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Tecnologia muda cotidiano de aldeias

FSP, Informática, p. F4-F5
16 de Set de 2009

Tecnologia muda cotidiano de aldeias
Taba digital Munidos de telefones celulares, notebooks e minimodens, indígenas já produziram mais de 200 filmes

Carlos Minuano
Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

A vida está mudando na aldeia indígena Itapoã, em Olivença, Ilhéus, sul da Bahia. Por lá, a rede de deitar se somou à rede virtual. E, no lugar do arco e flecha, mouse e PC.
Mas eles não param por aí. Enquanto aguardam o orelhão que ainda não chegou à comunidade, fazem filmes com celulares. Munidos de 60 telefones móveis, notebooks e minimodens, quase uma centena de indígenas tupinambás e de mais 24 etnias em 12 Estados brasileiros já produziram mais de 200 filmes. A maioria, curtas-metragens, com duração que varia entre três e dez minutos.
A produção robusta -toda ela elaborada em 2009- é resultado do projeto Celulares Indígenas, iniciativa da rede Índios Online (www.indiosonline.org.br), portal colaborativo que facilita a comunicação e o acesso à informação de dezenas de etnias na internet.
A onda tecnológica que toma conta da aldeia tupinambá em Ilhéus vai receber em breve um reforço extra. No próximo dia 26, a comunidade inaugura o espaço que se tornará a base das produções e experimentações dos indígenas com novas tecnologias e mídias. O nome dado ao lugar, não por acaso, é Ciberoca.
Para os indígenas, a construção do novo espaço representa um avanço importante no tipo de uso que eles fazem das tecnologias. "Com novos recursos, teremos mais condições de reivindicarmos melhorias para nosso povo", afirma Alex Tupinambá, coordenador da rede Índios Online. O entusiasmo começa a avançar também para fora da aldeia tupinambá.
Na mesma semana, um telecentro com mais de dez computadores começa a funcionar em uma comunidade indígena localizada em São José da Vitória, uma das regiões mais pobres do país. Vizinho de Ilhéus, o município tem um dos menores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, segundo dados de 2000 do Atlas de Desenvolvimento Humano, do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Protesto na rede leva a mudanças reais

Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

"Internet é melhor que a televisão. Enquanto uma dá autonomia e liberdade, a outra impõe, aliena". É assim que Yakuy Tupinambá define a tecnologia, responsável por uma série de melhorias nas aldeias a que chegou.
É o caso de um posto de saúde na aldeia Brejo dos Padres, dos índios pankararu, em Pernambuco. Há tempos o lugar encontrava-se sem atendimento por falta de profissionais e infraestrutura. "Medicamentos eram estocados em área imprópria, médicos quando apareciam não podiam atender por causa da falta de condições do prédio, acabou ficando abandonado", conta Alex Pankararu.
Foi por meio da internet que a comunidade conseguiu mudar a situação. "Colocamos várias matérias no site", lembra Pankararu. "Já havíamos reclamado diversas vezes à Funasa (Fundação Nacional de Saúde), mas não recebíamos resposta". Depois que foram parar na internet texto e imagens denunciando a infraestrutura decadente do lugar, a solução veio.
Na aldeia tupinambá, o uso da internet tem o respaldo de uma importante entusiasta, a cacique Maria Valdelici de Amaral, ou Jamopoty -seu nome indígena-, que representa 5.000 índios tupinambás de três aldeias em Ilhéus. Ela diz que nem se aproxima muito do computador, mas que está de olho no que circula na rede. "Fico atenta a tudo que interesse à comunidade".
Yakuy Tupinambá conta que teve seu primeiro contato com a internet há apenas quatro anos, com a rede Índios Online. Ela participou das primeiras oficinas do projeto e, desde então, não largou mais o computador e abraçou o ativismo na rede. Ela se define hoje uma "ciberativista".
"Por meio da rede colaboro para que meu povo tenha uma vida digna, que seja respeitado". Com a internet, a rede está avançando. "Falamos com aldeias de todas as regiões do Brasil e com indígenas da América da Sul, da Europa, dos EUA e da Nova Zelândia."
A rede Índios Online participou em agosto deste ano do evento Ciclo Era Digital, promovido pela USP, sobre tecnologia e inclusão social. Ao lado de nomes como Pierre Lévy, Yakuy falou sobre as experiências com o mundo digital.
O otimismo de Yakuy é oportuno, afinal, problemas para resolver não faltam. Na aldeia de Ilhéus, a construção de um núcleo educacional com duas salas de aula só saiu depois de muita reclamação na internet. De acordo com Yakuy, tudo esbarra na questão fundiária. A área em que a aldeia está localizada ainda não é considerada território indígena. O longo processo de demarcação de terras ainda está no início e a previsão é de turbulências.
"Fazendeiros e o setor de hotéis são contrários, e o clima está cada vez mais tenso", conta Yakuy. Há quem acredite que o novo imbróglio fundiário ganhe proporção semelhante ao caso da área Raposa/ Serra do Sol, em Roraima, em que uma decisão favorável à demarcação deu início a uma tensa disputa entre grupos indígenas e agricultores que ocupavam a região. (CM)

