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Toma que a favela e tua

O Globo, Rio, p.13
08 de Out de 2005

Toma que a favela é tua
Prefeito desiste de remover Vila Alice, em Laranjeiras, e sugere que moradores indenizem invasores
Apesar de ter assinado um decreto desapropriando o terreno da Vila Alice em dezembro do ano passado e da afirmação dada anteontem pelo subprefeito da Zona Sul, Marcelo Maywald, de que a favela de mais de 90 casas em Laranjeiras seria retirada até o fim do ano, o prefeito Cesar Maia voltou atrás mais uma vez ontem. Ele agora disse, por e-mail, que não pretende reassentar nem indenizar os moradores da comunidade, que fica na Área de Proteção Ambiental (APA) de São José. E deu aos proprietários do terreno ocupado a incumbência de negociar a saída das famílias, como ocorreu em 1993, quando moradores do Alto Leblon se juntaram para financiar a retirada de invasores.
Há moradores que têm interesse em ser reassentados ou indenizados. Mas não há cadastramento para isso nem decisão de fazê-lo. Lembro-me no Alto Leblon, quando os moradores se uniram e abriram um livro de ouro. Todas as pessoas que estavam ali na invasão foram para um lugar seu e muito melhor. A prefeitura fez o meio-campo e garantiu que tudo saísse bem. Todos, de um lado e outro, ficaram felizes. Se as pessoas que moram no bairro quiserem interagir para ajudar a melhorar a vida dos moradores da Vila Alice, e estes entenderem que será muito melhor para eles, a prefeitura atuará coordenando e viabilizando”, disse Cesar no e-mail.
Se o prefeito deixa a solução do imbróglio da Vila Alice para os proprietários da área invadida — o condomínio Parque Residencial de Laranjeiras e a Sociedade Hebraica — moradores de um edifício vizinho, na Rua das Laranjeiras 314, também não estão livres de problemas. Depois de receber uma denúncia sobre a construção de dois barracos no terreno do edifício, a Secretaria municipal de Urbanismo ordenou em março deste ano que os próprios condôminos providenciassem a retirada das famílias. Desde então, eles lutam na Justiça pela reintegração de posse:
— Acho estranho que, ao pedir ajuda, recebemos uma notificação da prefeitura. Como vamos retirar essas pessoas daqui? Se fossem apenas construções, seria mais fácil demolir — disse a moradora Flávia Cunha.
Subprefeito se cala diante de mudança
A reviravolta anunciada ontem por Cesar Maia no caso da Vila Alice provocou o silêncio do subprefeito Marcelo Maywald, que havia anunciado a remoção. Ele informou, por sua assessoria de imprensa, que não ia se manifestar sobre o assunto ontem. Por outro lado, a síndica do condomínio Parque Residencial Laranjeiras, Catharina de Jesus e Silva, não poupou palavras na reação às declarações do prefeito:
— Ele (o prefeito) deve estar esquecendo que pode sair candidato no ano que vem. Só aqui no condomínio são cinco mil votos. Não entendo como um homem tão inteligente como ele está tomando uma atitude como esta. Eu não posso cruzar os braços diante dessa situação. Os moradores me cobram todos os dias a retirada daquela favela.
No e-mail enviado ao GLOBO, ao citar a falta de cadastramento dos moradores da Vila Alice, o prefeito disse ainda que, se muitos moradores da favela tiverem este interesse e procurarem a SMH (Secretaria Municipal de Habitação), vamos estudar para que eles melhorem de vida”. Um dia antes, a subprefeitura da Zona Sul havia informado que já havia 83 famílias cadastradas com previsão de receber R$10 mil cada uma. Os recursos viriam do Fundo de Conservação Ambiental. Na Vila Alice há números pintados na maioria das casas, que trazem também a sigla SMH.
O próprio texto do decreto de desapropriação do terreno, publicado no Diário Oficial no dia 15 de dezembro do ano passado, previa a remoção dos moradores. O texto cita a necessidade de garantir uma realocação justa e pacífica de ocupantes de área de risco e facilitar as ações que diversos órgãos da prefeitura deverão realizar”. O decreto ainda apontava as responsabilidades dos órgãos da prefeitura no caso: As secretarias de Habitação, Urbanismo, Meio Ambiente e Obras, juntamente com a subprefeitura Sul 2, deverão tomar as medidas necessárias à compensação de benfeitorias irregularmente construídas e à recuperação ambiental da área”.
Diante a atitude do prefeito, o diretor-executivo da Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião, Ricardo Gouveia, que auxilia juridicamente os moradores da Vila Alice, disse que já pediu apoio ao Serviço de Patrimônio da União:
— Cesar Maia já havia dito que não tinha verba para as indenizações. Agora queremos ajudar as famílias com o financiamento de R$20 mil para que eles consigam uma nova casa.
Já o presidente da Associação de Moradores e Amigos de Laranjeiras, Paulo Marrayo, ficou surpreso com a mudança de rumo do caso:
— Vamos marcar uma reunião com o condomínio e os moradores da Vila Alice para estudarmos uma solução para o problema. Sobre a proposta do Cesar Maia de querer unir a população para arcar com as indenizações, prefiro conversar com os membros da associação.
O imbróglio em torno do terreno da Vila Alice começou em 1992, quando o Condomínio Parque Residencial Laranjeiras pediu na Justiça a reintegração de posse. Na época, havia apenas 39 barracos na comunidade. Em setembro do ano passado, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça deu ganho de causa aos proprietários. Desde então, os donos do terreno não conseguem fazer com que a sentença seja executada. Este ano, durante uma tentativa, moradores da favela chegaram a atear fogo num matagal do terreno.
Para os moradores do prédio vizinho, na Rua das Laranjeiras 314, o temor é de viver um problema semelhante nos próximos anos. Os barracos foram construídos no terreno há um ano e os condôminos foram responsabilizados. No documento enviado pela prefeitura, o município ordena a paralisação imediata” das obras e exige a demolição em 30 dias” das casas. Agora, o edifício aguarda decisão da Justiça para retirar os invasores.
— Temo que outros barracos sejam construídos na área e uma grande favela tome conta da encosta — disse a moradora Larissa Cunha.
O promotor Carlos Frederico Saturnino, da 1ª Promotoria de Tutela Coletiva e Proteção ao Meio Ambiente e ao Patrimônio Cultural, disse que ambos — a prefeitura e os proprietários — têm responsabilidade sobre a conservação do terreno que está na APA de São José:
— Por ser dentro de uma APA, a prefeitura tem o dever de manter a área conservada. Mas o condomínio também não pode se eximir, por ser área particular. Se nenhuma providência for tomada, o Ministério Público pode propor uma ação civil contra os dois e os invasores.

