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Usina polêmica vai a leilão em setembro

FSP, Ciência, p. A26-A27
Autor: ANGELO, Claudio
09 de Jul de 2006

Usina polêmica vai a leilão em setembro
Hidrelétrica de Dardanelos, situada em área considerada prioritária para a conservação, ameaça ecoturismo em MT
Estado deu licença prévia à obra, cujos estudos de impacto ambiental foram criticados por especialistas e contestados por promotor

Cláudio Ângelo
Enviado especial a Aripuanã (MT)

Ao mesmo tempo em que anuncia planos de estimular o ecoturismo, o governo brasileiro condena à morte uma das paisagens mais espetaculares da Amazônia: o conjunto de cachoeiras de Aripuanã, no noroeste de Mato Grosso. O local, considerado pelo Ministério do Meio Ambiente área prioritária para a conservação, deve abrigar uma hidrelétrica cujos estudos ambientais são contestados por especialistas e pelo Ministério Público.
A data da execução já está marcada: em setembro, se tudo correr como desejam a estatal Eletronorte e o governo mato-grossense, a Usina Hidrelétrica Dardanelos será leiloada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). A licença prévia do empreendimento foi aprovada na surdina pela Assembléia Legislativa de Mato Grosso no dia 23 de maio.
Na melhor das hipóteses, a hidrelétrica descaracterizará a paisagem das cachoeiras das Andorinhas e de Dardanelos, situadas na periferia da cidade, nas quais o rio Aripuanã despenca uma centena de metros.
As quedas d'água são um cenário tão impressionante que valeram a inclusão de Aripuanã no Proecotur, o programa de ecoturismo na Amazônia iniciado em 2000. "Se a hidrelétrica sair, lá acabou", sentencia Allan Milhomens, coordenador do Proecotur no Ministério do Meio Ambiente.
Na pior das hipóteses, a usina de Dardanelos secará as cachoeiras durante parte do ano e levará o ecossistema local ao colapso, extingüindo uma espécie de planta aquática que só existe na zona dos saltos e comunidades de anfíbios que dependem do ciclo natural de cheias e vazantes do rio.
De quebra, acabará com um balneário bastante usado pela população local, o Oásis, e com uma impressionante colônia de andorinhões que faz ninho nos paredões de arenito dos saltos. Isso para produzir energia cara e ineficiente, num local a mais de 500 quilômetros da conexão com o SIN, o sistema nacional de transmissão elétrica.
O pior cenário, por incrível que pareça, é descrito no próprio EIA-Rima (sigla para estudo e relatório de impacto ambiental) da hidrelétrica de Dardanelos, preparado pela Eletronorte e pela construtora Norberto Odebrecht. Dos impactos descritos no relatório, 52 são negativos e 7 são positivos.
Duas análises independentes feitas em 2005, uma por um grupo de especialistas a pedido do Ministério Público de Mato Grosso e outra pela Sema (Secretaria de Estado do Meio Ambiente), apontam uma série de problemas no EIA-Rima. Mesmo considerando que ele "precisa ser complementado", no entanto, a secretaria estadual autorizou a concessão da licença prévia à obra.
"A licença prévia pode ser condicionada ao cumprimento de certas solicitações. Isso é normal", defende Luís Henrique Daldegan, secretário-adjunto da Sema.
"A rigor, pode, mas nunca neste nível", rebate o promotor de Justiça de Meio Ambiente do Estado Gerson Barbosa. Ele é autor de uma ação civil pública pedindo a anulação do EIA-Rima de Dardanelos.
A ação do Ministério Público conseguiu impedir que Dardanelos fosse a leilão em dezembro do ano passado, mas a Eletronorte afirma, agora, que está terminando de cumprir as condições impostas pela Sema para o licenciamento. Barbosa discorda. "A decisão de construir Dardanelos não é técnica, é política. E já foi tomada."

