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A silenciosa praga das lavouras

O Globo, Rio, p. 17-19
03 de Jun de 2012

A silenciosa praga das lavouras
Regiões agrícolas com forte uso de agrotóxicos têm mais suicídios e mortes por câncer.

Carla Rocha, Fábio Vasconcellos e Natanael Damasceno

A s lesões vermelhas no rosto, que vez ou outra se espalhavam para braços e pernas, não o fizeram parar de roçar a lavoura. Era seu ofício desde os 15 anos, de sol a sol. Por anos, conviveu com crises, mais ou menos intensas. Teve que amputar o dedo indicador direito, que encaroçou como uma espiga de milho. Para as lesões num braço, quase no osso, precisou fazer enxertos de pele. A audição, frágil, evoluiu para uma quase surdez. Vinte e cinco anos depois de os sintomas surgirem, mais de 40 dias de internação e biópsias, José de Andrade, de 77 anos, descobriu que podia ser mais uma vítima do uso indiscriminado de agrotóxicos. Era só ele e a enxada, sem capa ou máscara. Às vezes, até sem galochas.
- A gente macerava o veneno, que era em pó, com a mão, antes de misturar na água. Depois sentava para almoçar. Durante 30 anos usei os produtos sem proteção. Pegava sol, chuva, tudo. Aplicava contra o vento; saía todo molhado. Não sabia do risco - conta o agricultor, que estudou muito pouco e não entendia as instruções do rótulo dos produtos.
Um levantamento do Globo com base em dados do Datasus e do IBGE revela que o Rio tem altas taxas de mortalidade por câncer e suicídio - que pesquisas científicas sugerem ter associação com o uso de agrotóxicos - em três regiões agrícolas. O mapa de ocorrências desses dois problemas coincide com as manchas de produtividade de tomate, escolhido para a pesquisa por ser uma das principais culturas do estado e ter apresentado alto índice de resíduos tóxicos nas últimas análises.
O Centro-Sul aparece na frente em mortes causadas por neoplasias, com 133 casos por cem mil habitantes (22% acima da média, que é de 109); depois vem a Região Serrana, com 125 (14%); e o Noroeste Fluminense com 117 (7%). Um detalhe salta das estatísticas: no Centro-Sul, onde estão grandes produtores de tomate, como Paty do Alferes, os índices são acentuados entre adultos de 40 a 49 anos. Nessa região, os índices estão mais de 52% acima da média do estado.
O suicídio é mais frequente no campo. Enquanto a taxa na Região Metropolitana é de 1,58 caso por cem mil habitantes, no Noroeste Fluminense chega a 5,89 (51% acima da média, que é de 3,9), a mais alta. Na Região Serrana, são 5,25 casos por cem mil (34%); e no Centro-Sul, 5,50 (41%).
No Brasil, agrotóxico movimenta US$ 7 bi
Maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que, em 2010, movimentaram US$ 7,3 bilhões, o Brasil responde hoje por 10% do mercado internacional (mais de 900 mil toneladas por ano). As cifras são também de um mercado recheado de polêmicas, como a dos possíveis efeitos desses produtos, o que divide fabricantes e pesquisadores. Para entender a realidade que está por trás desses números, repórteres do Globo foram buscar a história contada pelos próprios agricultores.
O que José de Andrade relata é uma rotina marcada por uma mistura de necessidade extrema e ignorância absoluta sobre os efeitos prejudiciais dos agrotóxicos. Aos 40 anos, sem qualquer explicação para uma série de distúrbios psicológicos, ele saiu de seu pequeno sítio em Secretário, distrito de Petrópolis, e foi caminhando até Santana do Deserto, em Minas Gerais.
- Deu problema na mente. Um dia, saí andando sem querer voltar. Dormia no meio do mato. Depois de 40 dias, o pensamento assentou. Voltei para casa - conta.
Ele passou a beber em excesso e só aquietou das crises de depressão, durante as quais mal se levantava da cama, recentemente, depois de ser tratado no Centro de Tratamento Oncológico (CTO), hospital privado de Petrópolis, que atende pelo SUS. Ele teve alta depois de tratar um câncer num dedo, que perdeu após uma necrose, num braço e no nariz.
Dois irmãos de José morreram de câncer. Um que o ajudava na lavoura teve um tipo semelhante ao dele, amputou um braço e faleceu aos 50 anos. O outro, que não tinha contato direto com agrotóxicos, morreu aos 70, vítima de um câncer na garganta. Todos foram criados em áreas de plantações.