Velho enredo
O CASO das duas favelas que resistem nas encostas da Rua Alice, em Laranjeiras, repete o enredo que transformou o Rio no que se vê hoje.
ALGUNS POUCOS barracos são erguidos, o poder público nada faz, a população de favelados cresce e logo aparecem os políticos populistas de sempre para vender proteção em troca de votos da comunidade”.
COSTUMA SURGIR, também, um juiz para dar veredictos em ações de retomada de posse não com base na lei, mas a partir de num tosco e equivocado conceito de justiça social”.
UM DIA, pelo seu tamanho, a favela é considerada irremovível pela prefeitura. Foi assim com a Rocinha e tantas outras. Ao que tudo indica, são grandes as chances de acontecer o mesmo em Laranjeiras.

O vaivém de Cesar
As idas e vindas do prefeito Cesar Maia sobre o tema remoção de favelas começou quando foi publicada entrevista, na edição de domingo de O GLOBO, no dia 2 deste mês, em que ele afirmou que a prefeitura não podia demolir prédios em áreas carentes porque estava engessada pela Lei Orgânica. No mesmo dia, vereadores afirmaram que, se Cesar quisesse, bastava enviar um projeto de modificação da lei que a Câmara o aprovaria já que o prefeito tem maioria e seu partido (PFL) é o maior da bancada. Na segunda-feira, o Ministério Público afirmou que era da prefeitura a tarefa de fiscalização das favelas. Na mesma semana, cinco vereadores apresentaram projetos para mudar a Lei Orgânica. Mas no dia 4, Cesar voltou atrás, dizendo ser radicalmente contra as remoções” e que as favelas estão aí para ficar”.

