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Waimiri-Atroari, um povo no caminho da Ditadura

Caci - http://caci.rosaluxspba.org
Autor: Marcelo Zelic
11 de Out de 2016

O povo Waimiri-Atroari quase desapareceu na década de 1980. Habitantes originais da região localizada entre Manaus, no Amazonas, e Boa Vista, em Roraíma, eles ficaram no caminho do discurso de "progresso" e foram atropelados pela Ditadura. Com população original estimada em 6.000 pessoas durante os primeiros levantamentos em 1905, ou cerca de 3.000, no começo da década de 1970, eles foram reduzidos a apenas 350 habitantes em 1983, conforme dados da FUNAI.

A redução dramática acontecida na década de 1970 está relacionada à construção da rodovia BR-174, que liga as duas capitais, a projetos de mineração e à construção de hidrelétricas que alagaram parte do seu território original. No mapa ao lado, organizado como parte do projeto Cartografia de Ataques Contra Indígenas (Caci), é possível identificar a estrada (em vermelho), as usinas hidrelétricas de Pitinga e Balbina, e duas áreas reduzidas reservadas para este povo durante a Ditadura. A primeira, a mais clara, foi a criada por decreto pelo ditador Emílio Garrastasu Médici em 1971, e acabou invadida pela Mineradora Taboca. A segunda área, em amarelo claro, é a na qual os indígenas acabaram reduzidos após o também ditador João Figueiredo atualizar a delimitação da reserva em 1981, beneficiando a empresa. A área com textura transparente é onde, estima-se, este povo vivia originalmente.

A área destinada aos Waimiri-Atroari está em destaque em amarelo no mapa. Com território mínimo garantido e sem mais ameaças de projetos de infraestrutura, a população conseguiu se estabilizar e voltou a crescer; em 2010, segundo dados do IBGE, foram contabilizados 940 habitantes. Recuperar a história de como a comunidade foi rapidamente dizimada é importante não apenas para determinar responsabilidades e reparações históricas, mas também para discutir novos projetos de infraestrutura que, a exemplo dos da Ditadura, colocam em risco este povo.

O mais recente é o da construção de um linhão de energia elétrica conectando as duas capitais, Boa Vista e Manaus. O projeto, que corta a terra indígena, é resultado de uma articulação da governadora de Roraíma, Suely Campos (PP), e da senadora Ângela Portela (PT-RR), com amparo direto do Governo Federal. A senadora considera que a presidente Dilma Rousseff (PT) "foi fundamental para que a carta de anuência da FUNAI fosse concedida". O povo questionou na Justiça a obra, reclamando não ter sido consultado conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O desembargador Cândido Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no entanto, liberou a obra, argumentando ser ela "sabidamente de caráter estratégico nacional". (para mais informações sobre o caso, vale consultar o clipping organizado pelo ISA com notícias sobre os Waimiri-Atroari).

Desenvolvimentismo

Não é nova a lógica que segue sendo utilizada até hoje para justificar projetos de infraestrutura de alto impacto em áreas onde vivem indígenas, quilombolas, ribeirinhos, incluíndo aí os das duas edições dos Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) do Governo Federal. Em 1968, o então governador do Amazonas Danilo Areosa (ARENA) já reclamava da presença dos indígenas no caminho do "progresso" do Brasil.

"Esses silvícolas ocupam áreas, as mais ricas do nosso estado, impedindo a sua exploração, com prejuízos incalculáveis para a Receita Nacional, impossibilitando a captação de maiores recursos para a prestação de serviços públicos" - Danilo Areosa - governador do Amazonas (1968).

A fala é uma das resgatadas nas pesquisas realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), grupo formado para investigar crimes cometidos durante a Ditadura no Brasil. Há outros registros que ajudam a compreender a relação direta entre o projeto desenvolvimentista e o massacre do povo Waimiri-Atroari, como o depoimento de Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Operação Anchieta (Opan), à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

"Taboca chegou, tiquira sumiu. Na região onde está hoje localizada a Mineração Taboca, região grilada pela Paranapanema, o Padre Calleri aerofotografou nove aldeias em 1968. Por ser, então, a maior concentração de aldeias em território Waimiri-Atroari, era plano de Calleri transferir para aquele local as aldeias localizadas sobre o traçado da rodovia. Hoje não existe mais uma só aldeia ali. Os desenhos e escritos dos nossos alunos e alunas referem-se muitas vezes a essas aldeias dos parentes, denominados de tiquiras" - Egydio Schwade, indigenista, 2012.