Estudioso do assunto - que já teve mais de 30 artigos científicos publicados -, Armando Meyer, professor adjunto e diretor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da UFRJ, fez parte de uma equipe que, em 2003, constatou um risco maior de morte por câncer de esôfago e estômago entre agricultores da Região Serrana em relação às populações do Rio e de Porto Alegre, que registram altas taxas da doença. Dependendo da idade, o agricultor chegava a ter 300% mais chance de morte.
- O poder econômico e político do agronegócio no país é imenso. Os primeiros passos que tornaram o Brasil um jogador pesado do agronegócio foram dados nos anos 70, quando um decreto do governo determinou que uma parte do financiamento agrícola deveria ir para compra deste tipo de insumo. E o segmento não para de crescer em países como Brasil, China, Índia e Rússia. A situação de hoje ainda é o legado do passado - observa Meyer. - O agricultor usa o produto de forma errada. A culpa não é dele, mas do governo.
Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp e pesquisador dos efeitos do agrotóxico, Ângelo Trapé analisou os dados obtidos pelo Globo e não considerou as relações um indicativo importante:
- Estudos epidemiológicos que investigam supostas relações entre câncer e agentes ambientais são longos, até de décadas. Não é possível qualquer correlação com os dados apresentados. Além disso, não há um estudo clínico epidemiológico que indique que são cancerígenos os agrotóxicos registrados no país, aos quais aquelas populações poderiam estar potencialmente expostas.
Desde 2000, a Anvisa já retirou de circulação 11 ingredientes ativos de agrotóxicos considerados nocivos à saúde. Dois são analisados com indicações de banimento e 17 estão à venda com restrições. O gerente geral de toxicologia do órgão, Luiz Cláudio Meirelles, explica que o país lida com um passivo que exige uma série de estudos e avaliações até a retirada de um produto do mercado. Para ele, os dados obtidos pelo Globo merecem ser investigados:
- Há uma grande preocupação em torno dos efeitos crônicos a longo prazo, no agricultor e no consumidor. Alguma coisa acontece nessas áreas do interior para registrar taxas de câncer acima da média. O levantamento aborda uma questão importante.
O lavrador Oséias de Oliveira Rodrigues morreu devido a um câncer no cérebro em 2009, aos 37 anos. Ele estava na lavoura desde os 8 anos e deixou dois filhos. Segundo sua irmã, Maria José Rodrigues, de 51 anos, nunca usou proteção durante a pulverização dos produtos na lavoura em Teresópolis:
- Ele sentia dores de cabeça e tontura mas, nos postos de saúde, receitavam dipirona e remédios para enjoo. Nunca associaram as dores ao veneno. Sequer perguntavam em que ele trabalhava.
Responsável pelo departamento de Vigilância do Câncer Relacionado ao Trabalho e ao Ambiente do Instituto Nacional do Câncer, Ubirani Otero afirma que o país precisa vencer o "silêncio epidemiológico".
- O profissional de saúde atende um paciente com câncer e não pergunta em que ele trabalha. Mais de 50% das pessoas com câncer na Serra se tratam no Inca - afirma Otero, que costuma dizer que agricultores tomam "banho" de agrotóxico.
Breno Braga, médico do Programa Saúde da Família que trabalha há oito anos na localidade de Vargem Alta , no distrito de São Pedro da Serra, em Nova Friburgo, diz que ligou casos de pacientes com depressão e suicídio a venenos agrícolas. Maior produtora de flores do Rio, a cidade tem plantações com uso intenso de agroquímicos.
- É muito difícil estabelecer uma relação de causa e efeito, mas a localidade registra muitos casos de depressão e suicídio, que impressionam porque atingem jovens entre 20 e 30 anos. É muito comum eles beberem o próprio agrotóxico - afirma Braga.

