VOLTAR

Tupi or not Tupi

FSP, Ilustrada, p. C1
21 de Jul de 2016

Tupi or not Tupi
Para ensaiar vivências, Bené Fonteles constrói oca em Bragança Paulista (SP)

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A BRAGANÇA PAULISTA

Descalço, com chocalhos na cintura e nos tornozelos, Bené Fonteles dá voltas na fogueira no meio da oca enquanto canta várias vezes o mesmo verso, numa espécie de mantra. "Vamos vivenciar a música", ele interrompe, falando baixinho. "Ouça o som do meu corpo."
Ele quer que a pequena plateia em volta dele saia pelo campo tocando algum instrumento. Uma mulher levanta um estranho objeto de argila e pergunta como usar aquilo. O artista não responde, mas dá a entender que ela pode fazer o que quiser.
"Tem muita gente aqui que não é artista, não precisa ser", diz Fonteles, na oca que mandou construir na fazenda Serrinha, em Bragança Paulista, nos arredores de São Paulo. "Essa oca não é arte. É um suporte de vivências, um lugar para acontecer coisas. Os índios também não acham que isso é arte. Para eles, arte é a vida deles. Eles nem têm essa palavra no vocabulário."
Fonteles, um branco de 63 anos, que de vermelho tem na pele só os rastros de um dia de sol, também vem tentando se desvencilhar do que chama de "compromisso" com a arte, mesmo estando escalado para a próxima Bienal de São Paulo, que abre em setembro, no parque Ibirapuera. Ali, ele vai construir mais uma oca para orquestrar suas vivências.
Mas, antes de ocupar o pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer, quis fazer uma espécie de ensaio da coisa toda no Festival de Arte Serrinha, que acontece todo inverno no interior paulista.
"Aqui é a iniciação de tudo", ele diz, do lado de fora da oca na fazenda. "Lá vai ser diferente porque não pode enfiar nenhum pau no chão nem fazer nada com as colunas. É a mesma história, só que a estrutura é toda de taipa. A construção cabocla, que é o cruzamento de branco e índio, parte da estrutura indígena para fazer as paredes de barro. Dentro da Bienal, quero pôr essa tecnologia indígena em confronto com a arquitetura modernista."
Desde que viveu em Mato Grosso, na década de 1980, Fonteles também não para de pensar no confronto entre brancos e índios. "Era impossível ficar indiferente ao extermínio que testemunhei lá", diz o artista. "E há ainda uma grande indiferença da sociedade. Ela quer tornar o índio invisível. E minha intenção é dar uma visibilidade a isso."
Nascido à beira do rio Caetés, no Pará, o artista tem desde pequeno um contato com aldeias. Viveu tempos na Bahia, onde conheceu Gilberto Gil, e despontou como artista contemporâneo, nos anos 1970, em São Paulo, onde criava "recomentários" e "redimensionamentos" do noticiário ao longo da ditadura.
XAMÃ
"Dizem que faço arte contemporânea desde o início, mas não exponho numa galeria desde os anos 1980. Não tenho importância nenhuma nessa história, nem quero ter", diz Fonteles. "Se hoje o pessoal chama para a Bienal é porque eles querem outra coisa. Não é só o artista que estão convidando. Dizem que também sou um xamã."
Jochen Volz, o alemão à frente da próxima edição da mostra paulistana, reconhece que se interessou pela "transversalidade" do artista.
"Ele passa por disciplinas. É ativista, cozinheiro, xamã, compositor. É muito claro na obra dele que talvez o objeto de arte não importe tanto, mas ele usa a arte como um campo de expansão e de experimentação", diz Volz. "E o que a gente está propondo é pensar a arte como um lugar para questionar as lógicas dominantes que vivemos, uma plataforma para poder imaginar outros futuros. O Bené faz isso de forma muito linda."
Outros artistas escalados para a Bienal também trafegam por esse mundo em que, nas palavras de Volz, "a linha é muito fina entre o que é escultura e o que é experiência".
Enquanto a finlandesa Pia Lindman e o brasileiro José Bento fazem trabalhos mais próximos da ideia de um ambiente a ser atravessado do que um objeto, outros nomes da exposição, como o coletivo pernambucano Vídeo nas Aldeias e Maria Thereza Alves, ainda refletem sobre a questão indígena no Brasil.
Esta última, casada com o artista americano Jimmie Durham, que é índio e fez de sua identidade um pilar de sua obra plástica, vem consultando lideranças em aldeias para discutir como o ensino do país poderia incorporar conhecimentos indígenas.
Em tempos de tensão política acirrada, com a recente -e logo desfeita- nomeação de um general para o comando da Funai, a arte contemporânea volta ao debate sobre direitos das populações indígenas, num misto de reverência a formas alternativas de pensamento e certo oportunismo na apropriação de sua estética, da pintura corporal a rituais religiosos.
"Tem coisas duvidosas", diz Fonteles. "Mas não é só apropriação. É recriação. Estou na luta com eles, então é outra atitude. Existem ruralistas que querem que não existam mais índios, matam para roubar terras. O cerrado hoje é só soja e pasto. Os índios são os últimos guardiões disso tudo, por isso estamos juntos."

Estética indígena vira alvo de museus e moda entre artistas contemporâneos

SILAS MARTÍ
ENVIADO A BRAGANÇA PAULISTA

Quando diz estar lutando pelos índios, Bené Fonteles não é o único artista contemporâneo a levar para as exposições experiências parecidas com as de uma aldeia, de construção de ocas a rituais com música e dança.
Nos últimos anos, grandes grifes da arte do país, de Adriana Varejão a Ernesto Neto, passando pelo novato -e ultrabadalado- Paulo Nazareth, vêm flertando com esse universo.
Neto levou índios para uma turnê pela Europa e exibiu cerimônias deles em museus e galerias. Varejão criou autorretratos em que surge com o rosto coberto de padrões da pintura corporal de uma série de tribos, enquanto Nazareth pediu para ser batizado como índio numa tribo de Mato Grosso do Sul.
Escalado para a Bienal de Veneza, há três anos, ele viajou até lá com alguns de seus irmãos guarani-caiová, que ficaram perambulando sem rumo pela cidade dos canais.
É fato que desde o modernismo, de Victor Brecheret a Tarsila do Amaral e Vicente do Rego Monteiro, artistas do país dialogam com a estética das aldeias tentando chegar a um retrato mais realista do que seria a identidade brasileira.
Mas só agora os museus de arte do país, fora das instituições dedicadas a etnologia e arqueologia, fazem esforços para rever pontos cegos da história em busca de uma presença indígena mais forte.
O Masp acaba de receber em comodato uma das maiores coleções de arte pré-colombiana do continente -cerca de 900 peças, em especial um enorme conjunto de cerâmica marajoara, da coleção do casal Edith e Oscar Landmann.
No ano passado, o Instituto Inhotim, nos arredores de Belo Horizonte, abriu um pavilhão inteiro dedicado à obra de Claudia Andujar, fotógrafa que passou a vida retratando os ianomâmi e lutando pela causa indígena.
Moacir dos Anjos, curador que já esteve à frente da Bienal de São Paulo, está organizando uma mostra em que faz dialogar adornos indígenas com obras de artistas contemporâneos que abre em setembro no Sesc Pinheiros.
Na opinião dele, esse fenômeno "reflete o mínimo de visibilidade que o genocídio das populações indígenas, ainda em marcha, tem tido nos últimos anos".

FSP, 21/07/2016, Ilustrada, p. C1

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/07/1793633-para-ensaiar-viv…

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/07/1793635-estetica-indigen…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.