Valor Econômico, Agronegócio, p. B12
17 de Fev de 2014
Sustento no quilombo, iguaria no menu
Ostras produzidas em comunidade no litoral paulista chegam a restaurantes até 30 vezes mais caras
Por Daniela Chiaretti
De Cananeia (SP)
Os dois pequenos cachorros vira-latas, um branco e o outro negro, atiram-se na água e lá de longe começam a travessia do rio em direção à canoa de Francisco de Sales Coutinho, 57 anos, líder quilombola de Cananeia. Ele não se emociona. "São do meu sobrinho", diz, o ar de enfado. A perseguição dos filhotes rio abaixo faz parte da rotina solitária pelo manguezal, assim como os 40 minutos de travessia no sol a pino até o viveiro da família, e o balé dos caranguejos nas margens. Quando chega ao destino, Chico Mandira, como é conhecido, levanta a tela que protege as ostras das arraias e começa a colheita. Vive assim há 36 anos e, assim, criou sete filhos.
"Na maré boa dá para pegar 200 dúzias por dia", diz. O oceano fica a 10 quilômetros dali e o relógio de ponto dos coletores de ostras-de-mangue é dado pelas marés. As ostras são vendidas à cooperativa que a comunidade quilombola fundou em 1997, para garantir o sustento diante das restrições ambientais à roça, à criação de animais e à indefinição na titulação do território.
A Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananeia (Cooperostra) foi fundada por 20 cooperados e organizou a atividade de muitos dos moradores do quilombo Mandira. Os cooperados vendem a dúzia de ostras à cooperativa por R$ 3,00 as de tamanho médio, e R$ 5,00 as maiores. A Cooperostra dobra o valor ao vendê-las a restaurantes no litoral norte e em São Paulo. "Aqui, no pé da areia", saem por R$ 25,00 a dúzia", diz Mario Batista Pontes, encarregado da produção da Cooperostra.
"Cada um dos cooperados recebe pelo o que produz", conta Chico Mandira. Sua produção, diz, gira entre 30 mil e 35 mil dúzias ao ano. Na mesa do restaurante, as ostras-de-mangue podem custar entre R$ 30,00 e R$ 150,00 a dúzia. Na página do Quilombo do Mandira no Facebook, o líder quilombola aparece ao lado de Alex Atala, do restaurante D.O.M. - o chef segura uma ostra de mangue na mão.
Os 105 quilombolas do Mandira não comem ostras no dia a dia. O cardápio costuma ser arroz, feijão, milho e peixe. Ao contrário das ostras de mar, as primas do mangue produzem poucas pérolas, e são de pouco valor. "A única que valia alguma coisa, uma preta, a gente perdeu", conta Chico Mandira.
Na verdade, a logística atual da comercialização nem deixa ver se há pérolas ou não. "Temos que entregar a ostra viva", diz Mario Pontes. As ostras seguem nas próprias conchas, embaladas em caixas da cooperativa. Funciona assim: os cooperados levam sua produção até a sede da cooperativa em Cananeia, município a 230 quilômetros de São Paulo e a 35 quilômetros do quilombo. "Tiramos o excesso de cracas e as limpamos", conta Pontes. Ali elas são colocadas em tanques com água do mar e vão se limpando, filtrando água e soltando impurezas. "São bichos filtradores", lembra Pontes. "Cada ostra filtra 20 litros de água por hora."
"A gente não sabia nem o que era cooperativa. Só sabia tirar ostra de mangue, mariscar e vender", diz Chico Mandira, lembrando o início da atividade. O cultivo foi a opção de sustento às 25 famílias da comunidade, uma iniciativa que surgiu meio por acaso, quando um francês comprou as ostras na comunidade. "Elas dão naturalmente, debaixo do mangue vermelho", explica Chico Mandira. O pulo do gato foi começar seu cultivo e manejo, em pequenos viveiros de madeira colocados no manguezal.
A comunidade Mandira surgiu em 1868 e tem história diferente da maioria dos quilombos do País. A origem não é de escravos foragidos. O patriarca, Francisco Mandira, era filho ilegítimo de um dono de fazenda da região, que recebeu a área, no Vale do Ribeira, da meia irmã Celestina. Francisco teve dois filhos, João e Antonio. Chico Mandira é a sétima geração dos descendentes de João. Os Mandira, reunidos naquela área em 25 famílias, já estão na nona geração.
