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Uma reforma agrária destruidora - e inútil

Época, Brasil
20 de Ago de 2007

Uma reforma agrária destruidora - e inútil
O governo escolheu a Floresta Amazônica como área prioritária para assentar mais de 200 mil famílias. Isso aumenta a devastação. E os colonos continuam tão pobres quanto antes

Ronald Freitas, de Marabá, e Juliana Arini

A floresta amazônica era a paisagem que envolvia a pequena casa de madeira do goiano José Praiano da Silva. Isso foi em 1986, quando ele deixou o garimpo de Serra Pelada para ser assentado na gleba Jacaré, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Para chegar ao vilarejo mais próximo, a 50 quilômetros, o caminho eram as veredas abertas na floresta. Hoje, as árvores viraram tocos carbonizados. De sua casa, o agricultor de 64 anos vê apenas um pasto degradado. A picada deu lugar a uma estrada de terra que cobre de poeira vermelha a casa de Praiano quando passam os caminhões carregados com carvão vegetal ou toras de madeira retirados de assentamentos vizinhos. Ao longo de uma tarde, Época acompanhou a passagem de dois carregamentos de carvão e de outros oito de tora. A família de Praiano desmatou todos os 10,5 alqueires de seu lote. A vida deles melhorou? Não. Hoje, vivem de uma roça de subsistência e dos R$ 95 do Bolsa-Família que os netos recebem do governo federal.
A história de Praiano retrata um dos principais problemas de hoje na Amazônia. A reforma agrária, feita sem preocupação ambiental ou práticas sustentáveis. Esse processo gera apenas a devastação dos recursos da floresta e deixa os colonos na miséria. Beneficia apenas as madeireiras e as carvoarias irregulares. É por isso que, na semana passada, as Procuradorias da República (MPF) em Santarém e Altamira, no Pará, pediram o cancelamento de portarias que criariam mais 99 assentamentos. Juntos, eles teriam uma área equivalente ao Estado de Alagoas. As portarias foram emitidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre os anos de 2005 e 2007. A justificativa dos procuradores foi a falta de garantias de viabilidade ambiental e social desses projetos. "O Incra está criando assentamentos dentro de áreas de floresta intacta e depois levando pessoas das cidades para essas áreas", afirma um dos autores da ação, o procurador Marco Antônio Delfino. "Se essas famílias forem deixadas na floresta sem orientação, como nos assentamentos que conhecemos, começarão a vender as árvores. Ou pior, podem acabar reféns de madeireiros ilegais." Em um dos novos assentamentos embargados pelo Ministério Público, em Medicilândia, na Transamazônica, mil famílias deveriam estar assentadas. Em visita aos lotes, o procurador encontrou apenas funcionários de uma madeireira ilegal. "A reforma agrária está virando um instrumento para o desmatamento na região", afirma.
Pesquisadores afirmam que os assentamentos já respondem por 15% do desmatamento na floresta. Parece um problema menor, diante do que os grandes pecuaristas derrubam. Mas a cada ano cresce o número de famílias levadas pelo Incra. Até o fim de 2006, os assentamentos já ocupavam 36 milhões de hectares, ou 8% da Amazônia. É uma área equivalente à da Alemanha. A tendência é que essa transposição de gente se acelere, pois o governo federal concentrou sua estratégia de reforma agrária na ocupação da Amazônia. Mais da metade das 400 mil famílias a serem assentadas nos próximos três anos deverá ganhar um pedaço da Floresta Amazônica. O motivo é que cerca de 33% da Amazônia é de terras que pertencem à União, e dispensam a indenização para assentamentos. Isso diminui os custos da reforma agrária e gera bons índices sociais para o governo.
Atrás desses números, no entanto, fica a destruição. A taxa de desmatamento dentro dos assentamentos é quatro vezes superior à taxa média da Amazônia. Um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), feito com assentamentos criados de 1997 a 2002, mostra que a média de destruição em 43% das áreas monitoradas foi de 75%. Um índice quase quatro vezes maior que os 20% permitidos por lei. "A falta de infra-estrutura nos assentamentos leva à devastação", afirma Paulo Barreto, do Imazon. Dados do Incra mostram que apenas 30% dos assentamentos na Amazônia recebem investimentos como estradas, escolas e saúde. O restante das famílias vive abandonado na mata. A maioria em áreas de conflito, ameaçada por madeireiros ilegais e ladrões de terras. "É nesse cenário que a floresta é cortada", diz Barreto. "As famílias acabam sem opção e participam da ilegalidade para sobreviver."