Portal que conecta 24 etnias ganha fôlego com produções audiovisuais

Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

A recente produção de conteúdos por meio de celular trouxe ânimo novo ao projeto Índios Online. A rede virtual, que há cinco anos tem conectado índios e aldeias de todos os cantos do país, reúne na rede atualmente 24 etnias. E com a recente produção em vídeo, a previsão é que a participação cresça ainda mais.
"A história e a realidade dos indígenas durante muito tempo foi contada apenas por antropólogos e outros pesquisadores, mas raramente por eles próprios", afirma Sebastian Gerlic, da ONG Thidewas, responsável pelo projeto.
Segundo Gerlic, a rede surgiu como uma alternativa para o fortalecimento dessas comunidades, dispersas e distantes de suas raízes culturais. Oficialmente, o projeto Índios Online deu seus primeiros passos em 2004, em sete comunidades do Nordeste do país, mas o processo de gestação envolveu algumas etapas anteriores. Tudo começou com uma série de oficinas que buscava incentivar e capacitar indígenas a contar suas próprias histórias.
"Os índios se revezavam com dificuldade na utilização de minguados gravadores e algumas poucas câmeras digitais".
Apesar dos entraves, a experiência resultou na publicação, em 2001, dos quatro primeiros livros da coleção "O Índio na Visão do Índio".
No ano seguinte, com a adesão de novas aldeias e já com câmeras e gravadores digitais, começaram a produção de uma nova série com outras três publicações, lançadas em 2003.
Da vivência pioneira, brotou a vontade de criar um espaço virtual de criação e intercâmbio, concretizada em 2004, com o início da rede Índios Online.
Coordenada de forma autônoma, a rede é hoje turbinada pelo conteúdo produzido no projeto Celulares Indígenas.
Segundo estimativas da Thidewas, o projeto alcança mais de 50 mil pessoas. "Em textos, fotos e vídeos, os indígenas mostram um perfil de suas culturas, arquivam memórias e partilham conhecimentos".
Outro serviço oferecido pela rede é um chat, utilizado para comunicação com outras aldeias acerca de problemas das comunidades ou para ações educacionais com escolas.
Embora seja difícil dimensionar o alcance real da iniciativa, parece fato que um número expressivo de indígenas que até então fazia parte das estatísticas de exclusão social e dos piores índices de desenvolvimento humano do Brasil, passa a reescrever seu futuro. "Estão começando a quebrar um ciclo de miséria por meio da internet", avalia Gerlic. (CM)
O jornalista Carlos Minuano viajou a convite do Instituto Oi Futuro.