A trajetória do quilombo, que se diz pioneiro no cultivo e no comércio da ostra-de-mangue no país, foi marcada pela perda do território. Em 1969 foi criado o Parque Estadual de Jacupiranga, para proteger as cavernas do Alto Ribeira. Os quilombolas, que viviam da extração de palmito e caixeta (madeira da Mata Atlântica usada no feitio de lápis), ficaram sem opção econômica. "Não podia fazer a roça, não podia caçar, nem tirar madeira para as casas", diz Chico Mandira. "Proibiram tudo de tudo e muitos Mandira foram embora daqui."
A situação melhorou em 2002, quando foi criada a Reserva Extrativista do Bairro Mandira (Resex), por decreto presidencial. Esse tipo de unidade de conservação concilia preservação com o desenvolvimento econômico de suas populações tradicionais. "Mas tínhamos perdido a atividade de subsistência e 95% do território foi vendido", diz Chico Mandira. "Eu mesmo fui trabalhar fora, mas não me acostumei à vida de empregado."
A comunidade quilombola foi reconhecida em 2002. A Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão da Secretaria estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania, elaborou o relatório técnico-científico que definiu o território da comunidade e possibilitou o acesso às políticas públicas. "O Itesp reconheceu o território quilombola, é a primeira fase para a titulação da terra", explica Carlos Henrique Gomes, chefe de gabinete do Itesp. "Mas eles ainda têm um problema fundiário." O relatório é debatido e aprovado pelos quilombolas, resgata a genealogia das famílias e contém um mapa que, publicado, dá garantia aos moradores, explica Gomes.
A titulação fundiária é o segundo passo. Os Estados só regularizam terras que pertencem a eles. Quando há conflitos com particulares, como é o caso, o Estado remete o processo ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A área do Quilombo Mandira seria 2.054 hectares, divididos em quatro glebas. Há disputa pela terra em duas delas, que dependem de desapropriação. "Já foi reconhecida a área, o que ocorre agora é processo administrativo, não judicial. Esta é uma área histórica quilombola, tem que voltar para eles", diz Gomes.
O Itesp dá assistência técnica aos quilombolas no projeto das ostras. "Acompanhamos a produção e as famílias, trazemos os coletores para participarem de feiras e venderem sua produção", diz Valmir Mariano Ribeiro, supervisor do Itesp em Cananeia. Os moradores do Mandira também vivem do artesanato, das oficinas de costura e do ecoturismo. Recebem muitas visitas de escolas. Mas, se estão próximos de resolver o passado, os quilombolas têm dificuldades em manter os jovens no local. "As cidades são muito atraentes para eles", reconhece Gomes, do Itesp.
No Mandira há escola até a 4ª série. O posto de saúde fica a 11 quilômetros e o hospital mais próximo, a 38. "Na época da minha mãe tinha muita malária, hoje acabou", diz Chico Mandira. "A cobra mais violenta é a jararaca", conta. "Que eu me lembre, só duas pessoas morreram picadas de cobra aqui."
O maior quilombo do Brasil é o kalunga, em Goiás. Com 253 mil hectares é moradia de 600 famílias. O Pará, segundo dados da Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, é o Estado com o maior número de comunidades quilombolas tituladas. No Brasil existem hoje 2.408 comunidades quilombolas certificadas, trabalho realizado pela Fundação Palmares e que reconhece a existência destas comunidades.
"Com a certificação, os quilombos têm alguma proteção e alguns direitos", explica Alexandro Reis, diretor do departamento de Fomento e Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares. A Bahia é o Estado com maior número de comunidades reconhecidas, com 494 certidões emitidas para 584 comunidades (uma certidão pode reconhecer mais de uma comunidade). Efetivamente tituladas, que é o fim do processo, são 217 comunidades no Brasil. Isto significa 13.145 famílias e um total próximo a um milhão de hectares de quilombos no país.
"É um processo complexo e que envolve tempo", diz Reis. "Não é algo fácil, não é um tema tranquilo. Cria expectativas e às vezes reações violentas contra os quilombolas", continua. Quando ocorre a titulação de um quilombo, o título não é individual e contempla sempre a associação. Não pode ser vendido.
A jornalista viajou a convite da assessoria especial para Assuntos Internacionais do governo do Estado
Valor Econômico, 17/02/2014, Agronegócio, p. B12
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