VOLTAR

Só é indígena quem pode

Agência Ibase
Autor: CARVALHO, Marcelo
20 de Abr de 2004

Só é indígena quem pode

Os(as) indígenas jamais foram satisfatoriamente compreendidos(as) pela sociedade brasileira. De idealizados(as) pelo Romantismo nacional a pessoas que precisavam ser "convertidas" a hábitos e crenças fora do contexto de sua realidade, os(as) indígenas viveram (e ainda vivem) uma situação de mudança radical de seu modo de vida.

Agência Ibase
Marcelo Carvalho

A situação perdura após 500 anos de contato com não-índios(as). E, embora as uniões inter-raciais tenham sido comuns e muitos dos conhecimentos indígenas tenham sido incorporados ao patrimônio cultural brasileiro que se construía/constrói, a realidade é que, em seu cerne, as culturas indígenas foram dilapidadas. E o número de indivíduos entrou em decréscimo, o que indicava a extinção.
As estatísticas são claras e contradizem a colonização cordial propalada pelo sociólogo Gilberto Freyre em Casa Grande Senzala. Não há dados concretos, mas estima-se que aqui viviam, no início do século XVI, quando da "descoberta" do Brasil, cerca de quatro milhões de indígenas, distribuídos por aproximadamente mil povos.
Neste começo de século XXI - segundo dados adotados pelo Instituto Socioambiental (ISA) -, 220 povos abrigam 400 mil indivíduos em aldeias situadas em 619 terras indígenas espalhadas por todo o Brasil (com exceção de Piauí e Rio Grande do Norte). Na Amazônia Legal - Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e o Oeste do Maranhão - vivem 60% da população indígena. Cerca de 10% a 15% dos(as) índios(as) vivem em cidades.
Muito de sua cultura já se perdeu. Mas o que nos resta é suficiente para compor um mosaico diversificado das culturas ameríndias brasileiras. Para se ter uma idéia, fala-se por volta de 180 línguas indígenas no Brasil. A situação geral da população indígena começou a se modificar nos anos 1980, quando verificou-se uma tendência de reversão da curva demográfica. O número de indígenas tem crescido. Em contrapartida, a pressão sobre suas terras e seu modo de vida continua.
"Os povos indígenas têm contato com TV, Internet, rádio, cidades etc. Eles sofrem, mas também conseguem extrair coisas que ajudam a vida nas aldeias (trator, computador, informações políticas etc). É difícil prever o futuro das novas gerações. Tudo depende dos antídotos que forem oferecidos a eles, como boa literatura, bons filmes, tudo que possa levá-los a refletir social e politicamente. Esses povos já enfrentaram situações tão duras que não terão dificuldade em encontrar caminhos modernos, mas consistentes. Mudanças são inevitáveis, mas muitas delas podem ser fecundas: com o estímulo à escolaridade. Quem sabe vamos ter em breve escritores, historiadores, cronistas, poetas... Nossa ajuda é importante", afirma Carmen Junqueira, antropóloga, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP.

