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STF mantém demarcação de terras indígenas no Ministério da Justiça, ao menos neste ano

BBC - https://www.bbc.com/portuguese/brasil
01 de Ago de 2019

STF mantém demarcação de terras indígenas no Ministério da Justiça, ao menos neste ano

Mariana Schreiber - @marischreiber
Da BBC News Brasil em Brasília

*Texto atualizado às 00h08 de 02/08/19

Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve decisão do ministro Luís Roberto Barroso que suspendeu em junho nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro de retirar a demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) e submeter ao Ministério da Agricultura.

Para a Corte, Bolsonaro não poderia ter editado, no mesmo ano, uma segunda medida provisória com essa mudança depois que o Congresso já havia barrado em maio uma primeira tentativa feita em janeiro. Essa decisão do STF, no entanto, deixa a porta aberta para o presidente tentar realizar essa alteração de novo em 2020.

"O comportamento do atual presidente da República, revelado na reedição de medida provisória, clara e expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional no curso da mesma sessão legislativa, traduz iniludivelmente uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição e representa uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação de poderes", afirmou ao votar o ministro mais antigo do STF, Celso de Mello.

A decisão de Barroso referendada pela Corte tem caráter liminar (provisório). Uma análise mais abrangente sobre a constitucionalidade da transferência da demarcação para a pasta da Agricultura exigirá um segundo julgamento, sem previsão de data.

Os opositores da medida entendem que o ministério comandado por Teresa Cristina é naturalmente alinhado com interesses do agronegócio, setor que com frequência está em conflito com os interesses indígenas.

Buscando a proibição mais definitiva da mudança almejada por Bolsonaro, o PSB, um dos partidos que levou a questão ao STF, argumentou na ação que a proposta representa "desvio de finalidade", na medida que não buscou aperfeiçoar a demarcação de terras indígenas, mas paralisá-la.

Além disso, a ação sustenta que tal mudança teria que passar pela consulta dos povos indígenas, conforma estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.

O artigo 6o da convenção obriga o governo "consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente".

Já o artigo 14 reconhece "aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam".

Funai com Moro
A decisão do STF desta quinta mantém a Funai integralmente no Ministério da Justiça, onde está há décadas. A pasta é comandada por Sergio Moro, que tem demonstrado pouco interesse na questão.

Indigenistas temem que o órgão continue fragilizado, já que Bolsonaro acaba de nomear como presidente da Funai o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, que tem relação muito próxima com ruralistas, em especial o pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual secretário de política fundiária do Ministério da Agricultura (Mapa) e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR).

"Nós consideramos uma vitória tática a manutenção da Funai no Ministério da Justiça com todas as suas atribuições, mas temos preocupação de que o governo seguirá desrespeitando a Constituição, não dando seguimento à demarcação, o que pode perpetuar conflitos e situações de vulnerabilidade de povos indígenas", ressalta o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cleber Buzatto

Para o professor de direito constitucional da UERJ Daniel Sarmento, advogado do PSB na ação, caso o novo presidente da Funai atue para bloquear as demarcações, contrariando orientações técnicas de servidores do órgão, é possível que isso gere novas ações no STF.

"Quando o governo desmonta demarcação, manda parar a Funai, implicitamente ele dá um recado que legitima coisas muito mais graves como atentado a própria vida dos indígenas como estamos vendo", criticou.

Sarmento se refere a morte do líder indígena Emyra Waiãpi, denunciada pelos índios no sábado como um assassinato cometido por garimpeiros que invadiram as terras Waiãpi, no Oeste do Amapá. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.

Por que Bolsonaro quer parar demarcações?
Durante a campanha eleitoral e após sua vitória, Bolsonaro diversas vezes disse que em seu governo não daria "nem um centímetro a mais para terras indígenas". Na visão do presidente, no entanto, a demarcação de terras indígenas "inviabiliza" o agronegócio e o desenvolvimento da Amazônia.

"O Brasil vive de commodities, daqui a pouco o homem do campo vai perder a paciência e vai cuidar da vida dele. Vai vender a terra, aplicar aqui ou lá fora, e cuidar da vida dele. A gente vai viver do quê? O que nós temos aqui além de commodities?", questionou na segunda-feira, a comentar mais uma vez o tema.

Para a advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana Batista, o argumento é uma "falácia", pois há áreas disponíveis para expansão da agricultura, independentemente das demarcações.

Segundo o estudo "Projeções do Agronegócio", divulgado pelo próprio Ministério da Agricultura na semana passada, a área plantada de lavouras no Brasil crescerá nos próximos dez anos de 75,4 milhões de hectares para 85,68 milhões (alta de 14%) "principalmente sobre pastagens naturais e áreas degradadas".

"As terras indígenas cumprem uma função essencial de preservação da biodiversidade e de regulação climática. Essa fala de Bolsonaro é muito mais um ataque às minorias, uma política de discriminação, do que um argumento técnico que demonstre que não existe mais áera para o agronegócio", afirma Batista.

A postura de Bolsonaro gera também questionamentos jurídicos porque a Constituição Federal de 1988 determinou a demarcação de indígenas e estabeleceu um prazo de cinco anos, o que não foi cumprido.

O artigo 231 explica ainda que "são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

O site da Funai informa que existem 462 terras indígenas demarcadas, ocupando 12,2% do território brasileiro. Segundo posicionamento de fevereiro da associação que representa servidores do órgão, a Indigenistas Associados (INA), "ainda hoje persiste um passivo de centenas de casos (de demarcação), que dificulta a reprodução física e cultural de grupos indígenas, muitas vezes de forma dramática, além de favorecer a tensão e o conflito pela posse da terra em diversas regiões do país e de gerar insegurança jurídica".

O documento intitulado "Funai inteira e não pela metade" defende que o órgão seja mantido no Ministério da Justiça, destacado que os direitos indígenas são competência da pasta que desde o governo de Fernando Collor (1990-1992).

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49187664

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