A vida real que surge dos números oficiais

Após ouvir pesquisadores que acompanham os efeitos dos agrotóxicos na saúde humana, repórteres do GLOBO criaram um banco de dados com informações sobre produtividade agrícola no estado, número de mortos por câncer, faixa etária e casos de suicídios, entre outras variáveis. Os dados foram obtidos no DataSUS, no IBGE e na Secretaria estadual de Agricultura.
Depois de realizar testes para saber se havia correlação entre as variáveis, a equipe, com o auxílio de um software de estatística espacial, viu que as manchas de altas taxas de câncer e suicídio coincidiam com as altas taxas de produtividade do tomate. Os resultados não apontam causalidade entre as variáveis, mas compõem um dado que pode ser considerado em futuros estudos sobre os efeitos dos agrotóxicos.

'É preguiça mesmo. Tenho a roupa, mas é quente e incômoda'

Carla Rocha, Fábio Vasconcellos
e Natanael Damasceno
granderio@oglobo.com.br

Com jatos que produzem uma nuvem de agrotóxico, a pequena produtora de Barracão dos Mendes, distrito de Nova Friburgo, pulverizava sua plantação de salsa. Aos 42 anos, Elane Freitas da Silva percorre o terreno vestida com calça comprida, blusa e galochas. Apesar de ter o equipamento de proteção individual (EPI) - vestimenta especial feita para defender os trabalhadores da ação dos agrotóxicos - Elane não usa a roupa, por achá-la incômoda.
- É preguiça mesmo. Tenho todo o equipamento, mas a roupa é quente e incômoda. E, se for muito lavada, acaba rasgando. Então, não utilizo. Eu sempre usei o veneno e nunca tive problemas de saúde - afirma a agricultora, admitindo que já recebeu, de técnicos da Emater, orientação sobre o perigo das substâncias aplicadas nas plantações.
Elane mora com os três filhos em uma casa a poucos metros do terreno no qual planta salsa e feijão. Esta característica da moradia, comum à realidade dos trabalhadores rurais da Região Serrana, é objeto de estudo sobre a ação de agrotóxicos porque se acredita que as substâncias, além de afetar o agricultor diretamente, podem causar danos em diferentes níveis de exposição. A embalagem do produto que Elane usava, um fungicida sistêmico, recomenda o uso do EPI, entre outros cuidados. E ainda alerta que a aspiração do produto pode causar edema pulmonar e pneumonia, entre outras reações. A agricultora, no entanto, não acredita que possa adoecer.
O comportamento de Elane não é exceção. Debruçada sobre o problema há uma década, a promotora Anaiza Helena Malhardes Miranda, titular da Primeira Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo de Teresópolis, diz que as informações que acompanham os produtos são de difícil entendimento para o pequeno agricultor. E afirma que o uso de EPI na região é praticamente inexistente.
- Este equipamento disponível no mercado não foi concebido para o uso com o agrotóxico, mas para outros produtos químicos. São quentes e não protegem o trabalhador de forma adequada - diz a promotora, que conduz inquéritos para buscar respostas sobre os riscos da exposição humana e ambiental aos agrotóxicos na Região Serrana.
Os modelos de EPIs variam segundo os riscos da atividade exercida pelo trabalhador. Na agricultura, eles envolvem uso de calça e camisa com capuz, confeccionados em plástico e lona, avental, galochas, luvas de borracha, óculos de plástico e uma máscara com filtro de ar.
Para agricultor, 'mata mato' não tem efeito tóxico
A questão sobre o uso da roupa especial é complexa. Os agricultores, em geral, mesmo quando doentes, são capazes de jurar que as usam toda vez que aplicam agrotóxico na lavoura. Paciente do CTO de Petrópolis, Angelino Batista, de 72 anos, na lavoura desde os 15, tem câncer de próstata. Ele garante nunca ter usado agrotóxicos, e conta que trabalhava apenas na colheita. Os insumos eram guardados num barraco, diz ele, longe do local no qual os agricultores dormiam. Ao longo da vida, Angelino plantou milho, arroz, feijão, café. Mas ele admite ter usado o que chama de "mata-mato", que considera inofensivo.
- A gente jogava a remédio no mato para facilitar a capina. Em dez dias, o capim está morto. Depois, a gente queima e deixa a água da chuva levar a poeira e as cinzas. Aí fica mais fácil capinar - diz Batista.
Os agrotóxicos se dividem em vários grupos, incluindo fungicidas, inseticidas e herbicidas - este inclui os tipos apelidados pelos agricultores de "mata-mato". Os produtos podem ser classificados de acordo com cinco classes de toxicidade.
Presidente da Sociedade Franco-Brasileira de Oncologia, a médica Carla Ismael, que estuda há 30 anos a evolução da doença em Petrópolis, explica que as substâncias dos agrotóxicos, ao entrarem em contato com o organismo, pela inalação ou por contato físico, podem ter um efeito altamente cancerígeno no organismo.
- Começamos a ver muito tumor gastrointestinal, de estômago e de cólon em pacientes que mexiam com plantação, com hortas. Então, eu comecei a estudar na teoria para depois ver na prática. Os agricultores têm muito pouco conhecimento - explica a médica. - Há ainda muitas outras complicações como a síndrome mielodisplásica (que pode progredir para leucemia), anemias sem causa, alteração dos glóbulos brancos.
O CTO tem, atualmente, cerca de 150 pacientes que trabalhavam como agricultores na região.

