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11 de Out de 2024
Acordo que proíbe compra de grãos de áreas desmatadas da Amazônia está sob ameaça; entenda
Leis em Mato Grosso e Rondônia vão impedir concessão de benefícios fiscais a empresas que estiverem dentro do acordo, que proíbe venda de soja de áreas desmatadas; para exportadoras, medida vai prejudicar o Brasil no exterior
José Maria Tomazela
11/10/2024
A moratória da soja, um acordo que proíbe desde 2008 a compra de grãos de áreas desmatadas da Amazônia, está sob fogo cerrado. Nesta quarta-feira, 9, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso aprovou projeto de lei impedindo a concessão de incentivos fiscais e terrenos públicos a empresas que estiverem organizadas em acordos que restrinjam a competitividade do produto mato-grossense. O acordo em questão é a moratória da soja e a medida atinge principalmente as empresas que comercializam o grão (tradings), especialmente para o mercado externo.
Para a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), que representa gigantes do agronegócio - como Cargill, Bunge, ADM, AMaggi e Cofco - e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), atacar a moratória da soja vai prejudicar a imagem do Brasil no exterior e pode afetar as vendas do agronegócio. Os produtores de soja, no entanto, afirmam que o acordo é restritivo demais - além do que determina o próprio Código Florestal, que permite a abertura de até 20% das áreas de floresta na Amazônia legal (ou seja, quem desmata dentro desse limite estaria de acordo com a legislação brasileira).
O projeto de Mato Grosso ainda precisa ser sancionado e regulamentado pelo governador Mauro Mendes (União Brasil), que já se posicionou publicamente contra a moratória. O Estado é o maior produtor de soja do Brasil, com 40 milhões de toneladas anuais, e se inspirou em medida semelhante, já adotada pelo vizinho Estado de Rondônia, considerado um produtor pequeno, colhendo 2,1 milhões de toneladas do grão por ano.
A moratória da soja faz parte de um acordo internacional celebrado em 2006 entre os representantes das grandes indústrias e tradings do setor de não comercializar a soja produzida em áreas da Amazônia desmatadas após 2008. O monitoramento dessas áreas é feito por satélite e flagra desmatamentos com mais de 25 hectares (25 campos de futebol).
Pela acordo, sete Estados da Amazônia legal brasileira são monitorados. Mas, além de Mato Grosso e Rondônia, em outros dois - Pará e Tocantins - avançam iniciativas semelhantes de limitar a moratória. A mobilização começou também entre deputados estaduais do Amazonas, Roraima, e Maranhão.
A discussão acontece em um momento delicado. Uma lei aprovada pela União Europeia, prevista para entrar em vigor no início do ano que vem (embora haja uma discussão para ser adiada em um ano), proíbe a entrada no bloco europeu de commodities produzidas em áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020. Além disso, o Brasil vai sediar no ano que vem a Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em Belém.
Operação das empresas em risco
Para o presidente executivo da Abiove, André Nassar, se o PL aprovado em Mato Grosso for sancionado pelo governador, pode levar a uma migração de empresas para outros Estados. "Em Mato Grosso o impacto pode ser muito grande. É o Estado com maior capacidade de processamento de soja, com muitos investimentos das nossas empresas lá, e também empresas de biodiesel", disse. "Perder o incentivo fiscal pode colocar em risco a operação das empresas."
Sobre o argumento de que o acordo está acima do Código Florestal, Nassar lembrou que o acordo não foi pautado pela legislação. "A moratória nunca foi uma iniciativa para o desmatamento legal, sempre foi para o desmatamento zero. Quando ela foi criada, não tinha o código atual e havia desmatamento muito alto na Amazônia. Quando veio o código, foram feitos alguns ajustes, mas se optou por manter o desmatamento zero", disse.
Os números da Abiove indicam que, depois da moratória, o desmatamento no bioma caiu drasticamente. Segundo a associação, a taxa de desmate em municípios amazônicos, que tinha média de 10,6 mil km² por ano antes do pacto, caiu para menos de 3 mil km² anuais após a moratória.
