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As águas de janeiro - e suas lições

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
06 de Fev de 2004

As águas de janeiro - e suas lições

Washington Novaes

Não foram as águas de março fechando o verão, como compôs Tom Jobim e cantou Elis Regina. Foram as águas de janeiro iniciando um verão retardatário que deixaram, no fim do mês, mais de 100 mil desabrigados no País, muitas centenas de mortos, prejuízos incalculáveis, várias unidades da Federação em estado de emergência, as populações ribeirinhas, principalmente do São Francisco, apavoradas com a abertura das comportas dos reservatórios de hidrelétricas e com o rompimento de açudes, a cidade de São Paulo ameaçada de racionamento dentro de casa e quase se afogando nas ruas inundadas, com trânsito paralisado (embora no mês só tenha chovido 13% mais que a média histórica). Um retrato da nossa incompetência e irresponsabilidade na gestão dos recursos hídricos.
Talvez se argumente que em parte dos casos nada poderia ter sido feito. Em Fortaleza, por exemplo, choveram 250 milímetros numa noite e cerca de 350 no mês - quando a média do mês tem sido de 85,1 milímetros. Uma quantidade brutal de água: 250 milímetros numa noite significam 250 litros por metro quadrado, 250 milhões de litros por quilômetro quadrado - e quase tudo sobre solo impermeabilizado.
Tão assustador quanto é pensar que, com a abertura das comportas das hidrelétricas no Rio São Francisco, a vazão passou de 1,2 milhão de litros por segundo para 5 milhões, 316% mais. Que poderia acontecer nas áreas ribeirinhas à jusante, áreas de inundação natural e de risco ocupadas há décadas com a complacência de administradores públicos?
Mais assustador ainda é ver a capital paulista literalmente debaixo de água, enquanto corre nos jornais uma polêmica: o rodízio no abastecimento doméstico de água deve começar já ou não? Porque o nível do reservatório Cantareira - que abastece 9 milhões de pessoas - terminou o mês com 5,5% de sua capacidade, quando precisaria estar com 20% e há um ano estava com 44,7%.
Para complicar, como já se comentou aqui, São Paulo (que só tem 15% de água que nasce em seu território) terá de renegociar com a Bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí a utilização de 31 metros cúbicos por segundo de suas águas, como faz há décadas.
No meio de tantos dramas, algumas boas notícias. Primeiro, que o governo federal não concederá recursos para reconstruir casas em áreas de risco, só fora. Segundo, que se dá como certa a aprovação, agora em fevereiro, na Assembléia Legislativa paulista, da lei que permitirá a cobrança por todos os usos da água - pois a valoração econômica certamente ajudará a implementar programas de conservação do recurso. Terceiro, que finalmente se conseguirá pôr em vigor a mesma cobrança na bacia do Paraíba do Sul em 2005.
Finalmente, que a Sabesp, que administra o abastecimento da Grande São Paulo, quer implantar um sistema de metas para racionalizar o consumo.
Isso exigirá mudar o sistema obsoleto que permite ter um único hidrômetro por edifício, rateando a conta pelo número de apartamentos - e desestimulando que uma unidade faça, sozinha, um esforço maior de economia.
Com um hidrômetro por unidade, cada uma responderá pelo seu consumo e seu eventual desperdício. Mas será preciso ir além, definir faixas mais diferenciadas de consumo, para estimular a economia. Hoje, há muita diferença de consumo permitido entre uma faixa e outra de tarifa.
Pode-se ir mais adiante. A Cidade do México, por exemplo, assustada com o rebaixamento de seus aqüíferos, por causa do uso excessivo, além de aumentar as tarifas, exigiu a substituição de equipamentos domésticos desperdiçadores - como caixas de descarga por latrinas (as novas com capacidade máxima de 6 litros). Só com esta última providência, conseguiu em dois anos a substituição em 350 mil residências, com uma economia de 28 milhões de metros cúbicos anuais de água, suficientes para abastecer 250 mil pessoas com 300 litros diários para cada.
Não é só. Será preciso aplicar na capital paulista a legislação que já exige - mas quase não é cumprida - implantar sistemas de retenção de águas de chuva nas novas construções para reduzir o volume que se acumula sobre o asfalto das ruas e contribui para inundações. Se possível, ampliar progressivamente a exigência para áreas já construídas.
O sistema oficial de crédito terá de abrir financiamentos para projetos de manutenção das redes de água, muito mais baratos que novas captações. É inacreditável que continuemos desperdiçando, por vazamentos e furtos, 40% (média) da água que sai das estações de tratamento.
As cidades brasileiras precisam aprender a respeitar as áreas de mananciais, as margens de rios, as áreas de inundação (a Alemanha está devolvendo seus rios ao leito antigo). Implantar nelas parques e áreas de preservação - em lugar de autopistas.
É preciso repensar a legislação para as áreas agrícolas, principalmente para a irrigação. Não tem cabimento desperdiçar mais de 50% de uma água escassa em pivôs centrais, quando já há métodos muito mais eficientes. E, se se conseguir economizar pelo menos 10% - têm dito os especialistas -, ter-se-á água equivalente a três vezes todo o consumo de toda a população urbana do País.
É indispensável mais rigor com o uso industrial da água. E é possível. Os Estados Unidos reduziram seu consumo em um terço em 40 anos, quando a produção industrial quadruplicou.
Não se pode retardar um avanço do País na montagem de um sistema muito mais amplo de informações sobre meteorologia, vazões do sistema hídrico, perdas em função de desmatamentos e uso do solo, evaporação, etc. São quase diárias as advertências dos cientistas sobre mudanças climáticas - inclusive localizadas - e a necessidade de nos adaptarmos a elas.
A crise da água - deixou muito claro o relatório da ONU para o Fórum Mundial de 2003 - é essencialmente uma crise de gestão. Nossas estruturas institucionais são fragmentadas, corporativas ou sobrepostas, em conflito entre elas. É preciso mudar. Estimular a participação de todos os usuários.
Dar transparência aos sistemas. Administrar com eqüidade, coerência, confiabilidade.
É urgente dar conseqüência aos diagnósticos.

Washington Novaes é jornalista.

OESP, 06/02/2004, Espaço Aberto, p. A2

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