Serra terá hospital para pacientes com câncer

A Secretaria estadual de Saúde informou, em nota, que "os estudos científicos realizados até o presente momento não são conclusivos sobre o uso de agrotóxico como causa determinante de câncer". O órgão acrescentou que o Rio é um dos que menos utiliza agrotóxicos na comparação com outros estados. "Portanto, não é prudente indicar a relação do aumento de casos de câncer com uso de agrotóxicos sem estudos específicos para essa finalidade", diz a nota. De acordo com a secretaria, houve aumento nos investimentos no diagnóstico e no tratamento da doença. "Há menos de 4 anos, sequer havia no estado unidades de saúde que realizavam, por exemplo, exames de mamografia. Hoje, eles são realizados no Hospital da Mulher e no Rio Imagem". O órgão informou que vai construir dois hospitais para tratamento de pacientes com câncer: um em Friburgo, na Região Serrana, e o outro em Nova Iguaçu, na Baixada.

Para Andef, uso de agrotóxico é seguro
Fabricantes afirmam que produtos são como remédios vendidos em farmácia

A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef) preferiu não comentar o mapeamento das áreas com altas taxas de mortes por câncer e grande produção de tomate no Estado do Rio. Embora tenha sido informado que não se tratava de um estudo científico sobre causas do câncer, o diretor executivo da Andef, Eduardo Daher, alegou que só poderia fazer alguma análise caso conhecesse o método e as variáveis que foram levados em conta pelos repórteres.
Daher disse que, entre essas variáveis, por exemplo, deveria ser levado em conta o tipo de câncer mais comum nessas cidades e o agrotóxico mais utilizado nas plantações.
O diretor executivo alegou ainda que a Andef não tem conhecimento de pesquisas acadêmicas que tenham feito uma relação direta entre uso de agrotóxicos e o câncer. Daher defendeu a aplicação desses produtos na lavoura. Segundo ele, todos são devidamente aprovados pela Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente:
- A indústria de defensivos não aceita essa correlação entre seus produtos e o câncer. Não temos esse nexo causal entre uma coisa e outra. Os defensivos são autorizados após anos de pesquisas e contam com autorização dos órgãos de fiscalização. Eles são seguros e devem ser usados seguindo as prescrições da bula e de um engenheiro agrônomo. Para nós, os defensivos são como os remédios vendidos numa farmácia que foram prescritos por um médico. Se não fossem seguros, os defensivos não teriam autorização para serem vendidos.
Eduardo Daher acrescentou que, hoje, o tomate representa muito pouco do volume de agrotóxicos vendidos pela indústria.
- A soja representa 44% do consumo de defensivos no Brasil. Em seguida vêm milho, algodão, cana-de-açúcar e café. Essa cinco culturas consomem cerca de 80% do nosso mercado. O tomate representa cerca de 2% do que vendemos - disse Daher. - Há uma tendência de tachar o agricultor de uso indiscriminado de defensivos. Discordamos disso. A primeira pessoa que come o que produz é próprio agricultor - acrescentou.