Nassar avalia que a moratória criou uma marca apontando que a soja brasileira levada ao mercado nacional e internacional não foi produzida em área desmatada de floresta. "Essa marca protege a soja brasileira. A área plantada com soja no bioma amazônico cresceu mais de três vezes, mais do que em qualquer outro lugar do Brasil."
Ele reforçou que a área de soja com venda embargada pela moratória é muito pequena. "Os produtores questionam porque não conseguem vender, mas a gente tem tentado convencer os produtores que, sem a marca criada pela moratória, nós teríamos perdido mercado."
Acima da lei
O fim do acordo, no entanto, é defendido pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), principal entidade do setor, e por suas regionais. O presidente da Aprosoja Mato Grosso, Lucas Costa Beber, comemorou a aprovação do projeto pelo parlamento estadual. "Esperamos que não haja nenhum veto. Fica na mão do governador a regulamentação desse projeto que nós acreditamos que trará justiça aos produtores e desenvolvimento social para Mato Grosso", disse.
Segundo ele, o acordo se sobrepõe tanto à Constituição Federal quanto ao Código Florestal Brasileiro e restringe a competitividade do produtor mato-grossense. Beber afirma que muitos municípios do bioma amazônico empobreceram depois que o acordo entrou em vigor. "Estamos sendo perseguidos politicamente, especialmente em questões que afetam os produtores. Somos os únicos produtores que preservam áreas agricultáveis e mecanizáveis, mas querem travar nosso desenvolvimento", disse.
O projeto aprovado, de iniciativa do deputado Gilberto Cattani (PL), dispõe que as empresas que estiverem organizadas em acordos ou tratados que restrinjam a competitividade do produto mato-grossense, a oferta desse produto, ou criem obstáculo para a livre iniciativa, não farão jus aos incentivos e à concessão dos terrenos públicos.
O texto mira especialmente as tradings, que vendem a soja brasileira para o exterior, e se assemelha ao do projeto aprovado pela Assembleia Legislativa de Rondônia no dia 4 de junho, e já sancionado. Os deputados favoráveis ao projeto de Rondônia alegaram que o objetivo seria "promover a livre iniciativa, o desenvolvimento dos municípios e a redução das desigualdades sociais", mas não estabeleceram a relação dessas metas com a retirada de incentivos a empresas que seguem o pacto.
Durante a sessão de votação, o deputado Pedro Fernandes (PRD) usou a tribuna para enfatizar que 64% das terras do Estado são florestas, reserva legal, unidades de conservação ou terras indígenas. "É um absurdo essas ONGs receberem tanto recurso internacional, não prestarem contas desse dinheiro e usarem para ativismo ambiental dentro da região amazônica", disse.
Com a lei em vigor, as empresas interessadas em obter os incentivos, como redução de impostos, crédito subsidiado e cessão de terras, deverão apresentar com o requerimento uma declaração afirmando que não participam de acordos ou compromissos que restringem a produção, como seria o caso da moratória. A falsidade ou inexatidão da declaração sujeitará as empresas a "penalidades severas", incluindo a revogação imediata dos benefícios, a devolução dos recursos ao estado e indenização pelo uso indevido.
Benefícios da moratória
Especialistas apontam como benefícios da moratória a melhora no equilíbrio ambiental, reduzindo o fogo nas florestas, e a contenção do desmatamento. Afirmam que, quando o planeta já vivencia os efeitos das mudanças climáticas, as florestas desempenham papel vital na regulação do clima global. A moratória também contribui para melhorar a imagem do agronegócio brasileiro no exterior. Compradores internacionais, como a União Europeia, exigem garantias de que o produto não esteja vinculado ao desmatamento, sobretudo da Amazônia.
Para o diretor geral da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), Sérgio Mendes, a moratória da soja é determinante, até os dias de hoje, para evitar o desmatamento da Amazônia. "Nestes 18 anos de vida aparece como o único programa em curso que se revelou capaz de evitar o desflorestamento, segundo estudo conduzido por grupo mundial de cientistas avalizado por Oxford", disse. "Essa é uma conquista do Brasil, onde o produtor brasileiro teve papel preponderante na sua efetivação porque revelou-se capaz de cumprir regras internacionais de preservação."