Genocídio e deslocamento forçado

Outros levantamentos ajudam a identificar as ações conjuntas de representantes do poder público e de empresas que levaram à rápida redução da população indígena. O relatório que o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida apresentou em sessão do Tribunal Permanente dos Povos sobre a Amazônia Brasileira, realizado em Paris em 13 de outubro de 1990, é um deles. No documento, o pesquisador aponta que houve genocídio e deslocamento forçado dos habitantes da região.

Igualmente graves são as conclusões do 1o Relatório do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, que foi enviado em 2012 à CNV. O documento detalha como o governo participou na implementação da Hidrelétrica de Balbina e em projetos de mineração e agropecuária após a inauguração da BR-174. O texto mostra como pelo menos 526.800 hectares de terras indígenas acabaram nas mãos de empresas, incluíndo a mineradora Taboca e o Grupo Paranapanema.

A maneira como a área reservada aos Waimiri-Atroari encolheu é descrita pelo professor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), Stephen Baines, um dos pesquisadores que viveu na região na época e que contribuiu com depoimentos para a Comissão Estadual da Verdade. Ele viveu dois anos e três meses na área Waimiri-Atroari e, em 14 de março de 1984, logo depois do período mais crítico de redução populacional, relatou como os 350 indíos sobreviventes acabaram mantidos "estreitamente vigiados por 59 funcionários da FUNAI". O pesquisador aponta como o Decreto Presidencial no 86.630, de 1981, "desfez a Reserva Indígena, revogando os decretos anteriores", uma referência ao Decreto no 68.907 de 1971. Seu texto foi publicado na revista Aconteceu no 14 do Centro de Documentação e Informação (CEDI). Baines acabou proibido em 1989 de seguir trabalhando na região.

Além da BR-174, outra rodovia foi aberta no período em áreas indígenas, esta conectando a pista já existente à mina do Pitinga. A construção da estrada com percurso de 38 km começou em 9 de julho de 1982 e foi marcada pela violência. O relatório final da CNV destaque que, "para sua atuação na área, a mineradora Paranapanema contratou uma empresa paramilitar chamada Sacopã, especializada 'em limpar a selva'. Os responsáveis pela empresa tinham autorização do Comando Militar da Amazônia, para manter ao seu serviço 400 homens equipados com cartucheiras 20 milímetros, rifle 38, revólveres de variados calibres e cães amestrados".

O número de mortes no período disparou no intervalo em que a empresa de segurança atuou na região. Segundo dados da própria FUNAI, a população Waimiri-Atroari passou de 571 pessoas em 1982 para 350 em 1983.

Mesmo fora do período crítico, há relatos de outras violências, sobre as quais não há registros oficiais ou informações tão detalhadas. Em 1986, lideranças indígenas escreveram ao Presidente da República manifestando preocupação com o futuro dos povos irmãos Piriutiti e Tiquiriá, em função de problemas ocorridos em agosto de 1985. Segundo o relato, em função de explosões recorretentes em suas terras, os indígenas chegaram a destruir dinamite armazenada pela Mineradora Taboca. A área em que viviam está entre as que acabou alagadas.

Índios "invisíveis" e mineradoras estrangeiras

A ação de mineradoras em terras indígenas não afetou apenas os Waimiri-Atroari. Em 1986, a estimativa é de que praticamente 18 milhões de hectares haviam sido objeto de solicitação de pesquisa por parte de diferentes grupos. De 1970 a 1977, foram 75 os pedidos registrados pela FUNAI de certidão negativa de presença de indígenas em diferentes regiões cobiçadas pelas empresas. Destes, 33 foram deferidos, ou seja, aprovados, e outros 42 indeferidos.

As informações foram reunidas e organizadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito de 1977, conhecida como CPI do Índio, onde foram investigadas denúncias de que havia certidões negativas fraudulentas, que desconsideravam áreas de caça, pesca e cultivo de indígenas ou, em alguns casos, mesmo a presença de aldeias inteiras. Os dados sobre os pedidos deferidos e indeferidos foram resgatados pela CNV e estão em seu relatório final.