Vídeos expõem olhar dos índios

Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

Entre os indígenas, imprimir um estilo próprio já se tornou regra. Para os índios do projeto Celular Indígena, o nome da novidade é etnocelumetragem. O termo esquisito quer dizer que os filmes produzidos com celular mostram o olhar dos indígenas, explica Alex Pankararu, da rede Índios Online.
"Mostramos nos filmes o nosso cotidiano, mas, pela primeira vez, de uma maneira própria, com o nosso jeito de ser". Ele acrescenta que, por meio da tecnologia, a realidade indígena pode ser apresentada de forma mais real, desfazendo mitos. "Queremos mostrar que muito do que se fala contra o índio não é verdade".
Termos como roteiro, filmagem e edição de vídeo passaram a fazer parte do vocabulário da comunidade e, mais do que isso, foram incorporados, na prática, ao cotidiano de boa parte dela.
Prova disso é a audiência, composta por índios de todas as regiões do país -além da população não indígena brasileira e estrangeira. "Da mesma forma que o branco quer conhecer o índio, queremos saber como é vida de nossos irmãos em outras regiões", afirma o tupinambá Curupaty Abaeté, professor de cultura indígena que participa da produção de filmes.
Os temas variam do dia a dia na aldeia à denúncia social. Os filmes produzidos são postados em uma página do YouTube e ficam disponíveis no portal da rede Índios Online. Embora ainda meio toscos, agradam a comunidade. A visão da própria imagem no vídeo parece sinalizar novos horizontes.
A audiência segue crescendo nas aldeias, afirma Alex Pankararu. Além de os índios poderem filmar e retratar seu jeito de ser, o cotidiano e a vida nas várias comunidades como bem lhes convier, o coordenador da rede Índios Online ressalta outro ganho trazido pela tecnologia: um conhecimento, até então, bem distante. "Nas oficinas trabalhamos com fotografia, edição de vídeo, roteiro e até com storyboard".
Mas não são apenas filmes que os índios produzem. Com os aparelhos de que o projeto dispõe foi criada uma espécie de agência indígena de notícias. "Quando são convidados a participar de algum evento, fazem a cobertura integral com os celulares, áudio, fotos e vídeos", diz Sebastian Gerlic, presidente da ONG Thidewas.
A experiência nas aldeias mostrou também que a falta de recursos pode deixar de ser um problema e se tornar o caminho para a solução. Com a falta de computadores, indígenas aprenderam a fazer edição no próprio celular. "Grande parte dos vídeos publicados em nosso portal foi editado no próprio aparelho", conta Gerlic. (CM)

Índios Online
Veja os números do portal

5 anos de atividade
50 mil índios conectados
24 etnias na rede
12 Estados participantes
3.000 postagens
10 mil comentários
1.500 visitas diárias
12 livros publicados
10 prêmios
60 aparelhos celulares
200 vídeos

O que o site oferece
O Índios Online (www.indiosonline.org.br) é um portal colaborativo que conecta dezenas de etnias indígenas na internet

Celulares ajudam a preservar a mitologia
Para todas as idades Tecnologia é aliada na missão de perpetuar a cultura entre os jovens; anciões também se envolvem

Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

Se antes os mais velhos torciam seus narizes, olhando com desconfiança a chegada de computadores à aldeia, hoje até anciões mais resistentes às mudanças se rendem à tecnologia.
Em tempos de internet e outros apelos tecnológicos, os filmes produzidos em celulares se tornaram importantes aliados na difícil missão de preservar a mitologia, a história e a cultura indígena entre os mais jovens.
Antenados com o projeto, adolescentes estão redescobrindo a própria cultura.
Um exemplo é a jovem tupinambá Juliana Guedes. Há um mês no projeto de vídeos com celulares, já participou da produção de dois filmes que resgatam histórias míticas e costumes indígenas: a lenda da many, sobre a história da mandioca e a colheita da piaçava, principal fonte de renda da aldeia. "Primeiro pesquisamos as histórias, depois adaptamos para o vídeo", diz ela.
O movimento de resgate da cultura já estava em curso antes do projeto com os celulares, mas a repercussão dos vídeos entre os indígenas não se compara ao material produzido apenas com texto e fotos. "O realismo das imagens [em movimento] seduziu muito mais", observa Curupaty Abaeté, professor de cultura indígena.
A aldeia Itapoã, em Ilhéus, tem apenas dois anos, embora seus moradores afirmem que antepassados já habitavam a região. Apesar de recente, a comunidade já é uma referência por seu engajamento no uso das novas tecnologias, sempre orientado à inclusão dos indígenas.
A comunidade, onde vivem cerca de 500 índios, há pouco tempo nem sequer tinha reconhecida sua etnia. "Éramos chamados de caboclos de Olivença", diz a cacique Jamopoty. Segundo ela, a ação dos índios internautas foi essencial para o sucesso da mobilização em torno do processo de reconhecimento da etnia tupinambá.
Parte do trabalho começa nas oficinas de vídeo, realizadas na sede do projeto, na aldeia Itapoã. Os emergentes produtores audiovisuais indígenas não recebem formação profissional: o processo de aprendizado é autônomo, a partir da experiência prática. "Quem já sabe replica o conhecimento em outras aldeias", conta Alex Pankararu, que já coordenou algumas oficinas de vídeo com celular.
A seleção dos indígenas que participam do projeto é realizada por uma comissão formada pelos próprios índios.
As oficinas realizadas duram em média três dias. Em cada uma delas, participam aproximadamente 15 índios. Além de aprenderem as várias etapas do processo, da produção à finalização, eles também realizam um filme.
Os índios engajados de Ilhéus já articulam novos planos. Em 2010, planejam avançar na comunicação colaborativa com o novo projeto Indiomídia, que pretende melhorar a relação dos índios com a imprensa. A realização, porém, depende ainda da obtenção de recursos. Selecionados nos editais de 2007 e 2008 do programa Novos Brasis, os indígenas já levaram R$ 240 mil para a execução dos projetos.
(Carlos Minuano)

Projeto incentiva resgate da cidadania

Colaboração para a Folha,
Da Aldeia Itapoã (BA)

Por trás dos projetos e ações da rede Índios Online está o argentino Sebastian Gerlic, presidente da ONG Thidewas. Apesar da formação em história, quando ainda vivia em Buenos Aires, ele se dedica à área audiovisual desde 1990.
Em 2002, após uma década durante a qual produziu vários documentários, ele decidiu aposentar a filmadora para dedicar-se exclusivamente ao trabalho nas aldeias indígenas.
Leia, abaixo, trechos da entrevista que Gerlic concedeu à Folha. (CM)

Folha - Como foi seu encontro com os indígenas e como nasceu o trabalho com eles?

Sebastian Gerlic - Em abril de 2000, enquanto colhia depoimentos de lideranças indígenas para um documentário independente durante uma grande marcha de indígenas que seguia de Coroa Vermelha, onde Cabral rezou a primeira missa, a Porto Seguro, fui vitima, junto com os índios, de um ataque da Polícia Militar.
Imagina um bando de índios com cocar sendo atacados por uma tropa com 300 cavalos, helicópteros, gás lacrimogêneo e balas de borracha.
As bombas passaram tão perto que prometi a mim mesmo que, saindo com vida, me dedicaria a trabalhar com os indígenas em algum projeto envolvendo tecnologia e sustentabilidade.
Penso que o sentido da palavra civilização está em xeque. Afinal, para onde progredimos?
Para a morte? Por isso escolhi trabalhar com os índios, eles são exemplos de que podemos viver socialmente de outra forma, orquestrados com a natureza, sendo parte dela.

Folha - Qual é a sua avaliação do conteúdo produzido pelo projeto até agora?

Gerlic - Quando começamos o projeto Índios Online, pensamos que o foco seria o resgate cultural e a projeção do modo de vida do índio. Isso de fato foi feito, mas, ao se apropriarem da tecnologia, nos surpreenderam ao usá-la para a cidadania, com informações que vão desde orientações simples, de como tirar documentos diversos e abrir contas em bancos, até usos mais complexos, como acompanhar a destinação de recursos do governo.
Agora, com o projeto Celulares Indígenas, pensei que a utilização seria mais para denúncias e reivindicações. Mais uma vez, me enganei: a escolha foi pela ficção.

FSP, 16/09/2009, Informática, p. F4-F5

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