Cascata de problemas
O primeiro problema apontado pelo Ministério Público envolve a própria competência de Mato Grosso para licenciar a hidrelétrica, já que o rio Aripuanã é federal -corta dois Estados-, o que daria ao Ibama, o órgão ambiental federal, essa responsabilidade.
Há conflito com o Ibama também num fato aparentemente ignorado pela Eletronorte: a zona dos saltos foi classificada pelo Ministério do Meio Ambiente como de prioridade "extremamente alta" para a conservação da biodiversidade, e o Ibama estuda a criação, ali, de uma reserva de desenvolvimento sustentável.
Outro ponto nebuloso diz respeito ao valor das linhas de transmissão, que ainda geram debate (leia texto à direita).
Mas a principal confusão é quanto à vazão mínima necessária para fazer funcionar a hidrelétrica e manter as cachoeiras com água. A primeira versão do EIA-Rima fala em 12 metros cúbicos por segundo de vazão remanescente (ou seja, descontando o que a usina utilizará). O valor depois foi alterado para 17,9 metros cúbicos por segundo e, agora, para 21.
Acontece que, para funcionar, a hidrelétrica precisa de pelo menos 17 metros cúbicos por segundo. E a vazão mínima mensal do rio Aripuanã é 18 metros cúbicos por segundo. Não bastasse isso, uma portaria da Agência Nacional das Águas estabelece que as pequenas centrais hidrelétricas já instaladas no salto dos Dardanelos devem ter garantidos 24,3 metros cúbicos por segundo.
Por essa matemática, a hidrelétrica só poderia funcionar quando o rio tivesse mais de 60 metros cúbicos por segundo de vazão. "Pelos nossos cálculos, a usina ficaria três meses por ano parada por falta d'água -isso se a vazão remanescente fosse 12 metros cúbicos por segundo", diz Dorival Gonçalves Júnior, professor de engenharia elétrica da Universidade Federal de Mato Grosso e um dos especialistas que analisaram o EIA-Rima a pedido do MP. "Se você viabiliza os 21 metros cúbicos, inviabiliza a usina do ponto de vista energético, e vice-versa."
Segundo Gonçalves Júnior, a inconstância do rio faria com que a chamada energia firme da usina -ou seja, a potência com a qual se pode contar- caísse para 80 megawatts, o que a Eletronorte nega (leia texto na pág. A27). A potência instalada (nominal) do empreendimento é 261 megawatts. "Nacionalmente, para uma usina ser economicamente viável, essa relação é acima de 50%", diz o engenheiro. "Isso vira tarifa depois."
Com Juliana Arini, colaboração para a Folha

Conexão com o sistema nacional é uma incógnita

Juliana Arini
Colaboração para a Folha

Outro ponto ainda obscuro no projeto é o real traçado de suas linhas de transmissão. De acordo com o edital de leilão da usina, de dezembro de 2005, essa ligação aconteceria com o município de Juína. E faria com que o custo real da obra subisse dos R$ 538 milhões previstos inicialmente para R$ 727 milhões.
Acontece que Juína, como Aripuanã, tampouco faz parte do SIN (Sistema Interligado Nacional), diz Paulo César Magalhães, da Eletronorte. Seria necessária a construção de linhas adicionais para ligá-la ao sistema.
Segundo Gonçalves Júnior, da UFMT, a extensão das linhas de Juína até o ponto de conexão mais próximo com o SIN seria de pelo menos 500 quilômetros, o que elevaria o custo de Dardanelos para mais de R$ 1 bilhão.
Magalhães contesta: segundo ele, a linha de uso exclusivo de Dardanelos vai só até Juína. Dali para baixo, até a cidade de Jauru, o custo das linhas seria "rateado" entre uma série de outras hidrelétricas.
Entre elas está um conjunto de nove centrais proposto por um consórcio integrado pela Maggi Energia -empresa do governador do Estado, Blairo Maggi (PPS). Das cinco alternativas de traçado de linha propostas pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética) para as novas linhas de transmissão de MT, quatro têm as PCHs da Maggi no caminho entre Dardanelos e o SIN.
O diretor-superintendente da Maggi Energia, Roberto Rubert, nega que o interesse do governo em Dardanelos se deva às linhas. "Nós prevíamos a conexão na linha Jauru-Vilhena [RO], que está em licitação. Mas a EPE sugeriu outro ponto de conexão, ainda em estudo."

Outro lado

Hidrelétrica não destrói a paisagem, diz Eletronorte
Empresa diz que estudos estão sendo complementados e nega danos a espécies

Da Redação

A Eletronorte diz que está pronta para o leilão de Dardanelos. A usina é segura do ponto de vista ambiental e viável do ponto de vista econômico.
"Estamos complementando os dados do EIA-Rima e vamos entregá-los no início de agosto", diz Silviani Froelich, gerente de Estudos e Projetos Ambientais da Eletronorte. "As condicionantes da Sema estão sendo atendidas, e elas não invalidam Dardanelos."
Segundo Froelich, a vazão remanescente do rio, recalculada em 21 metros cúbicos por segundo para atender às condições da licença prévia, permite que as cachoeiras tenham água o ano inteiro e que Dardanelos siga gerando energia, mesmo na estação seca.
Ela admite, no entanto, que as pequenas centrais hidrelétricas Faxinal 1 e 2, já instaladas no salto dos Dardanelos, poderão ter falta d'água. "A Aneel priorizou Dardanelos", diz.
Valéria Saracura, coordenadora dos estudos de fauna e flora do EIA-Rima, afasta a possibilidade de extinções locais porque a chamada área dos pedrais, as lajes usadas pelos anfíbios para sua reprodução, não será atingida por obras de engenharia. "Não haverá interrupção de água nos pedrais", diz. Mas, em seguida, afirma que a usina "aumenta o período de vazão diminuída" nas lajes e que "pode ser até que algumas espécies sejam beneficiadas".
Sobre a não-inclusão do custo das linhas de transmissão no estudo de impacto e no valor de Dardanelos no leilão, apontada como um dos principais problemas do projeto da usina, Froelich afirma que a estatal e a Odebrecht, sua parceira, se limitaram a atender o que o governo do Estado havia pedido. "A linha de transmissão não foi solicitada para licenciamento juntamente com a usina no termo de referência", disse.
Ela também minimiza a afirmação do parecer da Sema que aponta 52 impactos negativos na usina. "Quando você pega os números, você pode ficar com uma impressão falsa."
O gerente de Planejamento Energético da Eletronorte, Paulo César Magalhães, contesta a afirmação do estudo encomendado pelo Ministério Público de que Dardanelos é economicamente inviável. Ele diz que a energia assegurada da hidrelétrica é 155 megawatts e não 80 megawatts.
Sobre a razão de a estatal ter planejado uma hidrelétrica num paraíso ecológico -o Ministério Público diz que não foram apresentadas alternativas de localização do empreendimento, o que é irregular-, Magalhães é pragmático: "Existe hidrelétrica porque existe uma cachoeira e existe vazão. Adoraríamos fazer uma hidrelétrica perto de Brasília". (CA)