Além de investigar a emissão de certidões negativas falsas, parlamentares também manifestaram em diferentes momentos preocupação tanto com as violências cometidas contra indígenas como com a participação crescente de empresas estrangeiras na mineração na Amazônia brasileira. Em 27 de setembro de 1984, o deputado federal Randolfo Bittencourt (PMDB-AM) mencionou que "o cacique Maroaga foi morto em 1974 na verdadeira guerra de extermínio contra sua gente" e defendeu a necessidade de revisão do Código de Mineração, discursando sobre o processo de desnacionalização de riquezas. Segundo o parlamentar, na época multinacionais controlavam 43% da produção brasileira de minerais, com destaque para a participação da British Petroleum e da Anglo American, ficando o setor estatal com 34% e o privado 23%.

"A cada dia são encontradas jazidas de ouro, cassiterita, tantalita - sendo este o mineral estratégico mais procurado pelas multinacionais - e no mesmo passo aumenta também o número de alvarás de mineração concedidos a empresas estrangeiras. A British Petroleum já tem 903 alvarás e a Anglo-Americana foi finalmente barrada - pelos protestos das forças democráticas - através do Conselho de Segurança Nacional, porque suas 1.100 concessões já eram demais" - Randolfo Bittencourt.

No caso da Terra Waimiri-Atroari, o relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amazonas aponta que a Paranapanema contou com capital japonês e laranjas brasileiros, fazendo referências a reportagens publicadas pela imprensa na época como "Japão quer ouro da Amazônia pela dívida" (A Crítica - 05/04/1990); "Denúncia. Paranapanema, mina de corrupção" (Jornal Porantim - 04/1990) e "Os Mistérios da Paranapanema. De quase falida à prospérrima" (Tribuna da Imprensa - 03/11/1989). A mineração na região revelou-se um negócio lucrativo. Em maio de 1983, o deputado federal Mário Frota (PMDB-AM), afirmou, citando informações publicadas pelo Jornal do Brasil na época, que "em apenas 3 meses, a Paranapanema retirou 553 toneladas de estanho das terras dos Waimiri-Atroari, o equivalente, ao preço atual de mercado à fantástica soma de 7 milhões e 424 mil dólares".

Os registros históricos com os valores podem ajudar a estimar quanto de patrimônio indígena foi desviado, o que pode servir de base para o cálculo de reparações e indenizações para os sobreviventes. Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, o direito dos povos indígenas ao usufruto do solo e subsolo de suas terras já estava previsto na lei. Hoje tal garantia está expressa no Artigo 231, que diz que "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo (...) e que "(...)a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra (...).

Situação atual

A fase mais crítica em que os Waimiri-Atroari quase foram dizimados passou, mas o povo ainda enfrenta problemas, que vão além da já mencionada ameaça de novos projetos de infraestrutura na região. Os sobreviventes dos ataques sofridos durante a Ditadura ainda têm que lidar com as regras da Eletronorte, empresa de energia elétrica que segue atuando na região. Desde 1988, a Eletronorte coordena o Programa Waimiri-Atroari, apresentado pela empresa como uma iniciativa para "mitigar grande parte dos problemas provocados pela ação do Estado e de empresas privadas na vida dos Waimiri Atroari".

No site do projeto, a Eletronorte diz que o programa "foi elaborado por uma equipe multidisciplinar e interinstitucional de técnicos, representando a FUNAI, a Secretaria de Educação do Estado do Amazonas, o Instituto de Medicina Tropical de Manaus (IMTM), a Universidade do Amazonas e a Eletronorte", e que "antes mesmo da implantação do Programa, ainda na fase de estudos, a Eletronorte, como parte das ações mitigadoras sobre os prejuízos provocados pelo reservatório da UHE Balbina, com base em minucioso levantamento por técnicos especializados, indenizou aos Waimiri Atroari os valores correspondentes às suas roças, existentes na área de influência direta, independente de terem sido inundadas ou não". A empresa também informa que "foram indenizados os serviços dos Waimiri Atroari pela formação de novas roças e construções de novas aldeias, bem como pelo desmatamento necessário à construção de um dique de proteção do reservatório, dentro da área indígena" e que "foi custeado, também pela Eletronorte, o apoio necessário à mudança das aldeias Tapupunã e Taquari e a construção de novos Postos Indígenas, em substituição aos atingidos pelo reservatório (Pin Taquari e Pin Abonari)".

