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"Sinto-me irmão menor de Lula", diz opositor

FSP, Mundo, p. A19
Autor: MORALES, Evo
22 de Mai de 2005

"Sinto-me irmão menor de Lula", diz opositor
Para Evo Morales, principal nome da esquerda boliviana, Chávez e Fidel vão bem porque se submetem "ao povo"

Da enviada especial a La Paz

Líder maior dos indígenas plantadores de coca da Bolívia, Evo Morales, 45, acusa multinacionais petroleiras de saquearem recursos naturais bolivianos. Para ele, exemplos de governos que "vão bem" por se submetem à vontade popular são o do ditador cubano Fidel Castro e o do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A Petrobras é a principal empresa estrangeira na Bolívia. Ainda assim, Morales, que é indígena da etnia Aymara e deputado pelo MAS (Movimento ao Socialismo), diz que não vê o Brasil como um país imperialista. "Na Bolívia, nos sentimos como irmão menor do Brasil. Como dirigente sindical e político, também me sinto como irmão menor do companheiro Lula.", disse em entrevista à Folha na quinta-feira.

Folha - Por que o Movimento ao Socialismo não está satisfeito com a Lei dos Hidrocarbonetos promulgada pelo Congresso na terça?

Evo Morales - Em primeiro lugar, a lei reconhece e legaliza os 76 contratos ilegais e inconstitucionais assinados em 96, 97 e 98. O Tribunal Constitucional, há um mês e meio, disse que esses contratos não foram referendados pelo Congresso. De acordo com a Constituição Política do Estado Boliviano, qualquer contrato deve ser referendado pelo Congresso.
O que dizia uma cláusula desses contratos? Que a transnacional adquire o direito de propriedade em boca de poço [o que é extraído do subsolo]. Quando sai o gás ou o petróleo, ele é da transnacional. Assim, saquearam nossos recursos naturais. A nova lei diz que o Estado recupera a propriedade do petróleo e do gás e que a migração para os novos contratos é obrigatória. Mas, com isso, ela reconhece esses 76 contratos como legais.
Segunda observação: como povos indígenas, queremos ter direito sobre tais recursos, e sua exploração deve sujeitar-se a uma consulta aos indígenas. Não pedimos a expulsão das transnacionais.

Folha - Mas esses contratos foram feitos com base em uma lei aprovada pelo Congresso. As empresas investiram de acordo com as regras que estavam em vigor. Como se pode mudar as regras do jogo e dizer que tudo o que foi feito é ilegal?

Morales - É necessário ajustar as normas. A situação muda, as necessidades mudam. Estamos falando de recursos naturais que são patrimônio nacional e devem beneficiar os bolivianos e não somente as transnacionais.

Folha - Os srs. não querem que as transnacionais deixem o país, mas que haja novos contratos?

Morales - Não queremos que saiam. Necessitamos de sócios, mas não podem ser donos. Dou um exemplo: sou dono desta casa e você se apropria dela ilegalmente. Eu tenho de tomar possessão física de minha casa, exercer o direito de propriedade. Se há acordo, são novos acordos, respeitando também seus interesses.

Folha - Nas manifestações contra a lei há uma forte associação entre as transnacionais e o imperialismo estrangeiro, e a principal transnacional é a Petrobras. Os srs. vêem Brasil como um país imperialista?

Morales - Não, não. Respeitamos a Brasil como um país industrial, ainda mais com um presidente operário. Na Bolívia, nos sentimos como irmão menor do Brasil. Como dirigente sindical e dirigente político, também me sinto como irmão menor do companheiro Lula. Em todo o caso, como irmão maior, Brasil e Lula têm de nos guiar para resolver nossos problemas. Não é porque é o irmão maior que nos pode submeter sob seus interesses. Tem de haver um certo equilíbrio para juntos resolvermos os problemas.
Nesse tema energético, Brasil e Bolívia, pelas reservas que temos de petróleo e gás, deveríamos elaborar uma estratégia energética não somente para Brasil e Bolívia, mas para toda a região.

Folha - Os srs. defendem o aumento do preço do gás que a Bolívia exporta para o Brasil?

