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Sonho vira pesadelo

CB, Brasil, p.8
16 de Fev de 2004

DIREITOS HUMANOSSonho vira pesadeloChuvas frustram expectativa de bóias-frias que tentaram a sorte em fazendas da Região do Entorno, caíram nas mãos de agenciadores, contraíram dívidas e agora vivem praticamente em regime de escravidão

Renato Alves Da equipe do Correio
Fotos: Ronaldo de Oliveira

Benedito Barbosa, que deixou o interior de São Paulo em busca de trabalho, tenta se conformar:Não passando fome já tá bom

''A comida que servem aqui nem os cachorros comem''Antônio Ferreira Lima, bóia-fria

 

Em busca de três mil vagas de emprego temporário que seriam abertas nas fazendas do Distrito Federal a partir de janeiro, bóias-frias de todo o país começaram a desembarcar na área rural das cidades do Entorno no fim do ano passado. O sonho do emprego virou pesadelo com as chuvas, que estragaram 70% da safra do feijão e da produção de hortaliças. Agora, sem trabalho e sem dinheiro, homens, incluindo menores de idade e idosos, não têm como voltar para a terra natal.   Reféns de dívidas com os gatos, como são chamados os agenciadores de mão-de-obra, os trabalhadores passam os dias e as noites em alojamentos precários, à espera de serviço. Construídos com tijolos furados e telhas de amianto, sem qualquer acabamento, no meio do cerrado, barracões de 10 m² chegam a abrigar até 30 pessoas. Os abrigos não têm saneamento básico. Às vezes, falta comida. Características análogas (típicas) de trabalho escravo, como define o Ministério do Trabalho.   O Correio localizou três grandes alojamentos como esse só em Campos Lindos, distrito de Cristalina, em Goiás. Às margens da BR-251, estrada que liga o DF a Unaí, em Minas Gerais, o lugar é mais conhecido como Parque do Marajó. Com uma população estimada em cinco mil pessoas, não tem rua asfaltada. Também são raras as vias com iluminação pública. Um policial civil e três policiais militares são escalados para garantir a segurança da região.   Em meio ao barro, dentro e fora dos barracões, quase 200 homens sobrevivem do café ralo com pão velho e um almoço que não varia muito do feijão com arroz, em um dos alojamentos. Um cômodo de 6 m², sem janela e porta, chega a receber 10 homens, que dormem amontoados em beliches.   A maioria dos trabalhadores veio do Nordeste. Só de Caxias, no Maranhão, são 28. Os irmãos Antônio, 33 anos, e Raimundo Nonato Ferreira Lima, 28, foram os primeiros a chegar, no fim de dezembro. Um gato disse que aqui tinha muito serviço, conta Raimundo. Para pagar a passagem de ônibus ao gato, Raimundo vendeu todo o estoque de comida que tinha em casa: milho, arroz e farinha. Juntou R$ 200. Não tem mais nada.   Raimundo trabalhou apenas dez dias na colheita de feijão, por R$ 13 a diária. Ainda não recebeu o dinheiro. Fez dívida com o dono do alojamento, comprando pasta dental, sabonete e luvas na cantina do lugar. O agenciador não dá material de trabalho para os bóias frias. Eles têm de pagar R$ 3,50 por um par de luvas, por exemplo.   Antônio só conseguiu serviço por dois dias. Deve R$ 30 ao gato também por causa do material de higiene pessoal. Raimundo ainda tem esperança de dias melhores nas fazendas da região. Antônio quer voltar logo ao Maranhão. A comida que servem aqui nem os cachorros comem, reclama.   No alojamento, os trabalhadores almoçam em pé ou sentados nos beliches. Em um barracão, também sem portas e janelas, dez cubículos servem de banheiro. Não há chuveiro elétrico. Dos canos, cai só água fria. Também não existem vasos sanitários. As necessidades fisiológicas são feitas em buracos chamados de boi, como nas celas dos presídios brasileiros. Aventura Perto dali, em frente à BR-251, dois barracões prestes a desabar abrigam outro grupo de bóias-frias. Todos vieram de Itaí, distrito de Avaré (SP). Chegaram em Marajó na noite de 8 de fevereiro, após 20 horas de viagem dentro de um ônibus igual aos modelos usados no transporte urbano, sem bancos reclináveis e cortinas.   Analfabetos, os trabalhadores saíram da terra natal já devendo ao agenciador, que não quis dar entrevista. Disse apenas se chamar Alexandre. Os bóias-frias fizeram empréstimos com ele para deixar algum dinheiro com as famílias. É a primeira vez do grupo em terras goianas e brasilienses.   Os bóias-frias deixaram Itaí com a promessa de que ganhariam diárias acima de R$ 13. Até sexta-feira passada, eles não haviam arrumado nenhum serviço. Desanimados e alojados em um cômodo de 30m², sem chuveiro elétrico, pia e fogão, os trabalhadores não escondiam a apreensão. Eu tenho que pelo menos arrumar os R$ 50 que o gato me emprestou, confidenciou Carlos Alberto Modesto, 26. Outros, como Benedito Barbosa, 38, já se satisfazem com menos. Não passando fome já tá bom, ressaltou.    Concorrência desleal Dos alojamentos de trabalhadores rurais em Campos Lindos, o único registrado como empresa é o JM, de João Melo Monteiro, 62. Ele faz questão de mostrar os recibos de pagamento de impostos. Só no ano passado foram mais de R$ 400 mil, frisa. Monteiro também ressalta — e mostra — que mantém equipamentos de segurança e garrafas térmicas para todos os trabalhadores contratados.   João Monteiro reclama que, como não pagam impostos, não assinam carteira dos bóias-frias, nem dão equipamentos de segurança, os gatos têm como oferecer mão-de-obra aos fazendeiros por preços menores. Por isso, só trabalhamos para empresas. Os fazendeiros preferem correr o risco de multa a contratar o nosso serviço, que é legal, conta Monteiro.   Mesmo pagando os encargos ao governo e trabalhadores, Monteiro, no entanto, reconhece que o seu alojamento não oferece condições ideais aos bóias-frias. O prédio abriga até 400 homens. Os quartos, de 9 m² e sem janela, abrigam até oito pessoas cada.Os beliches, nem um pouco estáveis, são de madeira.

