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Um novo símbolo da extinção

O Globo, Ciência e Vida, p. 47
11 de Abr de 2004

Um novo símbolo da extinção
Sagüi do Rio representa tragédia dos primatas da Mata Atlântica

A floresta atlântica que um dia cobriu o Vale do Paraíba já se foi quase que por completo. As árvores deram lugar a fazendas, cidades e com elas desapareceu o lar de um dos primatas menos conhecidos e agora, também, um dos mais ameaçados da Terra. O corpo escuro e a cara branca renderam ao Callithrix aurita os nomes de sagüi-da-serra-escuro ou sagüi-caveirinha. Esse último nome, dizem especialistas, parece o mais adequado para uma criatura de hábitos furtivos, um fantasma da floresta, aparição cada vez mais rara e um dos mais recentes símbolos da extinção no Brasil.

Sobreviventes da floresta atlântica

Nativo do Rio de Janeiro e de pontos isolados de São Paulo e Minas Gerais, esse miquinho quase desconhecido do público é uma das três espécies de primatas da Mata Atlântica brasileira que cientistas destacam como em maior perigo de extinção. As outras são o muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides) e o macaco-prego-de-peito-amarelo (Cebus xanthosternos). Enquanto que os dois últimos constam oficialmente da lista dos animais criticamente ameaçados de extinção, o caveirinha é tão desconhecido e raro que Alcides Pissinatti, diretor do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas do país, faz questão de destacá-lo.

- Quase nada sabemos sobre esses animais, praticamente só o nome. E este fomos nós quem demos. Não é possível dizer nem quantos restaram na natureza - diz Pissinatti, um dos maiores especialistas brasileiros.

A Mata Atlântica é um dos ecossistemas mais ameaçados e biodiversos da Terra, atrás somente das florestas de Madagascar. Dela restam cerca de 7% mas, mesmo assim, um único hectare da mata na Bahia tem mais espécies de árvores do que a Europa inteira. Sobraram manchas isoladas de mata, últimos refúgios de animais só encontrados ali.

Pissinatti deposita suas esperanças de salvar os primatas num programa para a Mata Atlântica elaborado por Eloi Garcia, superintende de desenvolvimento científico da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e Inovação do Rio de Janeiro.

Projeto promete salvar espécies

Chamado "Mapeamento, caracterização, conservação e utilização sustentável da diversidade biológica da Mata Atlântica do Estado do Rio de Janeiro", o programa prevê parcerias com os ministérios do Meio Ambiente, de Ciência e Tecnologia e da Saúde para montar uma rede de pesquisa. A meta não é só inventariar o verdadeiro número de espécies de plantas e animais quanto reproduzir em cativeiro e reintroduzir espécies ameaçadas. Além dos três primatas, são destaque do projeto a paca e o porquinho do mato.

- Sequer sabemos direito o que existe na floresta e ela está sumindo. Para protegê-la é preciso conhecê-la melhor. Necessitamos da floresta para proteger nossos mananciais, garantir a biodiversidade. Além disso, o desequilíbrio ecológico está relacionado ao surgimento de doenças - diz Garcia, ex-presidente da Fiocruz e especialista em mal de Chagas, doença tropical que afeta o coração e tem elo com fatores ecológicos.

No Centro de Primatologia, na estação ecológica de Paraíso, Guapimirim, Pissinatti estuda e busca reproduzir 21 espécies de micos e macacos da Amazônia e da Mata Atlântica. Dentre elas estão os micos-leões dourado (Leontopithecus rosalia), preto (L. chrsopygus) e preto-de-cara-dourada (L. chrysomelas), todos ainda precisando de ajuda para continuar a existir. Porém, sem as jubas vistosas dos micos leões, o caveirinha, que sempre foi raro, ruma para o desaparecimento total sem alarde, nas últimas manchas de floresta.

Primatas brasileiros

O Brasil é considerado o país mais rico do mundo em espécies de primatas. De acordo com estimativas mais recentes, da ONG Conservação Internacional (CI), o País abriga 29% das espécies de primatas da terra. Dezessete por cento de todas as espécies de primatas existem apenas no Brasil.

O número exato de espécies é difícil de precisar, porque varia de acordo com o critério de classificação utilizado. Alcides Pissinatti diz que, se forem consideradas também as subespécies, o número chega a 180.

O pesquisador Anthony Rylands, da CI em Washington, diz que tamanha diversidade é devida ao fato de o país ter mais florestas tropicais do qualquer outro do planeta.

Três das espécies brasileiras estão entre as mais ameaçadas da Terra: muriqui, mico-leão-de-cara-preta e o macaco-prego-de-peito-amarelo.

Mico mestiço ameaça a saúde da floresta

Espécies invasoras podem exterminar as nativas e desequilibrar o ecossistema

A destruição de habitats e a caça são as maiores ameaças ao muriqui, ao macaco-prego-de-peito-amarelo e ao sagüi-caveirinha. Reprodução em cativeiro, reintrodução e preservação das florestas compõem a equação para salvá-los. Mas, todas as etapas são complexas. A biologia da maioria dos micos e macacos é pouco conhecida. Sabe-se que alguns, como o sagüi-da-serra-escuro - o caveirinha, morrem logo em cativeiro

A única colônia é a do Centro de Primatologia e ela agora está reduzida a dois animais. Por conta disso, Eloi Garcia afirma que o projeto de estudo da Mata Atlântica prevê a instalação de laboratórios para reprodução com fertilização in vitro e, mesmo em casos extremos, tentativas de clonagem.

- Os micos morrem sem que saibamos a causa. Temos muito o que aprender - diz Alcides Pissinatti.

Reintrodução é complexa e demanda mais proteção

Não basta soltar os animais na floresta. É preciso conhecer seus hábitos, garantir que não serão caçados de novo e que encontrarão as condições muito específicas das quais precisam para sobreviver.

- Além da reintrodução, a criação de mais áreas protegidas é urgente para a proteção dessas espécies - afirma Cecília Kierulff, especialista em mamíferos da ONG Conservação Internacional, que conduz um levantamento das populações de Cebus xanthosternos (o macaco-prego-de-peito-amarelo), uma das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo.

Kierulff e Pissinatti chamam atenção para um outro problema: a invasão dos habitats por espécies não nativas.

- O macaco-prego-de-peito-amarelo habita matas do norte de Minas, Bahia e Sergipe. Espécies diferentes de macaco-prego existem em outras áreas. Se espécies erradas são soltas em áreas erradas, podem competir com as nativas. O mico-estrela, por exemplo, foi solto em várias florestas do Rio de Janeiro mas, originalmente, não ocorria nessas áreas. Eles podem competir e expulsar o mico-caveirinha, que não tem para onde ir e morrerá - salienta Kierulff.

Facilitada pela destruição das matas, que concentra animais em áreas cada vez menores, a invasão tem outro efeito temido: a hibridização. Micos leões de espécies diferentes cruzam e têm filhotes férteis. O mesmo pode acontecer entre os micos do gênero Callithrix, do qual fazem parte o caveirinha e o comuníssimo mico-estrela (C. jacchus). Os híbridos podem tomar o lugar de espécies raras e exigentes em relação ao habitat como o caveirinha, levando-o à extinção.

Os efeitos dos micos mestiços na natureza são imprevisíveis. Eles são estrangeiros, sem habitat e hábitos definidos que podem, inadvertidamente, agravar a destruição.

O Globo, 11/04/2004, Ciência e Vida, p. 47

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