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Tesouros ameaçados

O Globo, Sociedade, p.21
02 de Jan de 2018

Tesouros ameaçados
Cerrado, Caatinga e Pampas sofrem com falta de regulamentação e monitoramento

RENATO GRANDELLE
renato.grandelle@oglobo.com.br

Peculiares, ameaçados, fora da lei. Enquanto a Amazônia e a Mata Atlântica, mesmo diante de tantos problemas, conquistaram na Constituição o título de patrimônio nacional, três biomas que abrangem 35% do território do país seguem sem uma legislação que reconheça seu ecossistema diferenciado e o risco que correm diante de atividades econômicas predatórias. O Cerrado, a Caatinga e os Pampas não têm o desmatamento monitorado, sofrem com a expansão da fronteira agrícola ou com o mero desconhecimento sobre a riqueza de sua paisagem.
Há propostas de emenda constitucional (PECs) que tentam reverter esta situação e conferir a estes três biomas o status de patrimônio nacional. Os projetos, porém, não conseguem avançar na pauta do Congresso. A PEC 504/ 2010, que beneficiaria a Caatinga e o Cerrado - a savana mais rica do mundo, que abriga 5% da biodiversidade do planeta -, aguarda há três anos e meio uma oportunidade para ser discutida no plenário da Câmara dos Deputados. Já a PEC 05/2009, que aborda a proteção dos Pampas, espera desde março de 2015 a sua inclusão na ordem do dia no Senado.
Flávio Ahmed, integrante da Comissão de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), destaca que o país tem desde 1981 uma política nacional do meio ambiente que incentiva fatores como o equilíbrio ecológico, a racionalização do uso do solo e a proteção dos ecossistemas, mas muitos desses pontos não foram implementados de forma eficaz até hoje. Outra chance de proteger de maneira eficiente as áreas esquecidas também foi perdida durante a confecção do texto constitucional, em 1988, deixando esses biomas à míngua até os dias atuais.
- Depois, com a elaboração da Constituição Federal, os ambientalistas tentaram assegurar a todos os biomas o título de patrimônio nacional, mas havia uma forte pressão da bancada conservadora contrária a esta reivindicação - recorda. - Existiam questionamentos, por exemplo, se os Pampas deveriam ser considerados um bioma e qual era a biodiversidade da Caatinga, que muitos acreditam erroneamente se tratar apenas de um deserto.
Para Ahmed, as PECs que tramitam no Congresso salvaguardam as particularidades de cada bioma, e as leis respectivas determinariam especificamente os locais onde se pode suprimir a vegetação sem prejudicar a fauna e a flora. Também contribuiriam para mapear as áreas em que ações de replantio são mais urgentes, sobretudo após a chegada do agronegócio ou a construção de empreendimentos imobiliários. Ações que, na opinião do especialista, são necessárias para garantir a sobrevivência dessas regiões em risco.
NECESSIDADE DE AUXÍLIO CIENTÍFICO
Tiago Reis, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), concorda que as atividades econômicas contribuíram para a falta de reconhecimento do Cerrado:
- À época da Constituição, a Amazônia já figurava no imaginário brasileiro e mundial como um grande patrimônio coletivo - conta. - Já o Cerrado era transformado pela tecnologia agrícola, que proporcionou a adaptação das sementes adequadas para o cultivo naquela regi- ão. Era o triunfo da soja em um local que todos consideravam feio, sujo e que deveria ser aberto. Por isso, tem uma legislação flexível, e o Congresso resistirá em aumentar sua conservação.
O efeito dos projetos, no entanto, será capenga se não houver um auxílio científico. Os dados do Ibama mais atuais sobre desmatamento de Cerrado, Caatinga e Pampas remontam a 2008. O Ministério do Meio Ambiente comprometeuse a começar até 2020 a realização de levantamentos anuais.
Coordenadora geral de Observação da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Leila Fonseca revela que o órgão obteve, há duas semanas, R$ 50 milhões para monitorar o desmatamento em quatro biomas - Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal - nos próximos quatro anos. Os recursos serão destinados para o uso de equipamentos e a contratação de especialistas na área de sensoriamento remoto, uma demanda antiga para auxiliar na proteção dessas áreas.
- Nunca tivemos recursos para realizar este trabalho fora da Amazônia. Procuramos financiamentos alternativos para, agora, estender este trabalho para outras regiões - conta Leila. - Calculamos as verbas necessárias de acordo com a especificidade de cada bioma.