Identidade

Mas, afinal, o que é ser índio(a)? Esta não é uma pergunta que tenha uma resposta tão evidente quanto a princípio se poderia pensar. A maior parte dos não-indígenas tem uma idéia padrão do que vem a ser um indígena, ficando, por vezes, confuso com alguém que se diz índio usando um lap-top, por exemplo. Indígena é uma identidade que difere com a época, cultura e instituição particulares, identificação esta que varia conforme critérios raciais, culturais, de modo de produção adotado etc.
No Brasil, chamamos de indígenas culturas as mais diversas, línguas, modos de organização social, política e maneiras de se relacionar com o meio ambiente. Atualmente, o critério da auto-identificação étnica é o mais amplamente aceito. De acordo com a definição encontrada no site da Fundação Nacional do Índio (Funai), "um grupo de pessoas pode ser considerado indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas pela população que as cerca".
Ou como na conceituação do antropólogo Darcy Ribeiro, no texto Culturas e línguas indígenas do Brasil - que se baseia na definição elaborada pelos participantes do II Congresso Indigenista Interamericano, no Peru, em 1949 - indígena é "aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato".
A dimensão cultural - para qualquer grupamento humano - é sempre dinâmica, como lembra Fernando Mathias, do Instituto Socioambiental. "Eles incorporaram artefatos, hábitos de fora, mas não deixam de ser índios por isso. Se apanham o peixe com vara de pescar, não será por isso que não estarão fazendo uma atividade tradicional. É preciso, então, prestar atenção na 'medida da tradicionalidade': até que ponto a atividade é de fato tradicional?", afirma, lembrando que o liame é tênue e envolve uma discussão complexa.
Definir o que sejam os(as) indígenas não é uma simples filigrana intelectual. Ao contrário, é o primeiro passo para que se evidencie se tratar de um conjunto populacional diferenciado do resto da população brasileira. Portanto, com identidades, desejos e necessidades particulares que se consubstanciam em reconhecimento de direitos especiais, prováveis compensações e mesmo na demarcação de territórios e conseqüente utilização de seus recursos naturais.
"Manter-se índio é condição para a manutenção de suas terras, de modo que é bom ser índio. Os jovens têm sonhos urbanos, como todos os jovens, mas à medida que experimentam discriminação e rejeição, tomam consciência do que significa a vida em comunidade. O isolamento na cidade acaba por tornar a vida na aldeia mais plena de conforto e segurança", afirma Carmen Junqueira.

Terra adorada

Segundo o site do ISA, "os 160 povos indígenas da Amazônia dispõem hoje de um conjunto de 377 terras reservadas, sendo que 76% destas áreas gozam de reconhecimento legal em diversos graus (terras delimitadas, homologadas ou registradas). A regularização das últimas terras indígenas da região avança a passos rápidos, ainda que falte resolver vários casos importantes (como o da Terra Raposa Serra do Sol em Roraima) e que a maioria das terras indígenas ainda sofram alguma forma de invasão. Entretanto, para ter uma idéia do ritmo desta territorialização indígena, é preciso lembrar que, de janeiro de 1990 a junho de 2000, foram homologadas no país 268 terras indígenas, cobrindo uma área de 728.026,56 km²".
A situação é o resultado de um processo de reafirmação da identidade por parte dos(as) indígenas, de uma mobilização dos movimentos indígenas durante os anos de "diálogo" com o Estado, ainda na ditadura militar, nos anos 1970. Embora bastante avançado, o processo ainda não está concluído. O panorama ainda é complexo: há terras já demarcadas e com registro em cartórios e áreas indígenas em fase de reconhecimento; e há também áreas sem nenhuma regularização. Tanto nas regularizadas quanto nas ainda por regularizar, há diferentes tipos de conflitos que ameaçam a vida dos(as) indígenas.
As 619 terras indígenas ocupam 105.736.366 hectares (1.057.363 km²) dos 851.196.500 hectares (8.511.965 km²) do território nacional, perfazendo 12,42% do país. Comparada com a população indígena (menos de 1% do total da população brasileira) pode até parecer muita terra para pouco(a) índio(a). Mas é preciso pensar em populações cuja dinâmica é a do deslocamento.
A maior parte dessas terras estão na Amazônia Legal, 401 áreas indígenas que ocupam 104.274.526 hectares. Para se ter uma idéia da importância da Amazônia para os indígenas brasileiros, o montante representa 20,83% do território amazônico e 98,73% de todas as terras indígenas do país. Em contrapartida, a terra Guarani Aldeia Jaraguá, em São Paulo, tem meros dois hectares de extensão.
Na avaliação de Fernando Mathias, o governo federal tem promovido avanços na questão da demarcação das terras indígenas, principalmente em questões pendentes, anteriores a esta administração. Mas, desde o ano passado, tem prosperado iniciativas no Congresso Nacional - e dentro do próprio governo - que poderão criar entraves à questão.
"Existem algumas propostas de emendas constitucionais, apresentadas pela bancada anti-indígena, tramitando no Congresso. Se aprovadas, sujeitarão a demarcação das terras indígenas ao Conselho de Defesa Nacional. No fundo, a questão das terras indígenas está servindo como barganha política", revela o advogado.

