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Vestígios de civilizações amazônicas

OESP, Vida, p. A16
06 de Fev de 2005

Vestígios de civilizações amazônicas
Grandes desenhos geométricos encontrados no Acre dão pistas sobre sociedades complexas anteriores à chegada dos europeus

Evanildo da Silveira

Numa tarde de março de 1999, o paleontólogo Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre (Ufac), viajava, a bordo de um avião da Varig, de Porto Velho para Rio Branco, quando teve sua atenção despertada por um enorme círculo desenhado no solo, milhares de metros abaixo de sua poltrona. Como ele constatou mais tarde, tratava-se de um geoglifo, vestígio arqueológico, de forma geométrica, feito por povos dos passado. É mais um indício de que a Amazônia já teve grandes populações, com culturas sofisticadas.
Geoglifos são desenhos geométricos, de grandes dimensões, feitos sobre o solo e que só podem ser vistos em sua totalidade do alto. Os mais famosos do mundo são os de Nazca, no Peru, onde povos antigos desenharam na terra um macaco, um beija-flor e uma abelha enormes, que só são visualizados de avião ou do topo de uma torre.
Por causa dessa característica, há quem defenda a hipótese de que eles tenham sido feitos por extraterrestres ou, pelo menos, com a supervisão deles. É o caso do escritor suíço Erich von Daniken, que nos anos 70 do século passado tornou famosos os desenhos de Nazca ao publicar o livro Eram os Deuses Astronautas?
Segundo o antropólogo Rodrigo Aguiar, das Faculdades de Energia, de Florianópolis, autor, junto com Ranzi, do livro Geoglifos da Amazônia - Perspectiva Aérea, os símbolos no solo localizados no Acre são os primeiros de que se tem notícia em território brasileiro.
Ele podem chegar a 200 metros de diâmetro ou largura e a técnica empregada para sua elaboração é a chamada extrativa. "Enormes valetas, semelhantes a trincheiras, são cavadas e a terra extraída é cuidadosamente depositada ao lado do sulco, resultando em contraste de alto e baixo relevo", explica Aguiar.
De acordo com ele, os geoglifos da Amazônia são particulares pela variação de suas formas geométricas e pela profundidade das trincheiras que compõem suas linhas de contorno, que pode chegar a 3 metros. Quanto à forma, foram encontrados círculos, quadrados completos e incompletos e outros com círculos dentro, além de um octógono e um desenho que combina quadrado com meio círculos.
Trincheiras
As enormes estruturas só foram descobertas por causa da derrubada ou queimadas da floresta para a formação de pastagens ou lavouras. Até agora, Ranzi descobriu 60 delas, todos nos arredores do Rio Acre. O levantamento começou menos de um mês depois de ele ter avistado o primeiro.
Acompanhado de um piloto amigo e de um fotógrafo, sobrevoou de novo o local e marcou as coordenadas geográficas do círculo. "Depois voltei lá de carro e tive a certeza de que não se tratam de trincheiras, mas de construções gigantescas de povos do passado", diz Ranzi. "Pela quantidade e diversidade dos desenhos, acredito ser uma das maiores descobertas arqueológicas do Brasil."
As trincheiras a que o pesquisador se refere são a explicação que os fazendeiros da região têm para os símbolos. Para eles, as valetas foram abertas durante a revolta do Acre, entre 1902 e 1903, que resultou, um ano mais tarde, na compra daquele Estado da Bolívia pelo Brasil.
Os pesquisadores discordam dessa interpretação, no entanto. Para eles, os geoglifos foram mesmo construídos por povos que habitavam a região no passado. Por causa do tamanho dos desenhos e da profundidade das valetas, seria necessário um grande número de pessoas, trabalhando de forma organizada, para fazê-los "Os geoglifos demonstram um povo com capacidade de movimentar grande quantidade de terra", diz Ranzi. "Além de conhecimentos precisos de geometria."
Para o arqueólogo Martti Parssinen, professor de Estudos Latino-americanos da Universidade de Helsinque, na Finlândia, os símbolos são importantes evidências de antigas civilizações. "Eles demonstram que sociedades complexas floresceram na Amazônia antes da chegada dos europeus", diz. "Mostram ainda que havia uma grande população numa área considerada de solo pobre."
Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, descobridor das estradas e aldeias com estruturas circulares na região do Xingu, concorda. "As estruturas são provas da sofisticação das sociedades antigas da região, em termos de estética cultural (desenho/arte), tecnologia, engenharia e geometria", diz. "Isso obviamente está ligado a uma etnoastronomia elaborada."
Defesa ou símbolos
Se os especialistas estão certos da existência de sociedades complexas na Amazônia do passado, o mesmo não ocorre com a função dos geoglifos ou por que eles foram feitos. Para Parssinen, essas grandes estruturas foram construídas para defesa das aldeias, evitando a invasão de inimigos com o auxílio de grandes muros de madeira. "Parece que os geoglifos eram fortificações de assentamentos humanos, conectados a um sistema de estradas por volta de 1200 a 1600", diz.
Em seu livro, Ranzi e Aguiar discordam. "A presença de dois ou mais símbolos associados e a grande concentração deles em uma área relativamente pequena vão contra essa hipótese", dizem. "Seriam demasiados aldeamentos para uma área muito pequena. O mais provável é que eles pertencessem ao mesmo grupo, mas que os utilizavam para outros fins que não exclusivamente o de assentamento. Os desenhos deveriam estar ligados à cultura simbólica, principalmente a religiosa e ritualística."
Quando os símbolos foram feitos e como era a região na época são questões que desafiam os cientistas. Não se sabe se havia floresta na época, que foi derrubada para dar lugar aos geoglifos e depois voltou. Ou se a região era de savana e a mata chegou depois. "A existência dessas estruturas em região de floresta pode indicar mudança de vegetação de savana para florestas úmidas", diz Ranzi. "A floresta amazônica do Acre poderia ser mais recente do que pensa."
Seja como for, essas e outras dúvidas só serão esclarecidas com mais pesquisas. "É indispensável efetuar escavações arqueológicas na área dos geoglifos", diz Aguiar. "Só assim poderemos responder com maior precisão quem foram seus construtores e qual era a principal função desses monumentos para aqueles povos do passado."
Uma nova visão sobre os povos da Amazônia
Evanildo da Silveira
O solo pobre, próprio das florestas tropicais, sempre foi tido por muitos pesquisadores como um empecilho para que a Amazônia tivesse tido grandes populações no passado, como as que viveram na América Central e nos Andes, por exemplo. Pesquisas e descobertas recentes, no entanto, estão mudando essa visão. Elas mostram que muitos povos se organizaram e formaram grandes populações.
Os vestígios arqueológicos que apontam nessa direção começam a se avolumar. No livro Geoglifos da Amazônia - Perspectiva Aérea, Alceu Ranzi e Rodrigo Aguiar lembram que escavações no Peru e na Bolívia têm revelado quantidade enorme de cerâmica, muito maior do que se esperaria de sociedades simples.
Em toda a Amazônia, inclusive a brasileira, estão sendo descobertas diversas estruturas de engenharia, como largas estradas, terraplenagens, aterros e canais para drenagem, além dos recentes geoglifos. "Tudo isso requer a mobilização de grande número de pessoas, organizadas sob rigorosas normas de trabalho, características de sociedades que já atingiram o estágio de civilização", diz Aguiar. "O desaparecimento posterior desses grandes núcleos populacionais pode estar ligado à conquista européia e a doenças."
Outras descobertas em toda a América do Sul, como artefatos de 10 mil a 12 mil anos atrás, mostram que o povoamento do continente pode ter ocorrido muito antes do que se pensava até recentemente. "A Amazônia, então, em vez de pequenos grupos vivendo em sociedades simples, pode ter sido, na verdade, densamente povoada por grupos que estariam mais próximos do estágio de civilização", escrevem Ranzi e Aguiar.
Quanto aos geoglifos do Acre, eles defendem que duas pesquisas devem ser feitas simultaneamente: "Escavações arqueológicas para identificação dos horizontes culturais antigos e investigações etnográficas entre indígenas atuais, na tentativa de identificar vínculos culturais com os grupos pré-históricos e etno-históricos".

OESP, 06/02/2005, p. A16

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