Espigões de multiplicam na Rocinha
Líder comunitário diz que novas lajes surgiram após declaração de César
Sem regras que fixem gabaritos, os construtores informais da Rocinha estão transformando o trecho próximo ao espigão da comunidade (Estrada da Gávea 304) numa espécie de selva de pedra, que cresce num ritmo ainda mais acelerado. Carlos Costa, presidente da Associação de Moradores do Laboriaux, uma das mais novas regiões da favela, revelou que as lajes voltaram a subir depois da declaração do prefeito Cesar Maia de que é muito melhor ter prédios grandes na Rocinha do que na praia, pois eles produzem sombras”
— Só na minha vizinhança, dois moradores ergueram mais lajes nas noites seguintes à fala do prefeito. Fui reclamar e eles simplesmente colaram na parede a reportagem em que Cesar Maia praticamente estimula os espigões. O que eu poderia responder? — disse Carlos.
Prefeito desautoriza secretário de Urbanismo
Embora as obras continuem a todo o vapor, por determinação do prefeito Cesar Maia a minuta de decreto criando parâmetros urbanísticos para a Rocinha está em compasso de espera. O secretário municipal de Urbanismo, Alfredo Sirkis, chegou a anunciar que entregaria até ontem o documento a Cesar Maia. Mas, durante reunião com o segundo escalão da prefeitura, quarta-feira no Riocentro, o prefeito desautorizou Sirkis, ao fazer duras críticas a ele e afirmar que o secretário estava sendo pautado pela mídia.
Por e-mail, o prefeito voltou a desautorizar Sirkis, que na terça-feira anunciara o programa Rocinha Legal. Além da minuta de decreto, o plano que foi apresentado prevê a remoção, por etapas, de cerca de 360 famílias, sendo prioritário o reassentamento ou pagamento de indenização a 70 delas que moram fora dos eco-limites (cercas). Para a demolição das 70 casas que estão fora das barreiras, foi estimado um gasto de R$700 mil.
É um absurdo o numero de imóveis que ele (Sirkis) falou. Absurdo! Os que estão fora dos eco-limites e que serão reassentados — dentro da Rocinha, por vontade e interesse dos moradores e a pedido deles — não são nem 5% do numero citado”, disse o prefeito no e-mail. O secretário não quis comentar o assunto.
Fiscalização de obras é feita por três funcionários
Com entrada pelo Portão Vermelho (Estrada da Gávea 306), área de preservação permanente, um edifício já chegou ao sétimo andar e está parcialmente ocupado. Num prédio logo abaixo, esta semana operários faziam laje no quarto pavimento. Mais abaixo, o edifício em cujo térreo funciona o Bobs tem nove andares (incluindo duas coberturas). Perto dali, num beco da Rua Dois, um imóvel também com nove pavimentos se destaca.
Em reunião terça-feira com representantes de associações de moradores, do Ministério Público e do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio (Sinduscon-RJ), na qual foi apresentado o programa Rocinha Legal, a coordenadora de Regularização Urbanística da Secretaria de Urbanismo, Tânia Castro, revelou a precariedade da fiscalização na favela. Um funcionário da secretaria é encarregado de fiscalizar diariamente as construções. Num único dia da semana, outros dois servidores da prefeitura se juntam a ele no Posto de Orientação Técnica (POT) da comunidade.
— A Rocinha é um megaproblema. Tem de haver um compromisso da cidade toda para que se possa resolvê-lo — disse Tânia.
Para o presidente da Associação de Moradores do Bairro Barcelos (Rocinha), Sebastião José Filho, as funcionários da prefeitura que trabalham no POT quase nada podem fazer:
— É uma covardia o que a prefeitura faz com esse pessoal. Eles são muito poucos para atuar numa comunidade do tamanho da Rocinha.
Luiz Fernando Penna, diretor da Associação de Moradores do Alto Gávea, concorda:
— A prefeitura precisaria ter pelo menos 20 fiscais na Rocinha.
Segundo o promotor Carlos Frederico Saturnino, da Primeira Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva/Meio Ambiente, o número pequeno de funcionários no POT da Rocinha mostra que conter o crescimento da favela não é prioridade da atual administração:
— A fiscalização teria de ser permanente, feita por mais funcionários e com monitoramento por fotografias de satélite — afirmou o promotor, lembrando que o Ministério Público aguarda decisão do Judiciário sobre ação contra 14 proprietários e vendedores de lotes no Portão Vermelho, que pede a demolição de dez construções.
O presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara de Vereadores, Luiz Antônio Guaraná, ressaltou que o problema da fiscalização de obras na Rocinha não depende só de funcionários:
— É impossível fiscalizar se não se tem uma legislação. Hoje, tudo é ilegal na Rocinha.
Roberto Kauffmann, presidente do Sinduscon-Rj, também comentou o assunto:
— Para conter o crescimento da Rocinha e de outras favelas, é preciso haver parceria entre os governos municipal, estadual e federal. A prefeitura tem de atuar junto, por exemplo, com a Secretaria estadual de Meio Ambiente e o Ibama. Em paralelo, tem de ser regulamentada a lei que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, para facilitar as construções para a baixa renda.

MP envia pedido de remoção
Os promotores Rosani da Cunha Gomes e Carlos Frederico Saturnino, titulares da Segunda e da Primeira Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva/Meio Ambiente, enviaram ontem recomendação ao prefeito Cesar Maia, fixando prazo de 20 dias para que ele apresente um projeto de remoção de 14 favelas, entre elas Vila Parque da Cidade (Gávea), Grotão (Jardim Botânico) e Mata Machado (Alto da Boa Vista).
As favelas foram escolhidas pelo Ministério Público (MP) como prioritárias para a desocupação, por causa da velocidade do seu crescimento e por estarem em lugares de preservação permanente e de risco de desabamento e inundações. Segundo os promotores, a prefeitura não precisa alterar a Lei Orgânica para remover essas comunidades.
Saturnino afirmou que o objetivo da recomendação encaminhada à prefeitura é a assinatura de um termo de compromisso, mas admitiu que as possibilidades são reduzidas. Segundo ele, por orientação da Procuradoria Geral do município, a assinatura de acordos com o MP está proibida, o que dificulta a atuação do órgão:
--- Infelizmente, desde 2001, o município não celebra mais termos de ajustamento de conduta ambientais com o Ministério Público.

O Globo, 08/10/2005, p. 13-14

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