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Vitória da precaução

JB, Internacional/Ciência, p. A14
Autor: VIVEIROS, Mariana
23 de Out de 2004

Vitória da precaução
Além do Fato / Protocolo de Kyoto

Mariana Viveiros
Pesquisadora de meio ambiente do PROCAM-USP

Durante o ano de 2003 e boa parte de 2004, a relutância da Rússia em ratificar o Protocolo de Kyoto levou os mais pessimistas a declarar que o acordo, firmado em 1997, havia sido uma doce ilusão ambientalista, uma vitória de Pirro - tão difícil de se concretizar, que acabou saindo mais cara e mais desgastante para os vencedores do que para os vencidos. No entanto, a aprovação dos termos do protocolo pela Câmara Baixa russa e a iminência de que efetivamente entre em vigor indicam que o tratado tem tudo para se tornar, em vez disso, uma vitória - ainda que parcial - do princípio da precaução.
O princípio afirma que, mesmo na ausência de confirmação científica das relações de causa e efeito entre certas atividades e eventuais danos provocados, é legítimo agir.
Kyoto estipula que os países desenvolvidos reduzam, até 2012, em 5,2% as emissões de gases que contribuem para o aumento do efeito estufa (aquecimento natural da Terra). O principal é o dióxido de carbono (CO2), produto da queima de combustíveis fósseis, como petróleo, gás natural, carvão etc., ou seja, resultado de praticamente qualquer atividade industrial - para não falar de outras fontes, como a circulação de veículos. Cumprir a meta implicará altos investimentos em tecnologia de produção, além de alterações no ritmo de crescimento das nações.
Evitará, entretanto, problemas de médio e longo prazo como o degelo das calotas polares, a elevação do nível médio dos oceanos em até 90 centímetros dentro de dez anos e intempéries que poderão comprometer a produção de alimentos e colocar em risco vidas humanas. Há quem diga que fenômenos como o tufão Tokage, que matou dezenas de pessoas no Japão, e o furacão Jeanne, que deixou mais de mais de mil mortos só no Haiti, já seriam alertas nesse sentido. Tudo isso em razão, sobretudo, de um aumento na temperatura do planeta que poderá variar de 1,5 a 4,5 graus centígrados.
Fato é, no entanto, que há algumas incertezas científicas por trás das estimativas.
É difícil saber em que medida exata o CO2 e demais gases resultantes de atividades humanas aumentam a temperatura global e em que medida tal efeito não é fruto de mudanças dos próprios ciclos climáticos da Terra. O cálculo para fazer essa diferenciação depende de complicadas interações entre cinco elementos: atmosfera, biosfera, superfície terrestre, oceanos e camadas de gelo.
Enfrenta ainda o limite de disponibilidade de informações meteorológicas e climáticas sobre o passado mais distante do planeta. Aproximações razoáveis dessa complexidade têm sido conseguidas por simulações com Modelos de Circulação Geral da Atmosfera-Oceano, que também enfrentam problemas como os efeitos resfriadores de certas partículas e o comportamento das nuvens.
As incertezas não devem, porém, ser usadas como justificativa para não agir - como fazem os EUA, onde a falta da comprovação científica sustenta a noção de que as perdas econômicas envolvidas pesam mais.
A aprovação do tratado pelos russos sinaliza no sentido contrário e deixa claro que, como a ciência não têm controle total sobre os potenciais prejuízos a que o planeta está submetido, não há por quê não agir preventivamente.

JB, 23/10/2004, Internacional/Ciência, p. A14

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