OS EFEITOS DA CONTAMINAÇÃO

A exposição a agrotóxicos pode provocar uma variedade de doenças que dependem dos produtos usados, do tempo de uso, da exposição e da quantidade que penetrou no corpo:

CONTATO COM A PELE: Irritação (pele vermelha, quente e dolorosa, inchaço e, às vezes, ardência e brotoejas), desidratação (pele seca, escamosa, às vezes, infeccionada, com dor e pus, e evoluindo para cicatrizes deformadas, esbranquiçadas ou escuras), alergia (brotoejas com coceiras).

ATRAVÉS DA RESPIRAÇÃO: Ardência do nariz e da boca, tosse, corrimento, dor no peito e dificuldade de respirar.

PELA BOCA: Dor de estômago, náuseas, vômitos, diarreia, lesões na boca e garganta.

OUTROS: Efeitos gerais aparecem após a contaminação prolongada: dor de cabeça, transpiração anormal, fraqueza, câimbras, tremores, irritabilidade,dificuldade para dormir, dificuldade de aprender, esquecimento, aborto, impotência e até depressão.

ATENÇÃO: Nas intoxicações crônicas, que aparecem após penetração repetida de pequenas quantidades de agrotóxicos por um tempo mais prolongado, surgem problemas respiratórios graves, alteração do funcionamento do fígado e dos rins, anormalidade da produção de hormônios da tireoide, dos ovários e da próstata, incapacidade de gerar filhos, má-formação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças, além de câncer.

Controle de resíduos em hortaliças é mínimo
Vigilância faz análises por amostragem e Ceasa vai usar laboratórios da Fiocruz, cumprindo acordo com Ministério Público

