VOLTAR

Setor elétrico entra na fase de rezar pela chuva

OESP, Economia, p. B1, B4
03 de Dez de 2006

Setor elétrico entra na fase de rezar pela chuva
Sem gás suficiente para as termoelétricas, governo só conta com as hidrelétricas para evitar crise até 2010

Renée Pereira

O embate entre a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Ministério de Minas e Energia, no caso da falta de gás para abastecer as térmicas, expôs a realidade preocupante do setor elétrico brasileiro. Ao decidir retirar do planejamento do setor as usinas sem combustível para gerar energia, a agência reguladora derrubou o argumento do governo de que não há risco de desabastecimento até 2010. Fato que pode se transformar numa pedra no sapato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujos planos prevêem crescimento da economia acima de 5% a partir de 2007.

Os números mostram que, sem as termoelétricas a gás, os riscos aumentam significativamente a partir do ano que vem. Um documento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) - que, no meio da briga, pediu que os dados fossem desconsiderados - mostra que a exclusão das usinas eleva de 6,95% para até 16,75% o risco de déficit de energia na Região Sudeste. Para 2008, o porcentual poderia atingir até 19,85%, quando o tolerável é 5%.

Mas o governo conseguiu reverter a situação, pelo menos no papel. O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) decidiu que a resolução da Aneel deve ser adiada até que as térmicas a gás sejam testadas para verificar o volume de energia que conseguirão produzir. A expectativa é de que os 2.888 MW que seriam retirados do planejamento, segundo a Aneel, caiam para cerca de 2 mil MW. Resultado que não permite ao País respirar aliviado.

Mas, qualquer que seja o resultado desse teste, o que ficou claro é que não adianta maquiar a situação, afirmam especialistas. Para contar com as usinas, é preciso ter gás para abastecê-las. Não adianta ter potência se não há combustível. Foi o que ocorreu no racionamento de 2001. A diferença é que, na época, havia falta de água para gerar energia e agora falta gás natural para abastecer as térmicas.

'O fato é que entramos na fase 'religiosa' do setor. Ou seja, é preciso começar a rezar para que as chuvas sejam suficientes para recuperar os reservatórios e atender ao aumento da demanda', afirma o sócio-diretor da Gásenergy Assessoria Empresarial, Marco Aurélio Tavares. Segundo ele, as plantas de Gás Natural Liquefeito (GNL) podem ajudar o País. Ele ressalta, porém, que, além de caros, esses projetos não saem do papel de um dia para o outro.

O problema das termoelétricas a gás não é novo. Em maio do ano passado, a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, já admitia que, se ligadas todas as usinas, não haveria combustível suficiente para abastecê-las. A falta de gás voltou a afetar o setor elétrico neste ano, especialmente depois da seca no Sul, em que o Sudeste teve de mandar energia para a região. Isso provocou alta dos preços no mercado à vista e as térmicas foram acionadas. Mas a medida foi em vão. Dos 4.900 MW exigidos, só foram gerados 1.400 MW.

Crescimento medíocre mantém País afastado do risco de apagão
Para o Brasil crescer nos níveis que deseja o governo, é preciso acelerar os investimentos no setor elétrico

Renée Pereira

Os planos do presidente Lula de elevar o crescimento do País para níveis superiores a 5% ao ano a partir de 2007 podem ir por água abaixo se ele não conseguir deslanchar os investimentos na área de energia. Coincidentemente, a iminência de uma nova crise elétrica ocorre no segundo mandato de Lula, a exemplo do que ocorreu em 2001, na administração de Fernando Henrique Cardoso.

Até agora, segundo especialistas, o que tem jogado a favor da oferta de energia no País é o tímido avanço da economia, abaixo de 3% ao ano. Se o País começar a crescer acima de 5% ao ano, o setor elétrico não deve suportar muito tempo. De acordo com dados da Gásenergy, os riscos de déficit estarão acima dos 5% tolerados a partir do ano que vem, em algumas regiões do País.

'Como consumidor, estou preocupado com a situação. Se crescermos 4% ou 5%, o apagão chega mais perto', enfatiza Mario Cilento, presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace), cujas associados representam 25% do PIB brasileiro.

Na avaliação de Gorete Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), além da falta de gás para abastecer as térmicas, há outras questões que aumentam o risco de déficit do País. Um deles é exatamente o argumento do governo de que as distribuidoras estão 100% contratadas até 2010.

O fato é que há 20% desse mercado, chamado livre, que não está sendo considerado pelo governo, diz ela. 'É preciso saber como estão esses consumidores, formados pelas grandes empresas. Os contratos vencem quando?', questiona ela. A questão é que, se esses consumidores livres não tiverem energia para abastecer, eles vão bater na porta das distribuidoras. Daí os 100% contratados vão por água abaixo. 'Ou será que a solução será parar essas empresas', questiona um outro especialista que prefere não se identificar.