Mendes avalia que as iniciativas contra a moratória podem afetar a imagem do agro brasileiro no exterior. "Opor-se a esses 18 anos de luta nos parece um risco enorme, capaz de comprometer a imagem do país, de grande provedor de alimento para o mundo que, em última análise, é nossa verdadeira vocação", disse ao Estadão.
O diretor técnico da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Bruno Lucchi, considera, porém, que no cenário atual da agricultura brasileira a moratória não é mais necessária. "O objetivo dela era ter segurança de que a produção em área desmatada não seria comercializada ou exportada. Na época se justificava um controle como este, pois ainda não tinha o CAR (cadastro ambiental rural) e o atual Código Florestal, que foi estabelecido em 2012. Depois disso, houve uma modernização na fiscalização via satélite que avalia com precisão se está havendo desmatamento na propriedade. Nossa visão é que, a partir de termos o Código Florestal robustecido e essas tecnologias validadas, não precisa mais ter a moratória."
Lucchi disse que o País tem instrumentos consolidados que conseguem dizer se há irregularidades nas áreas de produção e aplicar a lei. "A moratória vai além da lei e engessa toda a propriedade. No bioma amazônico o produtor pode abrir 20% da área e preservar 80%. Pelo código, o produtor que só abriu 10, pode abrir mais dez, mas pela moratória ele fica impedido de comercializar a produção, o que vai além da lei."
O diretor da CNA pondera que, em um protocolo privado, o produtor teria algum tipo de vantagem, como um bônus ou diferenciação de preço, por manter a área preservada. "Na moratória não, quem assina são as tradings e as Ongs, e o produtor, que em nenhum momento faz parte desse acordo, está sendo obrigado a cumprir, o que é inconcebível. Se quiser evitar que expanda sua área de produção na região amazônica, mesmo tendo permissão legal, é preciso bonificar o produtor por esse ativo ambiental", afirmou.
Momento de mudança pode ser inoportuno
O cerco à moratória da soja acontece a pouco mais de um ano da COP-30, que será realizada em Belém. A Aprosoja Brasil divulgou que levará à conferência, entre outros temas, os desafios a serem enfrentados com a entrada em vigor da lei antidesmatamento europeia. "Somos líderes na adoção do plantio direto, líderes em produtividade agrícola. Os nossos produtores são os que mais preservam o meio ambiente", disse Maurício Buffon, presidente da entidade, durante evento em São Paulo.
Para Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura, professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV) e colunista do Estadão, o tema é "complicado, pois há grandes interesses econômicos nesse tabuleiro". Ressalvando que não tem opinião formada sobre possível impacto da suspensão da moratória por alguns Estados, ele pondera que "talvez seja interessante discutir o assunto, dado o tempo decorrido e as mudanças das regras comerciais".
Ele só não sabe se o momento atual é oportuno. "Estamos muito perto da COP-30. Isso poderia 'dominar' o evento, inibindo outros temas muito mais importantes para o País, como mercado de carbono, bioenergia, bioeconomia ou até mesmo sistemas de produção agropecuária. Sem falar no famigerado apoio financeiro dos países ricos para a descarbonização e a transição energética", disse.
Nassar, da Abiove, acredita que, mais do que as empresas, as medidas tomadas por Rondônia e Mato Grosso, se mantidas, prejudicam o governo brasileiro. Ele lembrou que há também um questionamento sobre a moratória da soja no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). "Com as leis estaduais e uma discussão no Cade sobre a moratória, quem é contra o setor agrícola e gosta de bater no Brasil vai usar isso oportunisticamente", disse. "É muito provável que tenha uso político disso contra o Brasil."
Procurado, o Ministério da Agricultura não se pronunciou sobre a questão. O Ministério do Meio Ambiente, disse, em nota, que "avalia os impactos potenciais da medida (os projetos aprovados em Mato Grosso e Rondônia) e, eventualmente, a possibilidade de pedido de ação de inconstitucionalidade por meio da Procuradoria-Geral da República".
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