Carla Rocha, Fábio Vasconcellos
e Natanael Damasceno
granderio@oglobo.com.br

O controle de resíduos em hortaliças, legumes e frutas produzidos no Rio é frágil. Enquanto a Vigilância Sanitária do município faz a análise por amostragem de alimentos comprados por grandes redes de supermercados, que têm fornecedores próprios, a Ceasa - que recebe 80% do que é produzido por agricultores do estado e distribui para feiras e mercados de pequeno porte - não tem qualquer controle sobre a qualidade dos produtos. Após discussões com o Ministério Público estadual, a empresa, vinculada à Secretaria estadual de Desenvolvimento Regional, Abastecimento e Pesca, deve começar a fazer nos laboratórios do INCQS (Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde) da Fiocruz a análise de amostras que chegam a seus depósitos através de 800 lojistas da central e também de 2.800 produtores rurais cadastrados.
Projeto vai rastrear a origem do produto
O presidente da Ceasa, Leonardo Brandão, garante que o objetivo é caminhar para o uso cada vez menor de agrotóxicos no Rio, o que seria facilitado pelo fato de o estado ter uma cultura variada, sustentada em pequenos e médios produtores. Ele reconhece as fragilidades do passado, mas ressalta que não deve se estimular uma onda de alarmismo:
- O fato de não se ter um controle do uso de agrotóxicos, que de fato não havia, não significa que todos os produtos do estado estejam fora do padrão de qualidade. Não pode acontecer uma onda alarmista e o consumidor achar que está tudo contaminado. Não é assim. A partir de agora, em parceria com o estado, o Ministério Público estadual e a Fiocruz estamos assumindo esta responsabilidade, para garantir que o alimento que chega na mesa do consumidor seja saudável.
O projeto piloto começa com três culturas: abobrinha italiana, tomate e abacaxi.
- Quando for constatada alguma irregularidade, o comerciante terá suspensa a autorização para vender aquele produto. A ideia é rastrear a origem do produto e fazer um trabalho de reeducação ambiental. Em caso de reincidência, aplicaremos multas. Tanto produtores quanto comerciantes poderão ser responsabilizados, dependendo de cada caso - disse Leonardo Brandão.
Diretor técnico da Empresa de Assistência e Extensão Rural do Rio (Emater-RJ), Ricardo Mansur diz que seus técnicos orientam o agricultor a dar preferência a técnicas alternativas de controle de pragas, como o manejo integrado de culturas e o uso de inseticidas biológicos. Mas afirma que, em alguns casos, o uso dos agrotóxicos é importante. Para ele, o problema surge do mau uso dos produtos, que acaba implicando a contaminação dos trabalhadores, dos alimentos e do meio ambiente. Ele chama a atenção para o papel do consumidor de exigir qualidade dos alimentos vendidos nas prateleiras de estabelecimentos do estado. E diz que parte das grandes redes de supermercado já está de olho nessa demanda.
O grupo Pão de Açúcar, por exemplo, afirma ter adotado, desde 2008, um programa de monitoramento e auditoria de seus fornecedores. Segundo a empresa, o programa capacita os produtores e faz a análise de resíduos nos produtos que chegam às lojas. Uma outra medida foi permitir que os clientes tivessem acesso, pela internet, a informações sobre a origem dos produtos vendidos.
A agrônoma Aline Oliveira, funcionária do grupo Pão de Açúcar e responsável pela Região Serrana, diz que, ao menos uma vez por ano, faz uma visita a cada um dos produtores cadastrados para orientá-los sobre o uso dos agrotóxicos. Em caso de irregularidade, o agricultor pode até ser excluído da base. E conta que, um de seus fornecedores, Pedro Alex Barbosa, do Sítio Vale Verde, pode ser considerado um exemplo do sucesso do programa.
- Quando começamos, o grupo Pão de Açúcar tinha cerca de 1.200 fornecedores no país inteiro. Hoje são apenas 600. O próprio Pedro teve que mudar alguns conceitos - diz.
Pedro Alex tem três unidades produtoras no Rio - duas em Teresópolis e uma em Soledade, Minas - que representam cerca de 37% do total dos alimentos que vende. O restante compra de pequenos produtores da região. O carioca, que começou a produzir em 1997, tem uma frota com 14 caminhões. Metada da frota sai carregada diariamente com produtos para os grandes centros de consumo. Ele conta que, desde que aderiu ao programa, aumentou os ganhos exponencialmente. Hoje, além do Pão de Açúcar, tem a rede de supermercados Prezunic entre seus principais clientes.
Apesar da preocupação do produtor e das redes de supermercado, uma cena presenciada a alguns quilômetros do centro de recepção de alimentos de Pedro mostra que o sistema não é imune a falhas. Célio Garcia do Canto, de 70 anos, que cultiva alface e couve em sua pequena propriedade, foi flagrado aplicando agrotóxicos sem proteção individual. Caixas com a logomarca do Sítio Vale Verde espalhadas pelo terreno mostram que ele é um dos agricultores que vendem a colheita para o intermediário. Célio afirma afirma que só usa agrotóxicos permitidos e na dosagem certa e que respeita o período carência mínimo entre as aplicações do produto e a colheita. Mas o flagrante mostra que, ao menos ali, ainda é necessário um trabalho maior de conscientização.
- Só vou aplicar na altura do chão. Por isso não preciso usar o equipamento - alega.
Como a maioria dos pequenos agricultores, Célio começou a trabalhar quando ainda era criança.
- Na época, usávamos veneno mais forte, que nem é mais vendido - lembra o agricultor, fazendo referência em seguida a uma paralisia que teve aos 35 anos. - Passei oito dias na cama.
Entre os efeitos nocivos dos agrotóxicos, alguns são de natureza neurológica e podem causar paralisias temporárias.