Nações no Estado

A relação entre indígenas e o Estado (primeiro português, depois brasileiro) sempre foi tensa. No passado recente (década de 1970), a atuação dos movimentos indígenas se deu tendo como ponto de referência (e oposição) o Estado autoritário. Relações difíceis, mas que serviram, para as organizações, como um processo fundante de suas próprias identidades, constituindo-se politicamente.
Os indígenas vivem hoje uma outra realidade. O conflito com o Estado - apesar das ameaças de retrocesso -, que tinha a questão territorial como pedra de toque, tende a se esvaziar. Além da diminuição das áreas de litígio territorial, vive-se internacionalmente um período de "desengajamento" do Estado com as questões sociais.
No atual contexto, o Estado brasileiro apresenta-se prioritariamente como árbitro nas questões que envolvem os indígenas, tendendo ora para as organizações da sociedade (incluindo indígenas), ora para interesses políticos e econômicos que atuam sobre as terras indígenas. É como se o Estado tivesse desistido de planejar uma política indigenista articulada e mais consistente, limitando-se à legalização e intervenção em casos de litígio.
O braço mais conhecido do Estado para assuntos indígenas, a Funai, ao que parece, faz o que está a seu alcance. "A Funai atua em praticamente todas as áreas indígenas, o que não é fácil. Tem escassez de recursos, mas conta com um bom grupo de indigenistas fiéis ao melhor espírito humanista. Dentro de suas limitações, tem atuado corretamente", afirma Carmen Junqueira.
Embora com correção, apenas a Funai não é suficiente. Como afirma Fernando Mathias, "o Estado precisa ter um papel multifacetado na questão indígena. Atuando como fiscalizador, coibindo atividades ilegais, zelando pelo patrimônio, demarcando as terras indígenas. Mas é necessário também atuar em políticas de saúde, ainda que em parceria com organizações da sociedade civil; educação, educação diferenciada; e apoio e fomento a iniciativas próprias destas comunidades que não conseguiram ainda decolar", afirma.
Existe também uma avaliação positiva das relações entre Estado e sociedades indígenas. Fernando Mathias aponta a descentralização das ações do Estado, que hoje não se concentram apenas na Funai. A tendência teve início nas duas gestões do governo FHC e continua no governo Lula.
"Houve dispersão das ações pelos ministérios da Saúde, da Educação, do Meio Ambiente etc. A questão indígena se transversalizou pelas instâncias do Estado. Mas falta integração, sem a qual as ações acabam sendo esparsas e pontuais, integração que não significa necessariamente colocar tudo em uma instância controladora única. A Funai tem um importante papel com os povos isolados, na demarcação de terras, coibindo ilegalidades. Mas, com tantas atribuições, a Funai acaba virando um mini-Estado sem os recursos necessários para a ação", afirma.

Da mesma maneira que na questão da reforma agrária para os sem-terra, a simples posse e o acesso à terra não resolvem os problemas dos(as) indígenas. Cada reconhecimento e demarcação de terra indígena pelo Estado precisam vir acompanhados por uma série de medidas de fomento de atividades e defesa destes territórios contra invasões.

Um grande número das terras indígenas legalmente reconhecidas é alvo de investidas de empresas mineradoras, pescadores e caçadores clandestinos, madeireiras e grileiros. Mas não é tudo. Muitos povos indígenas têm que conviver com rodovias, ferrovias e linhas de transmissão de energia cortando (ou em vias de cortar) suas terras; precisam se adaptar a lagos artificiais, formados por usinas hidrelétricas; lutar contra a poluição e o desmatamento.
A lista dos povos em risco é grande: ameaça de garimpagem nas terras dos Yanomami, em Roraima; extração ilegal de areia nas terras Guarani, em São Paulo etc. Mais recentemente, o garimpo de diamante na área dos Cinta-Larga, que resultou na morte de quase três dezenas de garimpeiros na reserva Roosevelt, em Rondônia.