Flagrantes em terras no DF  Trabalhadores rurais sem carteira assinada, equipamentos de segurança e vivendo em condições desumanas não são exclusividade do Sul do Pará e de outras regiões brasileiras, onde há denúncias freqüentes de casos de trabalho escravo. No ano passado, a Delegacia Regional do Trabalho do Distrito Federal — responsável pela fiscalização de 66 mil km² de área rural, que engloba o DF, 34 cidades goianas e três do Tocantins — multou 733 fazendas.   Os seis fiscais da DRT-DF encontraram 1.833 pessoas empregadas em situação irregular nas fazendas, sendo 188 menores de idade. Metade dos flagrantes ocorreu no Distrito Federal. Não é trabalho escravo. Mas temos situações bem parecidas, ressalta o auditor fiscal Nilton Hamann, que há oito anos coordena a fiscalização rural da DRT/DF.   No dia 28 de janeiro deste ano, quando três fiscais do trabalho foram executados na zona rural de Unaí (MG), uma equipe da DRT/DF encontrou cem homens trabalhando sem carteira assinada, equipamentos de segurança e morando em alojamento sem cama e superlotados, em uma fazenda de Cristalina (GO). Na semana passada, os mesmos fiscais flagraram outras 40 pessoas, recrutadas por gatos em São Francisco, Minas Gerais, trabalhando em condições precárias, em uma propriedade do núcleo rural Tabatinga, em Planaltina, no DF.   Uma operação está sendo planejada, em conjunto com a Polícia Federal, para libertar os trabalhadores de Tabatinga. A data da ação e o nome da fazenda são mantidos em sigilo. Não queremos espantar os fazendeiros. Só posso dizer que os trabalhadores em questão sequer têm dinheiro para voltar à terra natal por causa de dívidas com os gatos, revela o delegado regional do trabalho do DF, José Pedro Alencar.   A última ação dos fiscais brasilienses ocorreu na segunda-feira passada em uma propriedade na divisa de Padre Bernardo (GO) com o DF. Escoltados por policiais federais, os fiscais encontraram 13 trabalhadores sem o registro profissional, morando em barracos com piso de terra, sem água potável, banheiro e camas. Os trabalhadores também não dispunham de equipamentos de proteção, como luvas, perneiras e chapéu de aba largas. Os donos da fazenda têm uma semana para regularizar a situação.(RA)

CB, 16/02/2004, p.8.

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