Os tipos de crédito oferecidos na região também induzem ao desmatamento. Cerca de 170 mil famílias tomaram financiamentos para a safra de 2007 na Amazônia. Já foi emprestado R$ 1,3 bilhão, dentro do Programa de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf). Na região, 60% desses contratos foram para a criação de gado leiteiro, uma atividade que estimula a derrubada de mais floresta. Uma saída para o problema seria aumentar o crédito Pronaf Floresta. Ele é feito para promover práticas ambientalmente corretas, como a extração de castanha e açaí. Até dezembro de 2006, só 267 famílias buscaram esse tipo de crédito. Segundo a Secretaria de Agricultura Familiar, que coordena o Pronaf, isso acontece por falta de assistência técnica.
Basta ver o que ocorreu com a gleba Tracoá, do projeto de assentamento agroextrativista em Marabá, no Pará. Em seu lote, o maranhense Miguel Moreno comanda o trabalho de dois carvoeiros.
O assentado já vendeu toda a madeira com valor econômico de sua mata. Agora, ele queima o resto para fabricar carvão. Moreno já desmatou dois terços dos 20% que ele poderia desmatar. E quando acabarem a madeira e o carvão? "Vamos esperar o governo dar condições de a gente viver", afirma Moreno. Os assentados dizem que os agentes do Incra não deram orientações de como praticar extrativismo florestal sustentável. Em compensação, o caminhão das usinas de beneficiamento de leite passa diariamente pelos lotes recolhendo os baldes de metal que os agricultores deixam sobre estrados de madeira em frente das casas. O leite rende R$ 400 por mês. Para muitas famílias, justifica o desmatamento para a criação de gado. "O comprador busca leite, madeira e carvão dentro da propriedade, mas não existe incentivo ao açaí ou ao cupuaçu", diz Sebastião Souza, secretário de Política Agrária da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri) de Marabá. Como as frutas são perecíveis - o açaí dura menos de 24 horas -, seria preciso que houvesse um recolhimento diário ou a possibilidade de refrigeração. Mas a energia elétrica também não chegou ao assentamento de Moreno.
Uma das novas ameaças à Amazônia é, por ironia, um projeto idealizado pela freira americana Dorothy Stang, assassinada em 2005 na cidade de Anapu, no Pará. Ela concebeu um tipo de assentamento dentro de grandes porções intocadas da mata, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Por razões ambientais, a prática estava proibida desde 1999. Na teoria de Dorothy, os PDS ajudariam as comunidades que já vivem do extrativismo sustentável na floresta e que precisam regulamentar a posse das áreas. Essa modalidade de assentamento dispensa a demarcação dos lotes. Os assentados vivem em agrovilas comunitárias. Foi essa reivindicação que culminou na morte da freira, por ladrões de terras. Só que a aplicação dos PDS vem sendo feita de forma diferente da idealizada pela irmã Dorothy. Segundo as denúncias do MPF da semana passada, o Incra estaria trazendo as famílias de longe e deixando-as nas regiões de floresta sem nenhuma orientação. Entre os 99 projetos de assentamento denunciados, 43 são PDS. "É uma distorção do modelo previsto pela lei", afirma Delfino.
A devastação provocada por esse tipo de reforma agrária não melhora a vida dos assentados. Os índices de desenvolvimento humano (IDH) dessas regiões estão abaixo da linha da pobreza. Para o gerente de política agrária da Fetagri do Pará, Manoel Imbiriba, o único produto dessa colonização são os conflitos sociais. "Antes de validar as áreas, eles já levam as famílias. Elas ficam entre grileiros e madeireiros ilegais", diz. Situação similar à que provocou a morte de Dorothy. Dos dez municípios classificados como os mais violentos do país, cinco receberam um grande número de assentamentos. Entre eles, o campeão de violência no Brasil: Colniza, em Mato Grosso.