Terra sobre terra

Uma questão candente é a da sobreposição entre as terras indígenas e as unidades de conservação ambiental. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), há 45 coincidências entre terras de índios(as) e parques na Amazônia Legal. Das 45, 30 incluem unidades de conservação federais (11.502.151 hectares sobrepostos) e 15 dizem respeito à parques estaduais (1.749.365 hectares sobrepostos).
A polêmica é sobre a pertinência ou não da sobreposição. Afinal, é possível conjugar, na mesma terra, preservação do meio ambiente e ocupação indígena? As organizações que trabalham com os(as) indígenas dizem que sim.
A posição contrária (dos(as)ambientalista oficiais e não governamentais, adeptos(as) da preservação integral do meio ambiente) arrola, entre outros argumentos, que a ocupação acabará por atrair interesses de grupos exteriores aos povos indígenas. Interesses avessos à preservação da floresta. Os(as) partidários(as) dos(as) indígenas apostam, por seu turno, no uso sustentável da floresta e no interesse das populações indígenas (gerador de mobilização social) em defender a floresta - mantenedora, em primeira instância, de sua sustentabilidade.
Vamos a exemplos dos dois lados. Um dos conflitos mais conhecidos é o da sobreposição entre o Parque Nacional de Monte Pascoal e a terra indígena Barra Velha, dos(as) índios(as) Pataxó, na Bahia. O parque foi criado em 1961 - com 22.500 hectares de área de Mata Atlântica - em terras ocupadas legalmente pelos Pataxó desde 1861. Os ambientais acusam os(as) Pataxó de exploração ilegal de madeira, que, por sua vez, se defendem dizendo não terem condições de sustentabilidade econômica.
Em favor da ocupação dos(as) indígenas, o exemplo do Parque do Xingu, em Mato Grosso. Fotografias do Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais), realizadas por satélites, mostram o parque coberto pela floresta equatorial. Ao redor, vastas áreas desmatadas. A presença indígena preservou a mata.
"A auto-sustentação é possível. Há projetos comerciais em várias áreas - mel, banana seca, polpa de frutas, artesanato. Mas precisamos pensar em alternativas econômicas para estes povos, alternativas que não sejam agressivas para o meio ambiente e que possam gerar retorno significativo para eles. Alguns povos pensam seriamente no turismo ecológico, o que demanda trabalho profissional, e na exportação de artesanato, bom artesanato. Temos que pensar juntos", afirma Carmen Junqueira, antropóloga, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP.
É preciso encontrar uma solução que respeite tanto a integridade cultural e material dos povos indígenas, quanto à conservação da biodiversidade.
"Procuramos ver a sobreposição não como conflituosa, mas como uma composição entre a preservação ambiental e a ocupação territorial em um plano de manejo sustentável. A sobreposição não é algo que seja necessariamente prejudicial. É preciso ver caso a caso. Existem povos indígenas que vivem tradicionalmente e suas intervenções são de baixo impacto ambiental. Mas nada impede, também, que façam atividades que não sejam originárias. Neste caso, devem estar sujeitas a legislação ambiental como todos nós. Mas, de acordo com a Constituição, o ISA defende a tese de que as terras indígenas têm prevalência sobre parques e propriedades privadas. É um direito territorial originário", afirma Fernando Mathias, advogado do ISA.

