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As vozes e faces da Amazônia

O Globo, Segundo Caderno, p. 4
16 de Jul de 2012

As vozes e faces da Amazônia
Ampla mostra no CCBB destaca a vigorosa produção artística contemporânea da região

'Amazônia - Ciclos de modernidade'
Vários

Marisa Flórido
segundocaderno@oglobo.com.br

O vídeo " Ymã Nhamdehetama - Antigamente fomos muitos", de Armando Queiroz, nos recebe na exposição "Amazônia: ciclos da modernidade". Nele, um índio discorre sobre a mitificação, a marginalização e o aniquilamento das muitas etnias indígenas. Ao fim, seu rosto pintado de negro reproduz o desaparecimento que relata. A ambivalência da situação nos inquieta: o vídeo dá voz e imagem - visibilidade política e estética, portanto - a quem, entretanto, expõe sua extinção, seu apagamento, sua invisibilidade. Talvez por estarem ameaçados, jamais os "povos" foram tão expostos em documentários ou obras de arte. Como dar visibilidade e voz (portanto representação) para não expor e enunciar seu desaparecimento? Eis o impasse.
Com curadoria de Paulo Herkenhoff, a mostra foi intencionalmente inaugurada no CCBB Rio durante a Rio+20. Indiretamente, foi confrontada aos discursos de outra ameaça: a do desaparecimento do próprio planeta. A ambivalência se repete: a Amazônia, que figurou no imaginário ocidental como o inferno verde ou o paraíso intocado, é celebrada como a reserva ecológica da Terra. E, no entanto, como não ver a própria ecologia como uma reserva imaginária de ressonâncias teológicas? Como a última possibilidade (que alguns creem) de um laço universal que transcenderia divergências para nos salvar da iminente hecatombe?
O horizonte de uma Humanidade reconciliada, antes nas promessas religiosas ou políticas, se coloca sob a perspectiva escatológica (do fim do mundo), sob o signo da catástrofe vivida em comum.
Longe das idealizações, a história da Amazônia, como escreve o curador, é uma história de violência. Não é um universo apaziguado, mas uma miríade de mundos que, ao longo dos séculos, vêm se chocando e se devorando: do canibalismo da evangelização à luta por territórios e riquezas, dos genocídios aos conflitos agrários e urbanos, dos assassinatos políticos às queimadas e garimpos.
Cerca de 300 obras expostas
A curadoria se propõe a desenhar "uma cartografia do conhecimento e da cultura visual amazonense" a partir dos ciclos de sua modernidade: o Iluminismo, o Ciclo da Borracha, o Modernismo, a Contemporaneidade. Uma pesquisa extensa que traz cerca de 300 obras, do século XVIII até hoje, emprestadas de acervos diversos.
São colocados, lado a lado, objetos da cultura material e obras de arte, documentos históricos e científicos, mapas e projetos arquitetônicos. Realizando uma iconografia amazonense, são esboçadas as arqueologias de sua visualidade: a floresta e seu fundo infinito, sua flora e fauna atravessadas pelas visões indígena e cristã, catalogadas pela razão iluminista e desenhada por seus cientistas viajantes, cobiçadas pelo capitalismo, idealizadas pelos fundamentalismos ecológicos; os habitantes tipificados por pintores e filtrados pelas lentes de fotógrafos que por lá passaram; as geometrias dos artefatos indígenas mesclando se ao construtivismo da arte e arquitetura europeias etc.
O confronto de imaginários sobre e da Amazônia emerge de cruzamentos e fricções de mundos: surgem suas vozes dissonantes, seus estereótipos perpetuados, suas generalizações e singularidades. Mas o que sobressai na mostra é a vigorosa produção artística contemporânea da região, seus deslocamentos e resistências, seus questionamentos das codificações culturais e dos discursos identitários: na fotografia e no vídeo paraenses (de Luiz Braga, Orlando Maneschy e Armando Queiroz, entre outros); na contundência performática de Berna Reale; nas cartografias incertas do grupo Urucum de Macapá, que denunciam as fronteiras como imaginárias e portáteis; na incorporação da visualidade popular de Emanuel Nassar e Marcone Moreira em diálogo com a tradição construtiva da arte etc.
É preciso situar a estratégia curatorial (e política) em suas muitas articulações. "Amazônia" pretende demonstrar que o se produz na periferia dos centros de poder do país tem características próprias e por vezes precursoras. A um só tempo, ambiciona reescrever a história da arte brasileira, evidenciando que há muitas histórias recalcadas sob os discursos hegemônicos (outros "modernismos"), como também colocar a arte nos grandes debates políticos da atualidade. Abrir o lugar de enunciação e visibilidade das vozes e faces da Amazônia, tanto na história da arte como nos destinos do mundo.

O Globo, 16/07/2012, Segundo Caderno, p. 4

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