O Ministério Público quer anular, no Pará, assentamentos com área equivalente ao Estado de Alagoas

Apesar dos alertas de pesquisadores e da ação do Ministério Público Federal, o governo diz que está otimista com os assentamentos na região. Na semana passada, o Ministério do Meio Ambiente divulgou dados que mostram uma redução de 50% no desmatamento dentro dos assentamentos - uma diminuição esperada, uma vez que mais da metade de suas matas já foi derrubada. Esse dado deverá servir de argumento para a criação de novos assentamentos. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, afirma que é uma prática tradicional da reforma agrária assentar primeiro para depois criar a infra-estrutura. "Sempre foi assim no Brasil", diz. Ele relembra os projetos bem-sucedidos: "É claro que os assentamentos que produzem de forma sustentável ainda são uma minoria. Mas podemos mudar essa realidade com investimentos". Ele afirma que foram contratados mais de 3 mil técnicos para prestar assistência aos assentamentos.
O diretor do Programa Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Tasso Azevedo, defende a mesma política. Segundo ele, um bom exemplo seriam os projetos da região da BR-163 (estrada que liga Santarém a Cuiabá), no Pará. "Em alguns assentamentos, as comunidades estão retirando madeira de forma ambientalmente correta", diz. "Eles praticam o manejo florestal com a ajuda de madeireiras." Mas replicar os projetos da BR-163 não é tão simples. Menos de 10% dos assentamentos da Amazônia têm licenciamento ambiental, o levantamento básico para avaliar os possíveis impactos das atividades no meio ambiente. No Pará, nenhum assentamento é licenciado.
Para quem pesquisa a economia florestal, a reforma agrária poderia ser sustentável. "Seria mais prudente primeiro dar condições para as pessoas que já estão dentro da floresta produzir sem devastar, para depois levar outras famílias", afirma Daniel Nepstad, do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam). Segundo ele, as áreas destinadas para reforma agrária deve-riam estar mais perto das cidades. "Os assentamentos teriam acesso aos mercados consumidores, o que facilitaria a agricultura familiar de pequena escala", diz. "Isso não acontece porque é mais barato criar assentamentos em áreas distantes. Apesar de ser muito mais caro criar infra-estrutura de educação e saúde depois." Perto das cidades, os assentamentos poderiam abastecê-las com produtos como mandioca e feijão, que no Brasil são plantados principalmente por pequenos produtores. Enquanto colonos são assentados nos confins do Pará, os moradores de Belém têm de comprar frutas e legumes de São Paulo e do Nordeste.
A distância dos consumidores dificulta a vida de assentados que tentam respeitar a floresta, como o piauiense João de Deus Francisco da Silva, de 61 anos. Ao contrário do vizinho de assentamento, João de Deus praticamente não mexeu na floresta. Fez uma roça de subsistência, plantou laranjeiras e cajueiros e cavou um pequeno açude no qual pretende criar peixes. Fatura cerca de R$ 10 mil por ano com a venda de castanha-do-pará, açaí, cupuaçu e laranja. Com o dinheiro, ajuda alguns dos filhos - que saíram de casa - e sustenta o caçula, Rodrigo, de 12 anos. Os dois moram sozinhos num casebre de palha e chão de terra batida, sem luz ou água encanada. Só saem do isolamento quando vão à casa de uma das filhas, que mora em Nova Ipixuna, processar o cupuaçu. Para levar a fruta à cidade, João de Deus anda a pé 4 quilômetros até chegar a uma estrada vicinal onde consegue transporte. João de Deus mostra uma consciência que falta ao programa de reforma agrária: "Era mais fácil desmatar tudo. Mas do que é que eu vou viver depois que a madeira acabar?".

Época, 20/08/2007, Brasil

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