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Troco em Morales

CB, Mundo, p. 18
19 de Nov de 2006

Troco em Morales

Claudio Dantas Sequeira e Mariana Mazza
Da equipe do Correio

O presidente Evo Morales perdeu a chance de conseguir para a Bolívia uma saída para o Oceano Atlântico. A crise do gás e as poucas vantagens econômicas levaram o governo Lula a desconsiderar o vizinho como parceiro no complexo do Rio Madeira, principal eixo da Iniciativa para Integração Regional Sul-Americana (IIRSA). O megaprojeto, fiel à lógica da interiorização do desenvolvimento, previa tornar o rio navegável com a construção de quatro usinas e as respectivas eclusas - comportas que permitem o trânsito de embarcações através das barragens. No início de outubro, a idéia das eclusas foi posta de lado pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.
Ela mesma havia encampado o projeto no plano estratégico do Ministério de Minas e Energia, quando comandava a pasta. Foi sua equipe que sugeriu a construção de duas hidrelétricas de menor porte em solo brasileiro - Jirau e Santo Antônio -, em vez de apenas uma de grande porte. Outras duas seriam feitas em parceria com a Bolívia: uma binacional, na fronteira (Guajará-Mirim), e outra em território boliviano (Cachuela Esperanza). Dilma costumava ter sobre a mesa o estudo que o BNDES elaborou em 2003, com a Corporação Andina de Fomento(CAF), listando benefícios socioeconômicos e políticos, além de custos. A ministra chegou a apresentar pessoalmente o projeto ao então presidente da Bolívia, Gonzalo Sánchez de Lozada.
A análise do impacto econômico previa ganhos conjuntos de US$ 8 bilhões (R$ 17 bilhões) - o valor do PIB boliviano. "Evo Morales adora o projeto. Afinal, a Bolívia ganharia de presente uma hidrelétrica que geraria para eles receita anual de US$ 400 milhões", comenta um alto funcionário ligado às negociações. O Brasil compraria a energia gerada em solo boliviano. A hidrovia seria financiada pelo BNDES, CAF e Banco Interamericano de Desenvolvimento(BID). O funcionário acrescenta que La Paz tenta a reconciliação, mas na Casa Civil ninguém quer ouvir uma palavra em espanhol. "Você sabe como é a Dilma. Ela não é fácil", diz.
Lealdade
O senador Delcídio Amaral (PTMS) confirma a falta de clima para tocar uma obra com a complexidade do projeto do Madeira. Amaral, que já foi diretor de Gás a Abastecimento da Petrobras, aposta que a segunda etapa ficará na gaveta por muito tempo. "É um grande desafio colocar um projeto nessa região. E fica ainda mais difícil quando envolve uma usina binacional, nas atuais circunstâncias", avalia. O analista político Carlos Cordero, da Universidade Mayor de San Andrés, considera que a crise do gás teve papel importante na decisão do governo Lula de suspender o projeto. Mas põe parte da culpa na instabilidade política do país.
"Até que se resolva a questão da Assembléia Constituinte, o governo não terá como pensar em projetos comerciais e investimentos", avalia. No entanto, Cordero acha que a aprovação dos novos acordos com as empresas petrolíferas "dará a segurança jurídica que tem faltado" para investidores e governos parceiros.
"Um projeto como o complexo hidroviário tem mais vantagens para nós. Por isso, o governo boliviano precisa ser leal ao Brasil e manter o gás a bom preço pelos próximos 20 anos. Como recompensa pela lealdade, o projeto poderia ser retomado", sugere.
A hidrovia faria parte do sistema de transporte multimodal interoceânico, ligando também por rodovia e ferrovia os portos peruanos voltados para o oceano Pacífico. Sob a ótica da geração de energia, o complexo do Madeira tem importância fundamental para o Brasil. Tanto que a parte brasileira do projeto vem sendo tocada. As usinas em território nacional deveriam ser licitadas neste ano, mas impasses socioambientais atrasam a agenda. Mesmo assim, a equipe do Ministério de Minas e Energia confia que as obras sejam concluídas para suprir a demanda por eletricidade a partir de 2011.
Do ponto de vista energético, a complementação do complexo do Madeira fazia parte do reforço do abastecimento para o Brasil.
Apenas a binacional Guajará-Mirim, que seria construída em parceria com a Bolívia, teria potência de geração de 3 mil megawatts (MW), que a tornaria uma usina de grande porte. A maior parte dessa energia seria usada para atender os brasileiros, como ocorre com a binacional Itaipu, dividida com o Paraguai. A quarta usina, chamada de Cachuela Esperanza, seria construída em território boliviano, mas a energia teria como destino o Brasil.