ATENÇÃO AOS ALIMENTOS

Prefira frutas e verduras da época. Segundo especialistas, fora da estação adequada é quase certo que a fruta, verdura ou legume tenham recebido cargas maiores de agrotóxicos.

Descasque as frutas. Os resíduos de agrotóxicos ficam especialmente nas cascas das frutas.

Para a lavagem das frutas e verduras, deve- se usar água corrente em abundância, friccionando com as mãos para limpar a superfície. Pode ser utilizado sabão neutro, com o cuidado de retirá-lo bem durante o enxágue.
Outra medida é colocar esses produtos, durante 20 minutos, numa de um litro de água com quatro colheres de sopa de vinagre. Mas, como muitos agrotóxicos têm ação sistêmica, e circulam pela seiva e tecidos das plantas, os cuidados reduzem a quantidade de resíduos, mas não garantem a eliminação total deles.

Como os agrotóxicos se fixam nas folhas externas das verduras, é aconselhável retirá-las para reduzir parte de sua carga.
Diversifique nas hortaliças e frutas. Além de propiciar boa mistura de nutrientes, reduz a chance de exposição ao mesmo agrotóxico usado pelo agricultor.

Dê preferência aos produtos de sua região porque os alimentos que vêm de longe costumam ser pulverizados também durante o armazenamento.
FONTE: Ministério Público Estadual/Instituto Estadual do Ambiente e Anvisa.

Em busca de uma agricultura sem química
Agrônomo defende a agroecologia e produtos a preços mais baixos

Predominante na agricultura comercial, os agrotóxicos não são unanimidade. O agrônomo Roberto Selig defende uma economia rural livre de produtos químicos. Dono de uma propriedade de 30 hectares em Teresópolis, ele se posiciona no lado oposto ao dos defensores dos pesticidas.
- É claro que a agricultura sobrevive sem agrotóxicos. Inviável é sistematizar um produto que chega contaminado à população. Isso sem falar da perda ambiental. Todos os cursos d'água que cortam esta região cheia de pequenas culturas altamente dependentes de agrotóxicos vão parar no Rio Preto, de onde saem 75% da água que abastece Teresópolis.
Aos 55 anos, Selig é pai de três filhas e avô de um menino. Ele conta que virou produtor há 30 anos e que chegou a usar defensivos na lavoura. Mas que, pensando na saúde da família, convenceu-se de que estava no caminho errado. Hoje cultiva produtos variados em seu terreno, usando técnicas naturais que dispensam o uso de agrotóxicos. Ele se tornou defensor radical da agroecologia, uma proposta alternativa que aposta na agricultura familiar e tem forte compromisso com a sustentabilidade.
Ele ajudou a fundar a Associação de Agricultores Biológicos do Rio (Abio) para difundir a agricultura orgânica e assistir o produtor. Hoje é um dos responsáveis por uma feira de orgânicos na cidade. Para Selig, o produto cultivado sem o uso de defensivos e fertilizantes químicos vai conseguir cada vez mais espaço na preferência não só do consumidor, mas também do produtor, barateando os custos e o preço nas prateleiras.
Outros adeptos da agricultura orgânica têm opiniões semelhantes. Eduardo Guimarães, responsável técnico pelo Sítio do Moinho, produtor de Itaipava que fornece orgânicos para restaurantes, hotéis e supermercados do Rio, diz que a demanda, hoje, ainda é muito maior que a oferta:
- O preço dos orgânicos tem caído. E a tendência é que cair mais à medida que mais produtores forem adotando este modelo de produção.

O Globo, 03/04/2012, Rio, p. 17-19

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