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Sombra do Madeira

O Globo, Economia, p. 24
Autor: LEITÃO, Míriam
01 de Jun de 2007

Sombra do Madeira

Míriam Leitão

As hidrelétricas do Rio Madeira podem ser a opção mais racional, mas o debate sobre o licenciamento não tem tido racionalidade. É a obra mais cara do PAC. Há dúvidas técnicas, fiscais, ambientais e uma dúvida política: que grupo do PMDB presidirá Furnas, que, junto com a Odebrecht, é autora do projeto? Ontem foi o dia inteiro de reunião no governo sobre a concessão das licenças.

Foi reunião da ministra Marina com o presidente.
Duas ao longo do dia. Do possível futuro ministro de Minas e Energia Márcio Zimmermann com o presidente interino do Ibama, Bazileu Margarido. Os funcionários do Ibama, entre eles os que assinaram o documento que não deu a licença, continuavam em greve.

Os técnicos do Ibama contam o seguinte: os oito que assinaram o parecer, recomendando novos estudos antes da concessão da licença, foram, na época, chamados para uma reunião com quatro chefes. Nela, foi pedido que fizessem uma lista de dúvidas técnicas a serem respondidas por especialistas contratados.

Desses chefes, três caíram: Marcus Barros e Luiz Felippe Kunz, presidente e diretor de licenciamento do Ibama, e Claudio Langone, secretário-executivo do Ministério. O sobrevivente foi Bazileu Margarido.

Os técnicos fizeram a lista e, em vez de ela ser enviada para especialistas, foi Furnas que a respondeu.

- Se a licença for concedida, será através de relatórios parciais, cada um numa área: um de peixes, um de sedimentos, um de mercúrio -, disse-me um técnico ontem à tarde, no auge da pressão do governo para a resposta positiva.

O governo não aceita não como resposta. O tema tem sido tratado como se fosse um debate meio estranho em torno de um bagre. É mais complexo. Para quem quer entrar na conversa com mais detalhes, aqui vão as explicações que ouvi:
- O que técnicos têm de avaliar em estudos assim é o quão insubstituível é aquele lugar. Por isso, estudamos cada detalhe. Os bagres, por exemplo. No texto das empresas, elas dizem que não garantem que os grandes bagres possam subir o rio. Lá a ictiofauna é extremamente rica. Encontramos 459 espécies de peixes, depois mais 34.

Desse total, 108 não foram identificadas inicialmente e, por isso, estão sendo mais estudadas. Das 33 que já foram estudadas, 22 são novas e endêmicas, ou seja, só ocorrem lá. Qual é o risco de colapso dessas espécies na Bacia do Rio Madeira? - comentou um técnico.

Ontem o governo começou a nomear os novos executivos das empresas públicas na área de energia. O setor está cheio de cargos vagos, ocupados por interinos, atiçando a gula dos políticos na repartição do poder. Se a licença prévia para as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau tivesse sido concedida no começo de maio, como exigia o ex-ministro Silas Rondeau, o que poderia ter acontecido de lá para cá?

Nada. Rondeau caiu, a Eletrobrás ficou sem diretoria em janeiro, Furnas também está acéfala. Tudo no setor elétrico ficou ainda mais provisório depois da Operação Navalha, que encontrou um terreno minado. Só ontem o candidato a ministro Márcio Zimmermann foi escolhido para presidir o Conselho de Administração da EPE, Empresa de Pesquisa Energética, sem a qual não se fazem leilões de energia no país. Só ontem foi nomeado o novo responsável pelo Luz para Todos.

Uma confusão no debate é entre a lentidão operacional do Ibama e o rigor com a questão ambiental, que passou a ser inevitável em tempos de aquecimento global. O tema mudou de patamar. Avaliar cada aspecto da obra é uma obrigação do governo - não uma imposição do Ibama - porque as obras serão feitas no meio da Amazônia.

O Ibama é lento e burocrático, dizem os empresários. Não mais que qualquer outro órgão do governo. A máquina pública tem uma grave crise de gestão que se agravou no governo Lula.

Basta olhar as fotos das obras da Gautama. Se o país vai entrar numa obra de porte e preço das usinas do Madeira, é preciso mais transparência e mecanismos de controle para dar garantia aos contribuintes de que não será um programa de Luz para Poucos.

Se o que se quer é agilidade no processo para dar aos investidores o conforto de que terão energia para seus projetos futuros, então é preciso mudar radicalmente a maneira de o governo nomear os ocupantes dos cargos no setor elétrico. Não basta ser um técnico, é preciso ser um técnico escolhido pelos seus méritos, e não por ser apadrinhado de um dos grupos do PMDB. Furnas, que é co-autora do projeto com a Odebrecht, não poderia, em hipótese alguma, entrar na partilha política. Ou então estaremos condenados a repetir os mesmos vícios que acabamos de ver, com a diferença que agora é o mais caro projeto do governo Lula.

A barragem abrigará 44 turbinas de uma tecnologia nunca testada nesta dimensão. As hidrelétricas feitas na Europa usando as turbinas bulbo - próprias para rios com pouca inclinação, como o Madeira, e que têm a vantagem de alagar pouco - nunca passaram de 200MW de energia. Santo Antônio e Jirau chegarão a 4.000MW. Há empresários que criticam Madeira exatamente pela tecnologia bulbo, que é vista por outros como virtude.

Já ouvi empresário reclamando que ela trabalhará a fio d'água, o que aumentará a incerteza do fornecimento energético, e que, para fazer obra tão cara, deveria ser utilizada outra tecnologia, mais testada e tradicional. Como se vê, nada é simples neste projeto.

O Globo, 01/06/2007, Economia, p. 24

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