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Uma questão muito profunda

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
07 de Abr de 2006

Uma questão muito profunda

Washington Novaes

Na semana em que se comemorou o Dia Mundial da Água e o Brasil apresentou no IV Fórum Mundial da Água, na Cidade do México, seu Plano Nacional de Recursos Hídricos, com as metas e os programas para gerir os 12% de águas superficiais do planeta que estão em território brasileiro, algumas questões vitais estiveram em discussão. Uma delas é a proposta de aumentar em oito membros a representação da sociedade e dos usuários no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, acabando com a atual maioria absoluta que o governo federal detém nesse órgão e graças à qual conseguiu aprovar ali o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco (contrariando decisão do comitê de gestão da bacia), ora embargado pela Justiça. Discutiu-se muito também como o País fará para cumprir os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ONU), que pretendem até 2015 reduzir em 50% o número de pessoas (1,1 bilhão no mundo) hoje sem acesso a água potável de boa qualidade e os 2,5 bilhões de pessoas sem saneamento básico.

No Brasil, são quase 10% da população que não dispõem de redes de água, quase 50% sem redes domiciliares de esgotos. E, dos esgotos coletados, menos de 20% são tratados - o restante, despejado sem tratamento em rios e no mar, é uma das principais causas das doenças veiculadas pela água no País. Um problema enorme e ainda sem solução à vista, por falta de marco regulatório e de recursos (pelo menos R$ 180 bilhões).

Paralelamente, ganham corpo outras discussões importantes para o País sobre o chamado Aqüífero Guarani, esse gigantesco depósito de águas subterrâneas com mais de 40 mil km3 de reserva (mais de 40 trilhões de m3), que tem no subsolo brasileiro cerca de 840 mil dos seus 1,2 milhão de km2, que se estendem até o Uruguai, a Argentina e o Paraguai. Em vários Estados brasileiros (MT, MS, GO, MG, SP, PR, SC, RS) essas águas já são fonte importante para o abastecimento urbano e para a irrigação. No Estado de São Paulo, por exemplo, cerca de 400 cidades já são abastecidas pelo aqüífero - Ribeirão Preto, integralmente.

A discussão tem vários motivos. Os principais:

Um projeto de emenda constitucional (PEC 43/00) transfere o domínio das águas subterrâneas dos Estados para a União - o que pode comprometer a participação da sociedade na gestão;

- alguns estudos começam a dizer que o aqüífero não é contínuo (e sim compartimentado em blocos) e que sua reserva de água seria bem menor que a apontada até agora.

O mais citado desses estudos é do geólogo gaúcho José Luiz Flores Machado, que, em sua tese de doutorado na Unisinos, afirma que no Rio Grande do Sul, pelo menos em 50% do aqüífero, a água não serviria para abastecimento público, irrigação ou fins industriais, por conter sais e outros elementos (e eliminá-los custaria caro; poderia servir como água termal).

Segundo esse estudo, em território gaúcho o aqüífero se divide em quatro blocos e em cada um o sistema é diferente, até mesmo porque são vários lençóis de água, e não um único. Também não é um grande lago subterrâneo, e sim rocha arenosa que acumula há dezenas de milhares de anos água de chuva infiltrada muito lentamente - da mesma forma que é lenta a reposição da água retirada. Também diz o geólogo que essas águas subterrâneas não passam de um país para outro. E, a seu ver, as reservas não devem ultrapassar 60% do que tem sido calculado.

Outro pesquisador, Ernani F. Rosa Filho, da UFPR (um dos autores do livro Aqüífero Guarani - a Verdadeira Integração dos Países do Mercosul), também acredita que o volume de água acumulado no aqüífero pode ser menor, que boa parte dela é salobra e que a atual retirada para abastecimento e irrigação está sendo maior que a reposição.

É um tema importante para vários Estados. Este jornal mesmo, em editorial (4/5/2004, A3), lembrou que só na cidade de São Paulo 5.500 poços dependem do aqüífero, que abastece também centenas de cidades no Estado (47% dos municípios, segundo o professor Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências da USP). Mas só 1.800 poços são licenciados na cidade de São Paulo.

O professor Hirata concorda que não se trata de um aqüífero único totalmente interligado: "Em alguns setores é contínuo, em outros não - como no Paraná, por exemplo." Mas ainda não se tem idéia precisa da compartimentação. Em São Paulo, diz ele, o aqüífero, que tem 155.800 km2, mais de metade do Estado, é mais contínuo que no Paraná e no Rio Grande do Sul ou que na Argentina.

Acha ele também que o ainda escasso conhecimento sobre o aqüífero gera problemas. Um deles está em que as dimensões gigantescas levam muita gente a pensar que não há motivos para preocupação, com uma reserva tão ampla, evidenciada por poços de alta vazão como em São Paulo e no Uruguai. Mas "não se sabe o que pode acontecer a prazo maior, não se sabe qual o nível de exploração sustentável".

Há um projeto que se desenvolve no âmbito do Banco Mundial, com participação da ONU e do Mercosul, que pretende ampliar o conhecimento, indicar formas de resolver conflitos, propor tecnologias e recursos para a exploração. Mas está ainda no começo. Também há uma proposta de convenção entre Estados e países para proteção e gestão cooperativa do Aqüífero Guarani, em que um dos proponentes é a Faculdade de Direito da UFRS. Até que esses conhecimentos e projetos evoluam - o que não é fácil, dadas a complexidade do tema e as dificuldades operacionais - é prudente que os gestores aprimorem o monitoramento do uso (licenciamento, controle de poluição), para evitar que um potencial tão amplo se possa transformar em problema.

OESP, 07/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

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