Os trabalhos estão mais avançados no Cerrado, cujo projeto de monitoramento contra a devastação recebeu um financiamento do Banco Mundial de US$ 9,25 milhões, o equivalente a R$ 30,7 milhões. O programa será desenvolvido nos próximos quatro anos. Leila, no entanto, preocupa-se com o que ocorrerá a partir daí.
- O governo precisará assumir os custos, e eles serão elevados, porque o Cerrado é um bioma muito complexo, que conta com diversas formas de exploração e degradação: as queimadas, a mineração, a agropecuária - enumera. Em locais onde há pouco orçamento, é possível fazer apenas um monitoramento parcial sobre os estragos no meio ambiente.
Renê Luiz de Oliveira, coordenador geral de Fiscalização Ambiental do Ibama, reconhece que o órgão prioriza a realização de operações na Amazônia, mas sublinha que outras localidades do país também são contempladas.
- Hoje há um foco no combate ao desmatamento na Amazônia Legal, não pela necessidade constitucional, mas por acordos nacionais e internacionais - explica. - Os estados da Região Norte precisam de maior apoio logístico para organizar sua documentação e infraestrutura do que o resto do país.
Oliveira ressalta que há mais de uma década o Ibama não concentra toda a gestão ambiental do país. Apesar do contingenciamento de verbas no Ministério do Meio Ambiente, o órgão tem conseguido manter o orçamento voltado para a fiscalização ambiental - em 2015, foi de R$ 71,5 milhões; em 2016, recuou para R$ 70,2 milhões e, este ano, subiu para R$ 76,6 milhões, verba que sustentou cerca de 1.400 operações em todos os biomas, aplicando multas que chegaram à marca de R$ 3 bilhões.
Ainda assim, o instituto preocupa-se com a redução de seu efetivo. Diante da aposentadoria de servidores, o Ibama solicitou que o governo promova um concurso público para preencher 1.600 vagas, e também investe em cursos para que analistas ambientais possam atuar no campo como fiscais.
A carência de áreas legalmente conservadas é apontada como uma das principais vulnerabilidades dos biomas. Ao assinar o documento da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o Brasil assumiu a meta de proteger 17% das áreas terrestres em cada bioma até 2020. O país não deve cumprir o compromisso internacional - apenas 3,3% dos Pampas estão em unidades de conservação; 7,5% da Caatinga e 8,2% do Cerrado.
Coordenadora da Coalizão Pró-Unidades de Conservação, que reúne dez organizações voltadas para a defesa das áreas protegidas, Mariana Napolitano acredita que o problema é ainda mais grave do que o refletido por estes índices.
- Ao medir as áreas conservadas, o país costuma incluir reservas legais e áreas de proteção ambiental, que, segundo a legislação, não asseguram proteção integral do ecossistema - critica. - Precisamos saber quais áreas não têm qualquer intervenção humana e em quantas existem atividades econômicas, como o ecoturismo e o extrativismo.
CONFLITO DE INTERESSES
Em nota, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão de 324 unidades de conservação federais, informou que estuda propostas que podem ampliar as áreas protegidas em cerca de 2,4 milhões de hectares, sendo que 500 mil hectares seriam para unidades de proteção integral.
O ICMBio, porém, admite que a limitação da quantidade de agentes é um obstáculo, "uma vez que hoje várias unidades, principalmente na Amazônia, têm número de servidores aquém do desejado". Também há "conflitos de interesse" com grupos que pretendem implementar atividades como agropecuária, mineração e produção de energia hidrelétrica e eólica, entre outros empreendimentos.
O Código Florestal determina que as propriedades rurais localizadas na Amazônia devem preservar 80% de sua área na forma de reserva legal. No Cerrado, porém, este índice cai para apenas 35%. Entre 2000 e 2015, este bioma perdeu 236 mil km², e a Amazônia, que é duas vezes maior, viu a devastação de 208 mil km².
- Apesar de ser a origem de bacias hidrográficas que banham o Sudeste, o Cerrado é um bioma extremamente fragmentado e com poucos recursos para os quais é possível recorrer - alerta Mariana. - Agora ele tem chamado mais atenção da iniciativa privada, que estabelece parcerias com o governo. Mas este trabalho ainda é silencioso na Caatinga e nos Pampas, onde faltam estudos sobre a paisagem.

O Globo, 02/01/2018, Sociedade, p.21

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