Pau e pedra

Um grande ícone da violência perpetrada contra indígenas é o do interesse das grandes empresas madeireiras sobre as árvores de suas terras. No entanto, para Fernando Mathias, a situação mudou. Os casos registrados - principalmente entre os Cinta Larga (Rondônia e Mato Grosso) e os Kayapó (Pará) - envolvem, em geral, apenas algumas lideranças indígenas. E mesmo aqui, há corte e comercialização seletiva de madeira, distante da exploração em grande escala em um desmatamento sistemático.
"Hoje, é cada vez menos produtivo a exploração de madeira cortada em terras indígenas. É uma ação ilegal, portanto há riscos e a atividade acaba sendo menos rentável. As terras indígenas não são mais a prioridade para as madeireiras."
A exploração minerária apresenta um outro panorama. Abriu-se um impasse, criado no texto da Constituição de 1988, com a possibilidade de exploração mineral nas terras indígenas. A regulamentação da exploração precisaria estar sujeita a leis complementares, que ainda não existem.
Entre 1987 e 1998 houve notável aumento dos títulos e requerimentos minerários em terras indígenas na Amazônia Legal, especialmente após 1993, triplicando o número destes requerimentos. Ao todo, foram 7.203 alvarás e requerimentos de pesquisa e lavra mineral sobre 126 terras indígenas.
"Por conta desse vazio na legislação, existe ação ilegal de garimpo em terras indígenas. A situação é crítica em Rondônia, onde há diamante nas terras dos Cinta Larga. Há um esquema organizado de contrabando, inclusive com a cooptação da algumas lideranças. São muitos garimpeiros, que também são explorados, entrando ilegalmente nas terras dos indígenas", afirma Fernando Mathias.
Mas é o ouro que desperta mais cobiça: são 4.468 processos, 62% do total dos títulos e requerimentos. Em seguida vem o cobre, com 425 processos, 5,9% do total. Em algumas regiões a situação é crítica: em 44 terras indígenas há processos de requerimento para exploração minerária que pretendem obter autorização para garimpo em mais de 50% do subsolo de cada unidade. Nas terras indígenas de Curuá, Parakanã, Roosevelt, Serra Morena, Tapirapé/ Karajá, Trocará, Xambioá e Xikrin do Cateté, a pretensão dos interesses minerários chega a mais de 99%.
"A pressão sobre as terras indígenas é enorme. Se antigamente isso era feito por posseiros e caçadores eventuais, hoje temos no front grandes empresas. A luta é desigual e pesada. Entretanto, se pudermos assegurar a terra e a defesa dos seus limites, o controle da poluição nos rios, o desmatamento ao redor das terras indígenas, já estaremos contribuindo para viabilizar a existência destes povos. De fato, teremos que melhorar nossa própria sociedade para poder contribuir mais para a questão indígena", afirma Carmen Junqueira.

Doce solidão

Ainda há indígenas isolados(as), sem contato sistemático com instituições oficiais brasileiras - mormente a Fundação Nacional do Índio (Funai). No entanto, a palavra "isolado" precisa ser entendida de maneira correta.
As sociedades são dinâmicas, o intercâmbio cultural, mercantil, sexual etc, sempre aconteceu. Povo algum no planeta está exatamente "isolado". Mesmo indígenas brasileiros(as) considerados(as) mais arredios(as) à presença de "representantes oficiais" do Estado, tiveram (ou têm) contatos, por vezes freqüentes, com diversos setores da sociedade.
Indigenistas e antropólogos(as) mais espertos(as) podem "ler a escrita" da existência destes povos em objetos encontrados em determinadas áreas ou de posse de pessoas ligadas a estes grupos, em relatos de moradores(as) das proximidades (às vezes, indígenas) e mesmo em testemunhos escritos dispersos e em fotografias.
Há, pelo menos, 42 evidências de indígenas isolados(as) no país, 12 delas confirmadas pela Funai. Evidentemente, não há informação sistematizada disponível sobre quem e quantos são. Cerca de 25 das evidências encontram-se dentro de terras indígenas demarcadas ou minimamente reconhecidas pelo Estado.
Em muitos casos, o isolamento é uma opção do grupo. A questão é delicada e precisa ser tratada com cuidado. "O contato deve orientar-se por princípios éticos, pelo respeito à autodeterminação e ao desejo destes grupos de se manterem isolados. O Estado tem que mediar, garantir a autodeterminação dos povos e reconhecer seu direito territorial", afirma Fernando Mathias.
Para Carmen Junqueira, porém, o contato acontecerá mais cedo ou mais tarde. Afinal, a Funai pode e deve respeitar a autodeterminação dos povos indígenas. Mas uma grande empresa mineradora que tenha "esquecido" seus escrúpulos, se manterá longe das terras de indígenas isolados(as) se ali existir uma grande reserva mineral?
"O isolamento só é possível quando há obstáculos físicos difíceis. Com o tempo, todos estarão em contato com tudo. Temos que dar o bom exemplo. Se conseguirmos melhorar nosso desempenho social e político, daremos uma contribuição importante ao futuro dos indígenas", afirma.