Vocação marítima

A Bolívia apresenta um importante tráfego fluvial, mas tem problemas para escoar a produção. Cerca de 99% do comércio exterior de Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai com a Ásia, América do Norte e Europa é feito por via marítima. Os países do Cone Sul têm em conjunto 4,5 vezes mais comércio por mar que os demais sul-americanos.
Um relatório de avaliação do sistema portuário regional - elaborado por uma comissão temática da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana - alerta para a tendência mundial de transferência do tráfego terrestre para o marítimo, a fim de reduzir custos. Apesar de propagar a integração regional, o governo Lula está ciente de que a criação de eixos interoceânicos tende a beneficiar os países voltados para o Pacífico.
Estudos demonstram ser mais vantajoso atravessar o Atlântico para chegar à Ásia ou ao Oriente Médio - sem falar de Europa e EUA. "De qualquer porto brasileiro ou de Buenos Aires se chega antes a Cingapura do que partindo da costa oeste sul-americana", afirma o relatório. O Rio de Janeiro está à mesma distância de Hong Kong que Antofogasta, no Chile. "A costa do Pacífico não oferece vantagem comparativa ao comércio da América do Sul com a Ásia. Mas tem vantagem no comércio com a América do Norte", conclui o estudo.
Dívida
O Brasil possui uma dívida histórica com a Bolívia. Em 1903, o Barão do Rio Branco assinou o Tratado de Petrópolis, que definiu a fronteira entre os países. O documento previa como compensação pela anexação do Acre a cessão de territórios próximos à foz do Rio Abunã e na bacia do Rio Paraguai, além do pagamento de 2 milhões de libras esterlinas (em valores de hoje, R$ 600 milhões).
Como os bolivianos haviam perdido o litoral para o Chile na Guerra do Pacífico (1879-1884), firmou-se um Tratado de Comércio e Navegação que permitiu a Bolívia usar os rios brasileiros para alcançar o Atlântico. O governo boliviano poderia estabelecer alfândegas em Belém, Manaus e Corumbá. O Brasil foi obrigado a construir uma ferrovia "desde o porto de Santo Antônio, no Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré", com um ramal que chegasse ao território boliviano. A estrada de ferro Madeira-Mamoré foi concluída em 1912, sem o ramal até a Bolívia. (CDS e MM)

Oportunidades perdidas
Sem o complexo do Madeira,Bolívia e Brasil perdem vários benefícios econômicos Veja as principais características que fizeram do projeto uma vitrine da integração regional:

Integração de infra-estrutura energética e de transporte entre Brasil, Bolívia e Peru

Acréscimo de 4,255 mil km de rios navegáveis na malha hidroviária da América Latina

Geração de energia em quantidade expressiva e de baixo custo para Brasil e Bolívia

Consolidação de um pólo industrial no Oeste brasileiro, com potencial para os setores agrícola e naval

Queda nos custos de produção, ao estabelecer novo eixo industrial próximo aos grandes centros consumidores do Brasil

Aumento da produção agrícola na Bolívia em 24 milhões de toneladas por ano, segundo as projeções de especialistas. No Brasil, o acréscimo estimado é da ordem de 25 milhões de toneladas

Conexão dos estados de Rondônia, Acre e Amazonas, mais o oeste do Mato Grosso, ao Sistema Interligado Nacional (SIN), reduzindo o custo das tarifas de energia em todo o Brasil

CB, 19/11/2006, Mundo, p. 18

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