lesões acidentais violentas na maioria das comunidades indígenas. Em algumas aldeias, o número de suicídios também tem crescido. Em Belém não é diferente, o alcoolismo e as brigas violentas que se seguem às bebedeiras sempre levam pacientes ao posto. Com esta preocupação, Flávia está tentando formar um grupo de auto-ajuda para tratar do tema. Outra grande preocupação são as doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS. As mais afetadas são as populações em que há maior contato com os brancos. Por isso algumas organizações lutam contra a invasão de garimpeiros, e até mesmo da construção de unidades militares em áreas de fronteira.Devido às particularidades do povo indígena, não é apenas a existência de um atendimento médico que garante a boa saúde da população. Segurança alimentar, saneamento básico e, conseqüentemente, a preservação da natureza são outras garantias de saúde. Garimpos, construção de hidrelétricas, pesca predatória e desrespeito às linhas de demarcação das terras indígenas são fatores que contribuem para a diminuição da oferta de alimentos, fazendo da desnutrição um problema grave em muitas aldeias. A implantação de sistemas de saneamento básico compatíveis com cada aldeia é outro ponto que foi incluído na pauta de saúde da Funasa, já que muitos dos problemas são causados pela má qualidade da água. Os rio são muito utilizados, mas a mesma água usada para beber recebe dejetos e serve para banhos. A contaminação é freqüente, por isso em muitos locais poços artesianos são perfurados e igarapés são canalizados. Além disso agentes indígenas estão sendo treinados para operar o sistema de abastecimento.Os problemas são muitos e as ações positivas ainda estão no início. Mesmo assim, a conclusão da III Conferência de Saúde Indígena foi bastante contundente. 'Apesar de dificuldades como a falta de recursos humanos, problemas de transporte e de relação intercultural, parece que este é o caminho', diz Pedrosa

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