Invisibilidade

Toda sociedade possui seus tabus. Um dos maiores (talvez o maior) das sociedades indígenas é o da situação das mulheres. São elas as responsáveis pela transmissão da cultura dos ancestrais, que é o diferencial de cada cultura.
"É a mulher que, por ser quem menos possui vícios do colonizador e do 'neo-colonizador', guarda a sete chaves muito da cultura de seus avós e bisavós. No passado, a mulher possuía ainda o poder da determinação política, era dela a palavra final nas assembléias. Com a presença dos colonizadores e 'neo-colonizadores', os homens colocaram suas mulheres na retaguarda ético-cultural, para defendê-las", explica Eliane Potiguara, diretora executiva da Rede de Comunicação Indígena sobre Gênero e Direitos (Grumin).
Para Eliane, ainda há muito que se caminhar para o reconhecimento dos direitos específicos das mulheres. "As sociedades indígenas ainda estão em um processo histórico de construção das bases que efetivarão os direitos reprodutivos das mulheres. O assunto ainda é um tabu. Com relação à saúde, é necessário um maior empenho, não só por parte dos próprios movimentos de mulheres indígenas, mas também do próprio movimento indígena, onde a maioria é homem. E os programas de governo precisam incentivar as mulheres indígenas a dizerem, sem medo ou vergonha, o que precisam. As mulheres indígenas sofrem de várias enfermidades, câncer uterino, câncer de mama. Eu vi mulheres que já estavam para morrer e não queriam ir ao médico, por vergonha. É grande a desinformação da mulher sobre seu próprio corpo", desabafa Eliane Potiguara.
As mulheres indígenas não sofrem apenas com suas próprias interdições e censuras. Existe também uma violência exterior, praticada pelos homens. Aspecto este ainda menos mencionado, tabu sobre tabu.
"Todo mundo sabe que existe violência. O racismo à mulher indígena é algo muito desumano. O incesto é comum, a violência sexual é abafada e a violência física também. As mulheres jovens são as que mais sofrem, ficam grávidas, são abusadas sexualmente e cometem suicídio. Agora, quem comete tais violências é só o branco? As pessoas não querem falar sobre isso", denuncia Eliane Potiguara.

Boa ação

O Estado brasileiro vem executando algumas ações louváveis com relação aos(às) indígenas, através de vários ministérios como o da Educação. Mas são ações pontuais que precisam estar coordenadas em uma política indigenista consistente e continuada.
"Existem, sim, algumas iniciativas isoladas e não integradas. Mas não há uma política indigenista por parte do Planalto. O PT tinha um bom programa para a questão, mas esqueceu dele quando virou governo. A administração Lula está em um vácuo com relação à política indigenista. E esta paralisia da agenda abre espaço para os interesses anti-indigenistas", alerta Fernando Mathias.
Carmen Junqueira demonstra alguma expectativa. "O governo Lula ainda está sendo avaliado. Se conseguir demarcar as terras da Raposa Serra do Sol de modo contínuo e sem dividir o território, ficará na história como um governo pró-indígena. Caso contrário, seguirá o destino dos governos anteriores", afirma a antropóloga, citando a região onde 15 mil índios(as) das nações Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamana dividem um território de 1,6 milhão de hectares no nordeste de Roraima.
A assinatura da demarcação das terras da Raposa Serra do Sol está se tornando uma novela com enredo esticado, difícil de acabar. De 23 processos de demarcação oriundos do governo FHC, prontos para serem assinados, apenas o da Raposa Serra do Sol ainda não foi homologado. Todos os processos foram encaminhados antes para o Conselho de Defesa Nacional. A demarcação está sendo boicotada pelo governo de Roraima e por setores das Forças Armadas. Chegou-se mesmo a fundar um município, Uiramutã, dentro da terra indígena para atrapalhar a homologação presidencial.
"O governo deve reconhecer, na prática, o fator pluricultural e diferenciado dos povos indígenas, incluindo os direitos relativos a gênero, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres indígenas, como foi discutido na Conferência Mundial contra o Racismo. Este governo, que é politicamente o mais avançado que nós já tivemos, deveria efetivar o reconhecimento da dívida histórica que o Brasil tem para com os povos indígenas", afirma Eliane Potiguara.

As matérias contaram com os dados próprios e/ou trabalhados pelo Instituto Socioambiental (ISA).

Agência Ibase, 20/04/2004

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.