Não há, no site, nenhuma menção aos valores repassados, nem aos critérios adotados para estabelecer as indenizações anunciadas pelas violências cometidas. Para antropólogos, o fato de a empresa gerir um programa que deveria garantir direitos indígenas configura um desvio, já que tal prerrogativa é atribuição do Estado. Entre os problemas apontados está o fato de a comunidade acabar isolada das demais práticas indigenistas desenvolvidas no país diretamente pela FUNAI. Também há críticas ao fato de pesquisadores e representantes de movimentos sociais terem acesso restrito à comunidade, sendo, talvez, o caso mais emblemático o da proibição do antroólogo Stephen Baines de seguir com seus estudos na região em 1989.

Há diferentes iniciativas em curso para procurar estabelecer reparações justas. O Ministério Público Federal do Amazonas abriu Ação Civil Pública para apurar as violências históricas cometidas não só contra os Waimiri-Atroari, como também contra os Tenharim na outra ponta da rodovia BR-174. A Comissão Nacional da Verdade recomendou que a investigação sobre violências cometidas contra indígenas tivesse continuidade em uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, mas, até agora, pouco foi feito neste sentido. No relatório final não houve um aprofundamento sobre violências mencionadas, tais como as relacionadas às emissões de certidões negativas de presenças de indígenas fraudulentas.

A CNV já reuniu elementos que apontam a participação das empresas de mineração e grupos de segurança privada por elas contratados em massacres de indígenas, mas não aprofundou as investigações para determinar as relações de comando e responsabilidade do setor. O caso dos Waimiri-Atroari não é o único envolvendo mineração que aparece no relatório final; há também menções sobre violências contra o povo Cinta Larga e episódios específicos em que mineradoras protagonizaram ou apoiaram outras ações repressivas da Ditadura, não só contra indígenas. No Tomo I do relatório final, por exemplo, é citada a participação da Companhia de Mineração Boquira, que cedeu aviões e veículos para a Operação Pajussara realizada na Bahia em 1971. No Tomo II, são nove as ocorrências, incluíndo considerações sobre o vínculo de uma mineradora com o Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, órgão de repressão da Ditadura, em episódio em que 51 empregados sindicalistas foram demitidos e perseguidos. Há também menções ao massacre ocorrido em Serra Pelada, pólo de extração de ouro e garimpo no Pará, onde o saldo final foi de 79 desaparecidos e 10 mortos. São informações que deveriam servir de base para apurações mais aprofundadas e detalhadas.

A CNV também apontou, em seu relatório final, conflito de interesses envolvendo a própria administração da FUNAI e o setor de mineração em diferentes momentos. O documento indica que nas gestões dos presidentes Bandeira de Melo, Luis Vinhas Neves e Romero Jucá ocorreram violações relacionadas à extração de minerais. A esse registro somam-se as denúncias feitas pelo ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, autor do livro Memórias de Uma Guerra Suja, que relata ações de repressão no Pará e contra os Yanomami nos anos 1980.

Na presidência da FUNAI, Romero Jucá assinou em 1987 um convênio entre a FUNAI e o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para exploração mineral empresarial em áreas indígenas e, após deixar o órgão, já como governador do estado, passou a defender a permanência de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, conforme informado no especial a"República dos Ruralistas". Ele seguiu carreira política e hoje é senador pelo PMDB de Roraíma. Como parlamentar, apresentou, em 1996, quando estava no extinto PFL, o Projeto de Lei 1610, que visa autorizar a mineração em terras indígenas (acompanhe a tramitação).

Entre as demandas relacionadas à justiça de transição para com os Waimiri-Atroari estão a abertura de arquivos ligados às obras de infraestrutura na região, a criação de um Fundo de Reparação controlado pela comunidade e que o Programa Waimiri-Atroari passe a ser gerido exclusivamente pela FUNAI, sem a participação da Eletrobrás. Sendo comprovadas, as violações cometidas podem ser classificadas como crimes de lesa humanidade, tornando-se, portanto, imprescritíveis, conforme tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário. Hoje antropólogos, pesquisadores e movimentos indígenas cobram responsabilização dos criminosos, reparação aos povos atingidos, acesso à verdade histórica e publicização dos fatos, considerada também medida pedagógica e de educação para os direitos humanos.

http://caci.rosaluxspba.org/#!/dossie/914/?loc=-7.568076010017119,-53.2…

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