De acordo com dados da Comerc - com base em informações da Aneel, mas representando apenas 20% das operações do mercado livre -, 49% dos consumidores livres terão seus contratos vencendo entre 2007 e 2010 e 51% entre 2011 e 2016. A Comerc levantou também que os consumidores livres já têm encontrado dificuldade para renovar seus contratos. Isso porque as geradoras direcionaram um grande montante de energia para as distribuidoras por meio dos leilões do governo.

Mais de 20.000 MW foram negociados nesses processos, o que 'enxugou' do mercado a energia disponível para contratação pelos consumidores livres. A Comerc aponta ainda que cerca de 29% dos consumidores livres terão seus contratos vencendo entre 2007 e 2009. 'O grande desafio do governo é garantir o abastecimento de 2009 e 2010', diz Gorete.

O professor da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás, afirma que o risco de racionamento já está aí. A idéia de que o risco vai diminuir está apenas no papel. 'Estou rouco de alertar para o fato de o País entrar novamente em colapso. A resolução da Aneel é só uma confirmação dos problemas existentes. Mas oficializar ou não a falta de capacidade das térmicas de funcionar de forma plena não vai solucionar o problema.'

Pinguelli afirma que a inclusão das térmicas no sistema elétrico foi mal feita e intempestiva, além de dar enormes prejuízos à Petrobrás. 'A questão é que o governo Lula não fez nada para resolver isso. Está ficando tudo embaixo do tapete.' Para administrar a crise, a alternativa será usar térmicas bicombustível, que deverão gerar um custo grande para o País e, conseqüentemente, para o consumidor. 'Esse é o preço de não fazer as coisas com antecedência.'

Cilento acrescenta também que houve um grande incentivo da Petrobrás e do governo para aumentar o consumo de gás natural em vários setores. Isso incluiu a transformação de várias indústrias, que passaram a adotar o gás no lugar de óleo combustível e diesel, e o aumento das térmicas na matriz elétrica. Além disso, o consumo de veículos teve uma explosão nos últimos anos. Só esqueceram de elevar a oferta. 'Fiz minhas opções como consumidor e agora isso não é mais válido', diz o executivo.

Modelo custou a sair. E não agradou aos investidores

Em 2002, dois meses antes do início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o atual presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, revelou em entrevista ao Estado uma grande preocupação com um novo racionamento no País. Na época, ele afirmava que a crise de 2001 havia deixado marcas profundas e uma 'perigosa sensação de que o setor não tinha urgência nos investimentos'.

De lá pra cá, as regras mudaram completamente com o novo modelo elétrico. Mas a sombra de um novo apagão continuou presente. A perigosa sensação a que se referia Tolmasquim parece ter se confirmado. Apesar das novas regras, o setor não conseguiu atrair o volume necessário para os investimentos do País.

Um dos problemas é a questão ambiental, diz o professor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Pinguelli Rosa. 'Há um oposição forte às hidrelétricas que só pode ser resolvida se o governo sentar com os ambientalistas e resolver isso', afirma ele, ressaltando que o papel do Ministério de Meio Ambiente é realmente ser rigoroso.

Boa parte dos projetos de energia elétrica está emperrada por problemas ambientais. Segundo o último relatório de fiscalização da Aneel, de novembro, há mais de 3 mil MW de usinas com graves problemas para entrar em operação, como a suspensão do processo de licenciamento ambiental, solicitação de rescisão amigável do contrato de concessão, demandas judiciais e declaração de inviabilidade ambiental do empreendimento, entre outros.

A previsão da Aneel para este ano era que 1.825 MW entrassem em operação. Mas, desse total, apenas 734 MW estão sem restrição para funcionar. Outros 758 MW apresentam algum tipo de problema e 333 MW têm graves restrições. Os dados da agência reguladora consideram hidrelétricas, termoelétricas, pequenas centrais hidrelétricas e energia eólica.

Na avaliação de Gorete Paulo, da FGV, apesar da nova legislação há vários ajustes a serem feitos. Um deles é o preço teto nos leilões de energia nova. 'É preciso atrair os investidores privados com preços mais atraentes', diz ela.

Na avaliação do presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace), Mario Cilento, a burocracia emperra os investimentos no País. Além disso, para ter motivação é preciso ter regras claras e duradouras. 'O histórico brasileiro traz ao investidor um peso grande de incertezas. A legislação muda demais.'

A solução de Pinguelli é reforçar os investimentos da Eletrobrás. Ele afirma que em 2003, por exemplo, a estatal poderia ter investido R$ 4 bilhões em novos empreendimentos, o que não foi feito. 'Ter R$ 4 bilhões para investir significa, na prática, um potencial de R$ 8 bilhões, já que a empresa pode fazer captações no mercado e fazer parcerias com outras companhias privadas', argumenta Pinguelli.

OESP, 03/12/2006, Economia, p. B1, B4

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.