Quebrada e sem turistas, cidade aguarda a obra

Do enviado especial a Aripuanã

Para parte da população de Aripuanã, a 861 quilômetros de Cuiabá, a hidrelétrica de Dardanelos vai finalmente trazer o "desenvolvimento". Quebrado após a Operação Curupira, no ano passado, o município, cuja economia girava em torno da indústria madeireira, agora quer virar produtor de energia.
Os turistas mesmo nunca vieram, espantados pelo isolamento (são mais de três horas de vôo a partir de Cuiabá, com passagens a até R$ 1.200 ida e volta, ou mais de dez horas em estradas de terra) e pela falta de infra-estrutura. O único hotel de turismo da zona das cachoeiras fechou neste ano.
"A renda com turismo é irrelevante, e a maior parte vem dos municípios vizinhos", diz Rafael Paulino, secretário municipal da Administração. O grosso da receita de Aripuanã, como a de grande parte das cidades amazônicas, vem de repasse estadual e federal. Do Proecotur, mesmo, Aripuanã ainda não recebeu diretamente um centavo, afirma.
Outros setores da administração sonham mais alto. "Se nós tivermos energia para produzir indústrias, as indústrias vêm", diz o vice-prefeito, Florisvan Ferreira (PMDB), dono de uma loja na cidade. "Queremos atrair indústrias de beneficiamento de madeira e o agronegócio também."
Acontece que hoje Aripuanã e região têm sobra de energia. Segundo o próprio prefeito, Ednilson Faitta (PP), a expansão da indústria madeireira poderia ser atendida com a ampliação de suas pequenas centrais hidrelétricas (Faxinal), que têm licença para até 30 megawatts. Hoje a região consome um sexto disso. (CA)

Sete Quedas de uma hidrelétrica

Os principais pontos polêmicos da usina de Dardanelos, em Mato Grosso

1 - Ou as cachoeiras secam ou a usina pára
Vazão média mensal do rio Aripuanã: 1.520 m3/s máxima 18m3/s mínima
Valor mínimo para manter Dardanelos, cachoeiras e as outras hidrelétricas: 59,2 m3/s

2 - Linhas de transmissão não entram no custo da usina, nem têm estudos de impacto
Segundo o Ministério Público, essas linhas teriam um custo adicional de R$ 500 milhões, que estaria de fora da conta de Dardanelos. Isso é ilegal. A Eletronorte diz que o valor é R$ 142 milhões

3 - Obra causará dano à paisagem das cachoeiras e inviabilizará o turismo no local
A análise é de um estudo técnico da Sema (Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso), com base no próprio EIA-Rima da usina

4 Usina levará à morte, no local, anfíbios (entre os quais duas espécies novas para a ciência) que dependem para se reproduzir do ciclo de cheias e secas das poças d'água na área das cachoeiras
A análise é da Sema, mas a Eletronorte diz que as poças não serão afetadas

5 Há risco de extinção de uma espécie de planta aquática que só existe na região das cachoeiras
A lonchostephus elegans ("alface d'água") também depende das variações naturais do rio. A Eletronorte nega o risco em seu novo estudo

6 - A colônia de andorinhões que habita as cachoeiras (estimada em 1,5 milhão de aves) e que é símbolo de Aripuanã pode morrer ou se mudar do local

7 - Há confusão sobre a "energia firme" a ser gerada pela hidrelétrica
A Eletronorte hoje fala em 155 megawatts; o EIA-Rima fala em 127 megawatts, e o estudo encomendado pelo Ministério Público fala em 80 megawatts, valor muito abaixo da média nacional de aproveitamento, que é 50%

FSP, 09/07/2006, Ciência, p. A26-A27

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