Morales - Cada dia muda o preço. Quando assinaram os contratos? Quando o petróleo custava US$ 16, US$ 18. Quanto está agora? Quase US$ 60. Triplicou!

Folha - As petroleiras, inclusive a Petrobras, dizem que suspenderão seus investimentos devido à lei.

Morales - Não creio. Vi que a ministra de Energia do Brasil, Dilma Roussef, disse que a Petrobras não vai sair da Bolívia, mas vai diminuir seus investimentos. É uma questão de compatibilizar tecnicamente os acordos. Se nos dizem que não vai haver investimentos, não pode ser. Eles assinaram contratos quando o barril de petróleo custava US$ 16, US$ 17, e agora custa US$ 60. É injusto.

Folha - Por que o sr. acredita que as empresas continuarão a investir na Bolívia, se vão pagar mais 32% de impostos, vão enfrentar uma alteração obrigatória nos contratos e vão perder a propriedade dos produtos que extraem dos poços?

Morales - Depende da vontade de cada um. Se lhe convém viver na minha casa, viva. Se não lhe convém, não viva. Ninguém está pedindo expulsão. As transnacionais têm todo o direito de recuperar sua rentabilidade.

Folha - Mas elas dizem que não terão rentabilidade com o nível de tributação previsto na nova lei.

Morales - Vamos estudar. Fazemos uma auditoria sobre quanto investiram quando o petróleo estava em US$ 16 e quanto recuperaram quando estava a US$ 30, US$ 40, US$ 50, e agora US$ 60.

Folha - A Bolívia vive uma crise econômica ou política?

Morales - O modelo econômico na Bolívia e na maior parte dos países latino-americanos não funciona. O neoliberalismo não é uma solução. Temos que desprivatizar totalmente os serviços básicos. Privatizá-los é como violar os direitos humanos. Eles devem ser públicos. Os governos e presidentes que se subordinam ao Banco Mundial e ao FMI sempre vão mal. Já os que se subordinam ao povo, como [Hugo] Chávez, como Fidel [Castro], vão bem, apesar do bloqueio econômico.

Folha - Para "desprivatizar" os serviços básicos, o Estado boliviano precisa de dinheiro. A situação fiscal do país é frágil, com um déficit de 5,7% do PIB e uma dívida externa de 82% do PIB. Como essa "desprivatização" será financiada?

Morales - Justamente com os royalties do petróleo e gás. Não queremos ser um país mendigo. Que os governos e empresas nos deixem resolver nossos problemas com nossos recursos naturais.

Folha - Mesmo com os royalties, serão US$ 320 milhões a mais, por ano, do que se recolhe hoje. Com isso se pode solucionar tudo?

Morales - De quanto é o déficit fiscal da Bolívia? Cerca de US$ 400 milhões. Se somamos US$ 320 milhões, quase equilibramos as contas. Se isso aumenta e a produção aumenta, é uma solução.

Folha - Qual é a saída para a crise que a Bolívia enfrenta?

Morales - É a Assembléia Constituinte. Queremos um novo país, onde não haja exploradores e explorados, discriminados e discriminadores, onde não haja muitas diferenças econômicas, e que se respeite nossa diversidade.

Folha - Há um movimento novo no país, do qual o sr. é o maior símbolo, que é a emergência da população indígena na cena política...

Morales - Fomos condenados ao extermínio e sobrevivemos. Agora queremos o poder político, para recuperar o território e os recursos naturais para o povo boliviano. Não queremos nos vingar nem submeter ninguém.
De acordo com o censo de 2001, 62,2% dos bolivianos são quechuas, aymaras e guaranis. Na fundação de Bolívia, em 1825, excluíram os donos absolutos dessa terra, que são os povos indígenas. Os mesmos invasores fizeram a Assembléia Constituinte para fundar a Bolívia. E agora os donos queremos refundar a Bolívia.
A oligarquia não quer a Assembléia Constituinte. Dizem "vão nos submeter, vão se vingar". Essa é a mensagem que passam. Claro, é verdade que queremos acabar com os latifúndios na Assembléia Constituinte, queremos recuperar todos os recursos naturais e queremos desprivatizar todos os serviços básicos.

FSP, 22/05/2005, Mundo, p. A19

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